No tempo em que garotos amavam os Beatles e os Rolling Stones, o jovem Edson de Jesus Sardano traçava futuro bem distante do modelo contestador que incentivou o irmão Edélcio a enveredar para a esquerda. Em plena ditadura militar, enquanto o irmão ajudava a fundar o Partido dos Trabalhadores em Salvador, na Bahia, Sardano queria ingressar na Academia da Polícia Militar do Barro Branco, em São Paulo. E assim fez, apesar do espanto dos colegas de turma do Colégio Singular-Anglo, em Santo André. Se à época da Flower Power Sardano adotava linhas conservadoras, os 21 anos de farda modelaram perfil progressista. "Hoje sou mais à esquerda que meu irmão, que se mostra como economista alinhado às propostas neoliberais" -- brinca. Quando comandou a 2ª Cia do 10º BPM, de 1994 a 1997, enfrentou a batalha de disseminar idéias humanistas e de dignidade não somente para a tropa, mas para toda a sociedade andreense.
Sardano deixou a região em 1998 para assumir a sub-chefia da Seção de Relações Públicas da PM e concretizou o sonho de ver a corporação criar Comissão de Direitos Humanos, da qual participa desde o início. Momento de inspiração e satisfação plenas que o levaram a escrever o livro Adolescer, da Editora Bezerra de Menezes. São 120 páginas voltadas para adolescentes e pais. Trata de sexo, drogas e violência, mas dedica capítulo especial ao rocknroll. "Já estou na segunda edição" -- comemora. A publicação lança mão da conduta espírita que comanda a fé do capitão. Assim como os pais Miguel e Terezinha, Edson Sardano segue as palavras de Alan Kardec.
Na Santo André dos anos 70, o adolescente Sardano nunca se mostrou muito adepto dos esportes. Cultivava apenas a velha bicicleta para dar voltas com a turma do Bairro Jardim. Admite que namorou bastante, mas que as relações eram efêmeras. Não passavam de cinco meses. No casamento de um amigo em Recife conheceu a pedagoga Érika. O namoro foi por carta, mas a paixão já está mais que sedimentada. Os filhos Beatriz e Gabriel selaram a transformação de vida. Sardano diz que é paizão, que rola no chão com as crianças e que chorou no nascimento dos dois.
Aliás, não nega seu lado manteiga derretida, mas na hora H encara situações como lhe convém a farda. Chega até a apoiar o uso da força em casos extremos, embora repugne o abuso. "Isso me deprime" -- confessa. A ânsia por justiça o levou para as classes da Faculdade de Direito de São Bernardo. O capitão-advogado defende a tese de que a violência descontrolada das metrópoles é resultado do desequilíbrio plantado pela própria sociedade. "É uma espécie de tiro que saiu pela culatra" -- dispara. Como atribui a culpa a todos, Sardano acredita que a solução tem de partir de todos. E vai além: "Os anos de indiferença aos semelhantes voltam com revólver na mão. Somos muito hipócritas quando achamos que a solução tem de vir dos outros".
Logo que saiu da academia e voltou para a terra natal o capitão tinha em mente retomar lugares prazerosos do passado. Mas o choque foi inevitável. A adorável Avenida Queiroz dos Santos havia se transformado em um dos piores lugares de Santo André para se passear. A agonia de ver a própria cidade entregue aos percalços do desenvolvimento desordenado lhe exigiu mais que lamentações. Tão logo assumiu o comando em Santo André tratou de instalar posto policial na Praça 18 do Forte.
Com 40 anos, Edson Sardano garante que nunca cultivou ídolos. Remete a Jesus Cristo a imagem de grande norteador da humanidade. Mas prefere espelhar-se na postura dos pais para tocar o dia-a-dia. Entre exemplos distantes e muito próximos destaca São Francisco de Assis e Divaldo Pereira Santos como criaturas especiais. Nas palestras que promove dentro da corporação respalda-se ainda nas trajetórias de Mahatma Ghandi e Martin Luther King. "Hoje há um esforço muito grande de a instituição respeitar e promover o direito humano" -- diz.
