O leitor acha que este jornalista ficaria mais feliz se abrisse este texto dizendo que acertou em cheio ao expressar publicamente que não teríamos uma personalidade regional que saltasse da pesquisa do Instituto ABC Dados ou estaria puto da vida porque deu com os burros nágua?
Tenham certeza de que preferiria mil vezes ter errado, A suposta satisfação individual jamais compensaria a coletiva. Mas, infelizmente, acertei. Acertei é força de expressão, porque é tão latente no seio regional que nos faltam exemplos individuais a seguir que qualquer outra resposta da pesquisa realizada em meados de janeiro e divulgada na semana passada seria o fim da picada.
Vou traduzir tudo isso de forma simples: o Instituto ABC Dados foi a domicílios da região e perguntou a mil entrevistados:
“Que pessoa melhor representa a região”.
Quem mais teve indicações, e mesmo assim míseros 8%, está preso em Curitiba, depois de dirigir o País por oito anos seguidos e fazer de um poste a presidente seguinte. E quem ficou em segundo lugar, Celso Daniel, com 5%, todos sabem não frequenta este mundo desde janeiro de 2002. Tradução: vivemos de um presente enclausurado e de um passado atormentador. Não soubemos construir o presente. Quanto mais saberemos desenhar o futuro.
Municipalismo centralizador
Diferentemente de outras questões formuladas pelo Instituto ABC Dados em que a regionalidade quebrou a cara porque o municipalismo é muito mais forte (o que, portando, maculou os resultados), no caso de escolher um protagonista em carne e osso teria de ser mesmo no âmbito dos sete municípios pesquisados – como essa questão específica assim o fez.
O resultado final foi dos piores entre os temários levados aos entrevistados porque nada menos que 63% dos moradores não apontaram um nome sequer, como antecipou este jornalista. Seria um feito extraordinário e inexplicável caso se consagrasse alguma personalidade.
Somos um deserto de bons exemplos municipais e regionais. Vivemos o maior vácuo da história recente no campo de individualidades. E estamos nessa situação porque o coletivismo não ajuda. Nossas instituições políticas, econômicas, sociais e culturais estão na pindaíba, completamente fora dos tempos de transformação.
Meados do século passado ainda são nossa referência institucional. Confunde-se tradição inócua com credibilidade ativa. E a mídia, de maneira geral, não foge à regra.
Com tudo isso, claro que não dá para tirar leite de pedra. Encontrar um nome que seja expressivo tanto na esfera municipal como na regional, a ponto de se destacar junto a moradores dos municípios locais, é pura especulação.
Nada a festejar
Quem tiver a cara de pau de cantarolar sucesso com o resultado final (como Lula está preso e Celso Daniel morreu é improvável que os que se seguiram nos resultados tenham essa pretensão) requereria exame psicanalítico porque estaria vendo coisas ou seus marqueteiros são mequetrefes metidos a besta.
Com todo o respeito, nem Orlando Morando com 3% dos votos, e Jair Bolsonaro com 2% (os demais citados tiveram apenas 1% cada) não seriam oportunistas a ponto de avocarem condecoração sem lastro. Até porque, como a margem de erro da pesquisa é de três pontos percentuais, tanto podem ter um pouco mais -- e mesmo assim não deixariam o miserê de representatividade -- como também não teriam nada vezes nada. Aliás, não sei o que Jair Bolsonaro está fazendo na lista.
Como tenho a quase certeza de que os formuladores da pergunta pretendiam mesmo saber até que ponto anda o despautério regional no tratamento a individualidades, quem sabe numa nova rodada de pesquisa adote-se critério totalmente diferente para aferir o grau de aprovação ou rejeição, por exemplo, dos atuais prefeitos.
Querem um exemplo? Já imaginaram uma pergunta mais ou menos nestes termos:
Dos prefeitos atuais da região (e se mostra uma lista à parte com os nomes registrados em círculo) qual aquele que você considera o melhor?
Não é preciso desdobrar as consequências do que saltaria da pesquisa, mas vale a pena o seguinte cenário: suponha-se que determinado titular de Paço Municipal seja o primeiro colocado (não se pode esquecer que também constará da planilha “nenhum deles”), como seria possível interpretar a situação?
Relativização do voto
A relatividade do voto, que consideraria não só o resultado absoluto, mas também a origem do voto, complicaria as observações. Daria margem a debates. Explico: o que significaria o resultado numérico caso ganhasse um prefeito com votos que significariam bem mais ou bem menos que o peso relativo do total de votos do Município que representa?
Vamos a um exemplo para não ficar em cima do muro, tornando a sugestão mais didática.
Suponham os leitores que vença Orlando Morando com 20% dos votos. É muito ou é pouco? Pode ser menos que os 12% de votos destinados a José Auricchio Júnior, de São Caetano. Como? Ora, se São Bernardo conta com 36% dos questionários a serem aplicados, enquanto São Caetano não passa de 6%, Auricchio é potencialmente o melhor prefeito porque a votação é essencialmente municipalista, embora o enunciado seja subjetivamente regionalista.
