No idos de 1967, um dos garotos que integravam a bandinha do Grupo Escolar Dr. Baeta Neves, em São Bernardo, jamais largaria seu instrumento de iniciação musical: Itacyr Bocato Júnior, trombonista que do Grande ABC ganhou o mundo com composições instrumentais polêmicas, mas de qualidade singular. Atualmente Bocato mora em Berlim, Alemanha, onde toca muito free jazz em casas noturnas, museus e igrejas, cuja acústica é sua preferida. Diz-se eclético para tocar e exigente demais para ouvir. Encontrou na Europa sossego para exercitar a própria musicalidade e, enquanto participava do festival Jazz in the Garden, recebeu convite casual para gravar na Suíça o 10º disco da carreira. Intitulado Samba de zamba, o trabalho homenageia a música popular brasileira com traços de influência do jazz latino. "Estava muito chateado com a gravadora antiga, a Mix House. Nesse projeto não tive de agradar ninguém. Lá (na Alemanha) não me debilitam" -- dispara. O novo CD motivou a vinda ao Brasil para lançamento dia 17 de maio do primeiro trabalho de produção internacional.
Autodidata nas claves, bemóis e sustenidos, o controvertido Bocato traz da infância mais que cantigas de roda versadas nas ruas do Bairro de Piraporinha, onde morou. O pai, nascido em Jaboticabal, no Interior de São Paulo, era violeiro sertanejo e imprimiu acuidade auditiva no trombonista. Talvez por isso Bocato mostre-se tão avesso às alterações desse gênero musical. "Meu pai tocava música para o homem do campo e o que se ouve hoje é música para a UDR (União Democrática Ruralista)" -- critica, sem esconder simpatia pelo socialismo. Em 1985, o pai morreu em um assalto. O amargor vai além da perda paterna. Confessa que despreza ícones da música popular brasileira como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Hermeto Paschoal, que no passado até rechearam o selecionado rol de ídolos do trombonista. "Não admiro mais a postura desses artistas que acabam só se servindo da música" -- diz.
O tom ácido logo é substituído pela tristeza quando o refrão entoa notas do Grande ABC. Bocato lamenta o fim das bandas escolares, o abandono da Fundação das Artes de São Caetano, onde em 1976 estudou música, e a saída da Faculdade de Música da Unesp (Universidade Estadual Paulista) da região em 1980. "Estes desserviços prestados pelos governos me chateiam. Primeiro levaram a cultura e agora querem levar as fábricas. Antes havia esquema de Primeiro Mundo para estudar música no Grande ABC e hoje percebe-se um boicote" -- justifica.
Diante da realidade, deixa apelo emocionado para que sejam retomadas a cultura e a educação musical na região. "No Grande ABC se come muita fumaça, o trabalho é duro, e o legal é que os artistas conseguem transformar isso em cores, sons e idéias" -- diz. Reconhece que a região lhe deu oportunidade de seguir a carreira de músico. Supõe que, não fosse o trombone, poderia ter sido tragado pela marginalidade que à época era separada da rebeldia por linha muito tênue.
Bocato bem que tentou trocar os instrumentos de sopro pela bola, mas não teve como insistir no futebol. As partituras sempre atraíram mais que o gol. Para compor, busca inspiração na luta contra o feio, o medo, a ignorância, a falsidade e a mentira. Só dá ouvidos a composições que acredita terem saído do íntimo. "Não suporto apelo piegas em músicas. Não dá para ouvir sons que servem ao pensamento medíocre, com letras que mentem sobre a realidade. Tem de haver um basta para tantos tchans e tiazinhas" -- diz.
Sem desafinar na linha comportamental, Bocato aceita e defende composições da periferia de São Paulo como o rap e o punk rock. Cita as bandas Racionais MC, Pavilhão 9, Ratos de Porão e Garotos Podres como alternativas nacionais de música que chama de verdadeiras. "Temos muitos músicos bons morrendo no ostracismo, enquanto tanta porcaria está imperando. É preferível não ouvir para não sofrer más influências" -- grifa.
