Sociedade

Entre Deus e o
mundo fashion

MALU MARCOCCIA - 05/04/1999

Cantado em prosa e verso no mundo fashion dos estilistas de cabelo, Primo Bonafini engana quem o vê em ritmo frenético esculpindo madeixas de gente famosa do Grande ABC e conversando veleidades sobre os caprichos da beleza física, nunca tão reverenciada como neste final de século. Por trás do perfil carismático, falante e inquieto com a busca de atendimento impecável à numerosa e bem-nascida clientela esconde-se um religioso de mão cheia, católico zeloso que vai semanalmente à missa e tem devoção especial à Nossa Senhora. Também  se recolhe uma vez por semana em um grupo de orações, algo que recomenda a todos que desejam enlevar o espírito neste mundo frugal de aparências.


Muitos devem estar achando contraditório esse paranaense de Londrina, 33 anos, que deixou a terra natal com o sonho que embala milhares de jovens em busca de melhor oportunidade de trabalho na cidade grande. Afinal, não haveria duplo sentido em um profissional que tem como ofício incentivar a devoção ao corpo, à estética, exercitar momentos intimistas de dedicação à alma, ao coração? Não para Primo Bonafini. Ele vê a vaidade com respeito e não acha esnobe quem cultua o esplendor físico, algo que no jargão popular se convencionou chamar de dondocas. Primo prefere não classificar, não imprimir rótulos. Acha que a beleza que produz em seu salão não é um verniz externo que encobre o que a natureza roubou. "A beleza joga para cima a auto-estima e também faz bem ao astral interior. Gosto de ver as pessoas se sentirem bem, felizes" --  sublinha.


Mas o lado espiritual volta a ficar presente nesse premiado coiffeur, pelo menos tricampeão paulista do Tesoura de Ouro, que não deixou a fama roubar-lhe a modéstia e que menciona Deus em nove a cada 10 palavras. Em vez de personagem emplumado como a maioria dos comandantes de salões de beleza do eixo Rio-São Paulo, Primo Bonafini é uma lição de simplicidade e humildade. Abraçou de corpo e alma as causas benemerentes, há anos revertendo a instituições de caridade a renda de eventos que promove, entre os quais lançamentos de cabelo e maquiagem para as mudanças de estação. As promoções são disputadas. Na última, em outubro do ano passado, montou no Margaux, em São Paulo, a 1ª Mostra de Peças Antigas para Cabelos e Acessórios, com cerca de 100 raridades das décadas de 30 a 70 que recolheu nas várias viagens que faz pelo mundo. A entrada era um brinquedo. Conseguiu arrecadar 500, doados à Casa André Luiz. 


Nos laços com a comunidade também constam organismos da região como Asilo Dona Adelaide e Creche Cata Preta e, na Capital, a Casa Vida, de crianças aidéticas. De família religiosa, descendente de italianos e espanhóis, Primo começou a exercitar mais fortemente essa aproximação com carentes quando, recém-chegado a São Bernardo, há nove anos, participou de obras de caridade que a Associação dos Profissionais de Cabeleireiros de São Paulo promovia em locais como Casa de Davi e Cruz Verde. Crianças e adultos tinham os cabelos cortados gratuitamente. "Aquela pobreza me comovia profundamente. Muitas vezes chorei. Já me vesti de Papai Noel em festa para deficientes físicos" -- lembra.


Primo Bonafini tem o dom de se relacionar bem. Trabalhou 13 anos na área de administração de empresas, três em restaurante e bufê, outro tanto em academia de modelos e até deu curso de comportamento à mesa e de bons modos. Estudou francês, escreveu para jornais em Londrina e já enveredou pela literatura com o livro Caminho para o Desenvolvimento, uma mostra do eu interior que sempre valorizou. A única referência com o mundo da estética era o tio cabeleireiro em Salvador, até que fez contantos com alguns profissionais de salão de beleza de São Bernardo em visita a Londrina. "Tinha muita sede de conhecer São Paulo. Quando estive hospedado no Mofarrej Sheraton a trabalho pela Herbitécnica, empresa de defensivos agrícolas do Paraná, fiquei encantado pela cidade. Quando conheci aquele pessoal, deu o estalo: vou-me embora para São Bernardo, que sabia apenas ser perto de São Paulo" -- conta.


Além dos pais, Primo deixou uma irmã e um irmão gêmeo no Paraná. A narrativa não difere de tantos outros brasileiros na luta pela sorte grande. Com minúscula mala nas mãos, desceu na Rodoviária do Tietê e veio para São Bernardo. A única companhia era a imensa vontade de vencer. No primeiro emprego começou a aprender a destrar pente e tesoura. Hospedou-se no início em casa de conhecidos, começou a fazer cursos e logo montou salão com uma sócia. Foram quatro anos até que a parceria escorregasse numa das várias incompatibilidades existentes no mundo dos negócios, como diferenças de personalidades dos sócios. Primo confessa que saiu machucado, emocional e materialmente. Mas prefere não cutucar feridas antigas. Diz que aprendeu a perdoar. 