Essa avaliação poderia valer para o resultado final da pesquisa já realizada pelo ABC Dados. Orlando Morando teve 3% dos votos como “a pessoa que melhor representa o ABC”, enquanto José Auricchio não passou de 1%. Como a participação relativa de votos de São Bernardo é seis vezes maior (36% contra 6%), José Auricchio Júnior seria mais representativo. Seria mesmo? Com 63% de abstenção, de fato ninguém seria ou é.
Objetividade duvidosa
Então a pesquisa para aferir o melhor prefeito da forma que sugeri teria objetividade? Confesso que como os leitores mais atentos, também tenho dúvida. Se a formulei foi com um duplo sentido: primeiro dizer que, por pior que seja, seria possível retirar alguma coisa dos resultados; segundo, e principalmente, é um enorme desafio conceitual realizar pesquisas de cunho regional num território divididíssimo em sete municípios.
O livro Complexo de Gata Borralheira, que escrevi em 2002, sintetiza a Província fragmentada que somos. Sugeriria aos formuladores de questões do Instituto ABC Dados que lessem a obra. Estão ali entre outros pontos todas as idiossincrasias da região.
Sei que destrinchar pesquisas, quaisquer pesquisas, é sempre complicado. Há quem prefira informações cujo juízo de valor é predominantemente de quem elaborou o trabalho e deu as pincelas conceituais. As campanhas eleitorais recentes para a presidência da República revelaram barbeiragens monumentais do Datafolha e do Ibope. A mídia de maneira geral ignora as derrapadas dos institutos. Poucos se atrevem a romper o cinturão de chumbo de corporativismo.
A vida, portanto, é mais complicada do que parece. A sociedade já não aceita prato feito. Todos estamos sujeitos ao escrutínio de terceiros. Colocamos nosso prestígio na reta a cada frase. Se não houver fundamentação, a credibilidade vai para o vinagre.
Diria que, mesmo com fundamentação sólida, não se garante inviolabilidade a tentativas de destruição, porque o radicalismo político-ideológico tem irmãos siameses no campo das estatísticas. Não falta quem se opõe às evidências dos números e dos conceitos mal-ajambrados.
Equívoco conceitual
Tenho muito a escrever ainda sobre os resultados do Instituto ABC Dados. Insisto em argumentar que houve equívoco conceitual em várias questões apresentadas na primeira pesquisa, cujos resultados afetaram profundamente, ou mesmo tangencialmente, os dados finais.
Não se pergunta impunemente a quem mora em qualquer dos municípios da região o que acha sobre morar na região. A pergunta que não deixa dúvidas sobre o conforto ou desconforto de satisfação de residência deveria ser específica ao Município do entrevistado. Morar na região é uma coisa, morar em Santo André é outra, quando se trata do morador de Santo André. E dos demais municípios também. Há diferenças de avaliação.
Posso dar testemunho pessoal. Moro em São Bernardo e tenho valoração do local em que resido diferente do entendimento crítico de morar na região. Para mim, que moro no Jardim do Mar, morar em São Bernardo é melhor que morar em Santo André ou em qualquer outro Município da região.
Insisto em usar o verbete “moro” e “morar” como forma de caracterizar o ato residencial. Tenho razões de sobra para não trocar São Bernardo por qualquer outro endereço, mesmo em São Bernardo. São aspectos objetivos e subjetivos. Meus valores e os valores familiares estão em jogo, em forma de logística, de entorno, de especificidades da residência.
Motivações complexas
Nem durante os cinco anos de sofrimento diuturno, período em que a residência vizinha virou depósito de barulhento acampamento de escravos urbanos, contratados por uma empresa de fastfood, pensei em deixar São Bernardo. Sofri um bocado. Até que me livrei deles. Sem ajuda da Polícia, do Ministério Público do Trabalho, da Prefeitura e do escambau. Todos foram inoperantes. Como quase tudo no Brasil da Nova República que caiu.
Conclusão: se perguntarem se gosto de morar na região, minha cabeça raciocinará em termos de morar na região e a resposta não será a mesma se a formulação fosse sobre morar em São Bernardo. Há atos exclusivamente municipalistas que não podem ser tratados regionalmente. Como o fez, equivocadamente, o Instituto ABC Dados.
Só não me venham cobrar hipotética contradição como municipalista residencial por ser regionalista de primeira linha. O regionalismo institucional e estratégico do Grande ABC é imensa porta que segue fechada e poucos têm competência de abri-la não porque são ocupantes de suposto quintal de municipalismo, mas porque, essencialmente, são inábeis à interpretação cultural desse espaço geoeconômico e social especialíssimo na Grande São Paulo.
Municipalismo e regionalismo são metades da mesma laranja de cidadania. Que não tem nada a ver com moradia.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!