Sociedade

Livros para ler,
escrever e vender

TUGA MARTINS - 05/05/1999

De manhã dona-de-casa, à tarde empresária, depois que o sol se põe escritora, e sempre que possível com o pé na estrada. Assim a poeta Dalila Teles Veras, de Santo André, tem rimado os dias de seus 52 anos. Divide-se como estrofes clássicas entre as filhas Carolina, Isabela e Alice e o marido Valdecírio, as atividades da Alpharrabio Livraria Espaço-Cultura, a eterna paixão pelas letras e as viagens. Portuguesa, natural de Funchal, na Ilha da Madeira, Dalila cruzou o Atlântico aos 12 anos. Traz as trovas da terra natal junto à lembrança de ter recebido das mãos da bisavó materna Maria de Jesus a expressão máxima da língua portuguesa: Os Lusíadas, de Luiz de Camões, em exemplar editado com letras góticas. "Não entendi a obra, mas  de alguma forma gostei. Só muito tempo depois vim a compreendê-la" -- conta. Com sete livros publicados, Dalila já não guarda mais os exercícios de poesia da adolescência. "Destruí tudo que sobrou além dos 40 primeiros poemas que publiquei no livro Lições de Tempo" -- revela.


Sem escola literária para delimitar-lhe a criação, a poeta Dalila há sete anos concretizou o anseio próprio e de alguns colegas de ter espaço adequado para trocar impressões artísticas e culturais. Nascia o Alpharrabio -- tratado pelos habituês no masculino por ser entendido como espaço cultural mais que como livraria --, sonho de 20 anos de trabalho traduzido em um pólo de difusão cultural. No Grande ABC não há qualquer atividade similar, seja na iniciativa privada ou pública. "O Alpharrabio não é um empreendimento meramente comercial" -- orgulha-se a poeta. Nos poucos metros quadrados disponíveis, o Alpharrabio acolhe a memória da região em 500 títulos, anteriormente do acervo pessoal de Dalila e atualmente abertos à pesquisa. "Achei que era egoísmo guardá-los só para mim" -- pondera. 


Entre as relíquias do lugar, o volume Ensaios Quinhentistas, de Amaral Gurgel -- Empresa Editora J. Fagundes -- 1ª edição, 1936, trata da fundação da Vila de Santo André da Borda do Campo por João Ramalho. Os mais recentes são lançamentos das Edições Alpharrabio que privilegiam autores regionais. O último foi do poeta Kleber Mantovani, Sombras em Relevo.


Todos os sábados o Alpharrabio recebe o ânimo de escritores, artistas plásticos, músicos, intelectuais, professores, leitores e amantes de livros em busca de companhia para trocar  experiências. Olga Savary, do Rio de Janeiro; Juareiz Correya, de Recife; o Grupo Encontrovérsia, de Curitiba; Cláudio Willer e Álvaro Alves de Faria, de São Paulo, e também os autores regionais Tarso M. de Melo, Eduardo Botallo, Cláudio Feldman, Irineu Volpato e Wagner Calmon Ferreira fizeram do Alpharrabio praça de lançamento de livros e noite de autógrafos. Renomados nacionais como José Paulo Paes e José Mindlin também já passaram por lá. O aquecimento da frequência da livraria resultou no surgimento de um balcão que, misturado ao odor dos livros, convida ao café, chá ou irrecusável vinho do Porto.

Sob a voz inspiradora do cotidiano, a poeta confessa não levar muito jeito para empreendimentos. "Como empresária sou um desastre" -- brinca. Deixa claro que o Alpharrabio não é arrimo financeiro da família. Motivo: poucos são os consumidores vorazes de livros, quanto mais de livros usados. A poeta empresária se auto-intitula agitadora cultural. Usa a auto-avaliação por gostar de sacudir o marasmo que não raras vezes domina o cenário literário e artístico. Este ano, projeto regional envolvendo 18 escritores tem absorvido o empenho de Dalila. De 1º de janeiro a 31 de dezembro, o maestro Flávio Florence, o dramaturgo Luís Alberto Abreu, o historiador Ademir Médici, o romancista Antônio Possidônio Sampaio, o professor Luiz Roberto Alves, o ator Milton Andrade e outros notáveis da região contam em livro inédito as impressões pessoais do Grande ABC neste último ano do milênio. A publicação da obra está prevista para o ano 2000.