Novamente na estaca zero, quando estava no chão, novos personagens surgiram  para ditar seu destino. Primeiro, fornecedores acreditaram em seu talento e estabeleceram parcerias em produtos e equipamentos a custos parcelados; depois, clientes surgiram com propostas de ajuda financeira; finalmente, o socorro mais marcante: a família Wilhelm Huber, de São Bernardo, forneceu-lhe o principal combustível para reerguer-se: apoio espiritual. "Sempre tive a mão estendida para os outros. Acredito que toda aquela mobilização de auxílio tenha sido  reconhecimento a isso" -- arrisca o cabeleireiro. Em apenas quatro dias o Studio Primo Bonafini estreava no Jardim do Mar, onde está há três anos.


Primo sem dúvida é envolvente, amistoso, mas sabe que sem qualidade nenhuma trajetória profissional prospera. Mergulhou como nunca em cursos, viagens e literatura sobre o mundo da moda, que a seu ver dita as regras dos estilistas de cabelo e maquiagem. Anualmente viaja pelo Brasil e Exterior para ver o que está em alta nos salões. Já esteve na Itália, Espanha, França e Inglaterra e, nos Estados Unidos, percorreu Nova York, Washington, Pensilvânia e Virgínia. "Em Buenos Aires e Montevidéu me sinto em casa" -- brinca, tantas foram as visitas. Solteiro, sempre embarca acompanhado de pelo menos uma amiga. Conversa com profissionais, vasculha as últimas tendências em produtos, mas seu forte é criar cortes e penteados. A cada aniversário do salão, em maio, a clientela é chamada para conhecer suas últimas invenções. Com direito a mega-show e desfile. "Meu público é exigente e gosto que seja assim. Quero que sempre me cobrem novidades" -- acentua.


Para dar conta dos 50 a 60 clientes que recebe diariamente de terça a quinta-feira e dos mais de 100 às sextas e também aos sábados, o centro de estética tem equipe encorpada por 27 profissionais e aparelhos de ponta como o festejado Silhouete, procurado por 10 entre 10 mulheres aterrorizadas pelas celulites. Também se cerca de produtos de primeira linha como Kerastase, Graham Webb e LOreal para cabelos e Versati, Dior, Orlame e Lâncome na maquiagem, entre outros. Primo Bonafini se rende aos avanços da tecnologia cosmética, mas aposta sem pestanejar que o maior mérito da indústria da beleza está na habilidade do profissional que a pratica. Todos os funcionários têm curso profissionalizante, são treinados por ele para garantir qualidade uniforme no atendimento e estão em constante aperfeiçoamento. 


A especialidade são os cabelos, mas Primo abre de tal forma a agenda que acompanha pessoalmente todos os serviços da equipe de facial, corporal e o consagrado Dia da Noiva. Pelo menos 40% da clientela vem da Capital e da Baixada Santista. Entre as celebridades que atende estão juízes, gerentes de bancos, executivos de multinacionais, autoridades, políticos e respectivas esposas e filhas. Mas garante que há também gente modesta, a quem recebe com igual desenvoltura e dedicação. Coisas de quem valoriza a aparência, mas sublinha o coração. "Já penteei atrizes como Leila Lopes e Danielle Winitz e a Scheila Carvalho do É o Tchan. Recebo com beijo e abraço, no entanto, a mais ilustre das desconhecidas. Minha missão é servir, quem quer que seja" -- fala o coiffeur, que prepara as popstars das capas da revista Noivas, com a qual tem contrato.


Às 9h de terça-feira a sábado, infalivelmente, há cliente aguardando Primo na cadeira do salão do Jardim do Mar. A rotina se estende até as 19h e só é quebrada no horário do almoço, que se concede sem abrir mão. As segundas-feiras são reservadas para assuntos pessoais. Consumista de carteirinha, Primo vai todos os domingos a shoppings. O Iguatemi, na Capital, é o preferido. Arrasta-se durante horas na loja de Giorgio Armani, compra pelo menos uma peça toda semana, e depois vai ao cinema. Vaidoso assumido,  Primo Bonafini conserva os 70 quilos bem distribuídos pelo 1,78 metro equilibrando a quantidade de alimentos, mas sem economizar no menu. "Como tudo o que tenho direito" -- faz inveja a quem vive brigando com a balança. Os cabelos longos cacheados são a marca registrada do charme que desfila desde que abraçou o mundo da beleza. A aparência também é esculpida em aulas diárias com personal-trainer, hábito que tornou tão rotineiro e arraigado quanto a devoção religiosa exposta na corrente que enlaça o pescoço carregando um crucifixo, a imagem de Nossa Senhora e um talismã japonês da felicidade. São companheiros do dia-a-dia no salão, dos passeios aos shoppings, do grupo de oração e da missa às segundas-feiras na Igreja Santíssima Virgem, no Jardim do Mar. "Tenho um compromisso com Deus. Tudo que tenho devo a Ele. Não poderia fugir dos momentos de reflexão espiritual e das ações em favor dos mais humildes" -- comenta.


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