Na prática, existe a intenção máxima da corporação em instituir a Polícia Comunitária em São Paulo. Sardano chega a comentar que o comando está obcecado por essa idéia, que aos poucos começa a proliferar em todo o Estado. Mas o capitão tem claro que não basta apenas redimensionar a polícia. Para ele, é preciso profunda revisão do Código Penal Brasileiro. "Teria de ser mais rigoroso para alguns casos e mais ameno para outros" -- defende. Em resumo, aposta em mais firmeza nos crimes contra a vida. Segundo diz, reclusão para crimes contra o patrimônio tem pouca valia.
Como o tempo livre não é muito, dedica 90% à família. O restante destina à leitura. O gosto oscila entre romances históricos e biografias, jamais permeia a ficção. Dos livros que marcaram a vida escolhe Estigma, de Erwing Goffman, que trata dos preconceitos, dos rótulos atribuídos especialmente às minorias: homossexuais, negros, portadores de deficiências. E por que não à Polícia Militar brasileira? "A empatia foi imediata" -- atesta. Ele acredita que o estigma tem mais a ver com o serviço público brasileiro do que com os efeitos da ditadura militar e emenda: "No Canadá, a Real Polícia Montada é símbolo de orgulho para o país".
Edson Sardano garante sem pestanejar que o grau de eficiência da Polícia Militar de São Paulo é incontestável. Traz números de cor. "Mensalmente efetuamos prisões de oito mil maiores e apreendemos 2,5 mil armas de fogo. Nenhuma corporação do mundo faz isso" -- defende o capitão. Ele conta que os estrangeiros que chegam a São Paulo para ensinar metodologias de policiamento do Primeiro Mundo se rendem ao aprendizado logo no primeiro vôo de helicóptero. O empenho dos homens da PM em cumprir o dever se converte na tristeza de 31 baixas só este ano, a maioria em confronto com marginais.
Se por um lado os números relatam eficiência, por outro mostram a face agressiva de alguns fardados. Sardano trata o assunto como desvio comportamental e de caráter de cada indivíduo, e não da corporação. "É questão de índole. Se um tipo desse estiver atrás de um balcão de farmácia vai vender placebo. Cada um comete crime com a arma que tem na mão" -- teoriza. Sardano acredita que a Polícia Militar vai evoluir junto com a sociedade. Ou seja: a população vai ter orgulho da polícia quando tiver orgulho do vizinho, do vereador, do patrão, do empregado, do próximo. "Quando chegarmos a esse ponto, todo mundo cresceu" -- diz.
Explícito quando se posiciona contra a pena de morte, Edson Sardano conta que certa vez foi assaltado. Ainda morava com os pais, tinha acabado de chegar em casa e estava fardado. A família não sofreu nenhuma violência e o uniforme ajudou a espantar os marginais. Mas isso foi há 15 anos. Hoje a farda atrai reações piores. Edson Sardano não anda armado, não bebe, não fuma, mas se rende à vaidade. Sempre impecável quando à paisana, não esconde que a farda exerce fascínio no sexo oposto. Outro pecado do capitão? Doce. Adora tortas, principalmente de limão. Confessa subordinação à rotina da metrópole. Cinema com pipoca é sinônimo de entretenimento e, como todo bom cosmopolita, faz dos restaurantes a sua praia.
Mesmo em tempos de violência extremada nas ruas, Sardano questiona a formação de milícias privadas. Para ele, toda vez que um serviço público apresenta problema a livre iniciativa aparece para cobrir os flancos. Aconteceu primeiro com a educação, depois com a saúde e agora com a segurança. "Se todo esse dinheiro gasto com a segurança privada fosse investido na promoção humana, haveria menos violência e menos necessidade de se criarem novos meios de segurança" -- aposta. A fim de contribuir para a melhoria social de Santo André, Edson Sardano escancara apoio à reeleição de Celso Daniel para prefeito. Sentiu sua cidadania sendo assaltada quando soube da indicação do apresentador de TV Celso Russomanno para disputar a Prefeitura no próximo ano. "Fiquei indignado" -- diz.
A inserção de alguém desalinhado com os anseios da cidade destrói sonhos futuros do capitão e maculam lembranças que nenhum forasteiro poderia clonar. Sejam as matinês do Nacional Kid e do Vigilante Rodoviário, no Cine Tamoyo, ou os bailinhos do Primeiro de Maio que Edson Sardano frequentava na companhia do amigo Emílio Rigamonte.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!