Apesar de viver sonoridades 24 horas por dia -- quando não está fazendo shows está estudando --, à cabeceira da cama há espaço para palavras de conforto de Alan Kardec e Chico Xavier. Mergulhou nas vibrações do espiritismo atraído pela esperança de a vida não se encerrar num mundo que considera cruel. "Deus existe e não compactua com quem finca a própria felicidade na tristeza alheia" -- prega o músico de 38 anos. Longe de ser carola, desde criança Bocato sempre questionou, rompeu regras e pagou por essa postura rebelde. Na escola chegava a ser colocado de lado pelos colegas que não aceitavam seu comportamento diferenciado. Em frente ao espelho admite que tem esquisitices, mas com humor peculiar desarma qualquer ataque dizendo que na vida transformou defeitos em estilo.
No compasso da trajetória pessoal, coleciona cinco casamentos desfeitos. Mantém boa convivência com as ex-esposas e até algumas ligações profissionais. No momento diz que está namorando bastante, mas sem compromisso. Pensa o tempo todo em música. Das relações herda os filhos Raul, de 17 anos, e Gerson, de quatro anos. Os meninos são paixão e norteiam sonho futuro de Bocato, que pretende uni-los sob um único teto. "Essa é uma batalha pessoal e eterna" -- revela. Para quando os cabelos se renderem ao branco, reserva desejo de lecionar. Música, claro!
Orgia dos Metais -- O movimento sindical dos metalúrgicos do Grande ABC e a adoração pelos metais fomentaram em 1982 a criação do primeiro grupo integrado por Bocato: a Banda Metalurgia. Os músicos eram na maioria da região e produziam som diferente do veiculado pelas rádios. "Era a orgia dos metais" -- lembra com satisfação. Essa raiz irreverente pode não convencer o mercado nacional de discos, mas na Europa arranca aplausos. Bocato vai participar no mês que vem do festival de Montreaux, na Suíça. É o som brasileiro admirado no Primeiro Mundo.
Depois do primeiro disco da Banda Metalurgia, Bocato e o grupo lançaram Lixo Atômico, em 1985, Sonho de um Anarquista e Concerto com Trombone Quebrado, em 1987, Abruxa-te e Aqui Jazz Brasil, em 1988, Ladrão de Trombone, em 1989, Bendito, em 1994, e Tributo a Pixinguinha, em 1997. Na atual formação conta com sotaque cubano do saxofonista Felipe Lamoglia. Em todos os trabalhos o diapasão é a música instrumental brasileira e pela segunda vez reverencia o mestre maior Pixinguinha.
A harmonia precisa das composições de Bocato faz eco aromático na hora que o músico troca o trombone por bateria em cima do fogão. Põe nas panelas experiência e gosto alternativo. "Gosto do diferente" -- pontua. Tempera dos mais refinados aos mais populares pratos. Varia as etnias gastronômicas do sushi ao caldo de mocotó. Tanto na música quanto na cozinha tem queda confessa pelo improviso. "Adoro comida e música que saem free, que não precisam ser registradas" -- empolga-se. Para beber: nada etílico. Abandonou os drinks alcoólicos há seis anos, cortou laços com drogas e há seis meses parou de fumar. "Estou muito melhor que antes" -- comemora.
Nos 17 anos de carreira, cerca de 50 trombones reproduziram notas e idéias de Bocato. E por que tantos? "Tive o prazer dos músicos rebeldes de poder quebrá-los" -- ri. Apesar de ter optado por viver distante do Brasil, nenhuma tecnologia internacional tirou-lhe o gosto de tocar com instrumento de produção nacional. Na mistura de preferência técnica e emocional divulga o trabalho de seu fornecedor, a empresa Werkil Instrumentos Musicais, de Franco da Rocha, na Região Metropolitana de São Paulo. "A empresa aposta em quem faz música independente de gravadoras, em quem não mantém vínculos comerciais" -- propaga.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!