Apesar de toda sua história convergir para a literatura, páginas exclusivas da vida de Dalila exibem traços peculiares da  poeta. Na juventude fez esgrima no Clube Pinheiros, em São Paulo. Namorou bastante, mas não gostava de bailes. Casou aos 26 anos com quem também escreve e lê muito. À frente do fogão extravasa harmonia de cores e aromas. "Cozinhar é uma viagem alquímica. É escolher o legume mais brilhante, a fruta mais perfumada, as especiarias mais exóticas. Equivale a arrumar a palavra no poema" -- descreve. Desse laboratório de sabores, as melhores experiências de Dalila vão à mesa na forma de vatapá e caldo verde. Do avental às fraldas, passou seis anos se dedicando integralmente à maternidade. Mas nenhuma das três filhas herdou a paixão por livros da mãe.


Anos rebeldes -- Antes que o desejo de ser mãe lhe beliscasse a veia poética, Dalila trocou as contagiantes horas que dedicava às bibliotecas pelo mercado de trabalho. Era preciso dinheiro para viabilizar o que queria -- principalmente livros. O primeiro emprego foi na diretoria de Comunicação da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Depois dedicou nove anos como secretária da diretoria da TRW do Brasil. 


Em plenos anos rebeldes, a poeta não foi tragada pelo movimento hippie nem tampouco pelas militâncias político-partidárias. Por meio de textos e artigos, manifestava suas indignações em jornais literários. Em 1968, quando a Primavera de Praga forrava a Europa, a política chamuscou-lhe a consciência. "Foi quando percebi minha vocação de esquerda" -- admite. Na juventude não foi à universidade. O banco escolar a decepcionava, como costuma dizer. Hoje é disputada por faculdades de Letras para fazer palestras sobre literatura.


A mídia eletrônica parece distante das práticas da poeta. O advento da Internet certamente não a cativou apesar de usá-la para correio eletrônico e eventual fonte de informação. "Não navego" -- pontua. Para Dalila, leitura e prazer são sensações mais que íntimas. No verão acompanha as tardes na varanda; no inverno é companhia ideal sob mantas à frente da lareira. "O objeto livro é coisa tátil, tem cheiro, é até sensual" -- suspira a poeta. Momento inesquecível foi quando teve nas mãos um volume do começo do século que trazia páginas intocadas. Páginas que naquela época eram dobradas para montar os livros e precisavam ser literalmente desvirginadas, separadas uma a uma antes da leitura. O congelamento de momentos inesquecíveis como esse enquadra outro viés da personalidade da poeta: a fotografia. Certamente, se não tivesse se entregado de corpo e alma à escrita, seria fotógrafa profissional.


Viagens são alvos prediletos das lentes de Dalila. "O contato com o novo mantém o olhar mais atento" -- revela. Apesar de gostar mais de fotos em preto e branco, Dalila rendeu-se aos matizes devido às dificuldades de mercado. "Não se acha mais quem faça revelações em pebê" -- lamenta. Numa fase mais intimista de colecionar imagens, a poeta tinha laboratório caseiro. No álbum de retratos, o enquadramento mostra caminhos de romances e lugares frequentados por seus autores preferidos. Lisboa não poderia faltar, já que publica em cada esquina fragmentos da história de Dalila. Buenos Aires revive Jorge Luis Borges e Bioy Casares. Atrás do cheiro da literatura, Londres, Paris e Nova York atraem. "Também adoro o Piauí, terra de meu marido" -- afirma.


Criada  sob as bênçãos da Igreja Católica, Dalila afastou-se da religião depois que as missas deixaram de ser cantadas em latim. "Ainda mais agora que missa virou aula de aeróbica. Perdeu o rito" -- protesta. Dos medos, apenas a possibilidade de cegueira tira o sono da poeta. Na virada dos 40 anos Dalila passou a usar óculos. "Não sei ouvir, sei ver as palavras" -- justifica. Nem assim a superstição lhe despertou apego. Nem incenso, nem velas, nem psicanálise. Para problemas de saúde, homeopatia. Os demais conflitos levam a mergulhos em livros. Nas prateleiras de casa, Dalila conserva sua terapia: três mil exemplares lidos. No epílogo da conversa, admite já ter ocupado a posição de musa inspiradora. "Mas essa é uma história que faz parte do departamento das afetividades e, portanto, são segredos de Estado" -- murmura com indisfarçável sorriso.


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