Sociedade

Vida afinada à
educação da voz

TUGA MARTINS - 05/07/2000

Melhor seria incluir CD nesta edição de LivreMercado para ilustrar a trajetória de Maria Auxiliadora Guimarães, que há 35 anos canta e encanta o Grande ABC seja na explosão melodiosa do Happy Day ou no lamento de Nobody Knows. Dona de voz singular, essa mineira de personalidade introvertida, tímida até, já educou cordas vocais de muitas estrelas. Das solistas do Teatro Municipal de São Paulo, Maria Cecília de Oliveira e Aline Monteiro de Barros, a Silvinho Souza da Silva, integrante do Grupo Transa Samba, Maria Auxiliadora aposta no dom de cantar. "Voz é igual a impressão digital: não tem fim" -- conceitua. 

Classificada como soprano lírico, a voz de Maria Auxiliadora desliza ritmada em peças de Johan Sebastian Bach, emociona quando arrasta no blues as raízes negras no Sul dos Estados Unidos e sublima quando expõe a devoção ao evangelho em acorde gospel. Nem por isso partituras de samba e música pop são descartadas. "Curto até um bom rock" -- diz, já estalando os dedos numa intimidade incomum que mantém com a música desde a infância.

Mesmo quando a linguagem oficial ainda era o tatibitate, Maria Auxiliadora já corrigia a afinação dos irmãos mais velhos que tocavam em conjunto musical. Desde então contava com ouvido clínico para avaliar qualidades sonoras. A saída de Minas Gerais para o Rio de Janeiro promoveu ascensão rápida na carreira da cantora. Teve o privilégio de estar entre alunos do mestre de canto Capitão Franklin, da Escola Nacional de Música, onde ganhou destreza para assinar encomendas vindas do Exterior. Aliás, a voz de Maria Auxiliadora abraça diversos idiomas: tupi, alemão, grego, hebraico, francês, italiano, inglês e português ecoam com naturalidade. "Pensam muitas vezes que sou estrangeira" -- ri. Mesmo com todos os ventos soprando a favor, submeteu-se ao crivo da professora internacional de técnica vocal Alba Tonelli para equalizar a autocrítica.

A opção de seguir carreira como educadora de voz exigiu de Maria Auxiliadora mais que dedicação extremada ao canto e estudo de fonoaudiologia. Impôs encarar as deficiências culturais do Grande ABC e o desinteresse de investimentos em música clássica. "A região é fraca. Abriga talentos que acabam indo para a Capital em busca de oportunidades de estudo e trabalho" -- critica. E por que uma cantora lírica tão promissora escolheria ambiente tão árido para semear a paixão? Em pleno vôo profissional, Maria Auxiliadora sussurrou a Serenata de Schubbert no ouvido de José Sebastião Guimarães, que morava na região. Casou-se e estreitou de vez os vínculos com o Grande ABC.

Nunca deixou de apostar em projetos culturais de qualidade para a região. O envolvimento com a música acabou registrado no livro Memória Musical de São Bernardo, de autoria do maestro Gonçalo Luiz Labrada. Mas, para Maria Auxiliadora, melhor que estar nas prateleiras das bibliotecas municipais é estar viva na lembrança dos alunos. Foi por conta dessas memórias pessoais que viveu momento único no último 23 de maio, na festa de lançamento do anuário Vencedores 2000 de LivreMercado. Em meio aos 1,4 mil convidados que lotaram o Palácio de Mármore do Moinho São Jorge, em Santo André, o artista plástico Odamar Versolatto reconheceu a antiga mestra e pincelou comoção inesquecível.

Devota da Congregação Cristã do Brasil há 15 anos, Maria Auxiliadora chegou a envolver-se com o movimento sindical da região. "Tocávamos com os jovens operários" -- lembra. Hoje não mantém qualquer proximidade com a religião católica e nem com organizações políticas. Mas o timbre solidário ainda faz eco no cotidiano da soprano. No ano passado acolheu internos da Fundação Criança de São Bernardo nas turmas de aula de canto. "Foi uma experiência enriquecedora, mas exigiu que eu desempenhasse também o papel de psicóloga" -- diz. Fora isso, a convivência com a extrema carência infantil mexeu demais com o emocional da cantora.

No lado das realizações pessoais, Maria Auxiliadora alimenta o sonho de pôr nos palcos peça ainda sem título que faz apanhado da origem do jazz norte-americano. "O projeto prevê 30 vocais" -- adianta. Como referência do potencial, basta lembrar da montagem do Fantasma da Ópera encenada em 1992 sob direção de Willian Tucci. A cantora não economiza farpas ao mencionar que não recebeu qualquer apoio da Prefeitura de São Bernardo. O porquê da mágoa? Todos os atores eram da cidade. Também comandou o Coral da Volkswagen até o nascimento da Autolatina, quando não se sentiu à vontade com o estilo da Ford. Enquanto patrocinadores não se manifestam, Maria Auxiliadora prepara-se para o Festival de Inverno de Campos do Jordão. A cantora foi convidada pela Bombril para comandar coral madrigal (de até 15 componentes) na temporada 2000. Para a estância serrana, ensaia repertório clássico popular e muita música italiana. 

Dos três filhos, o caçula Vinícius é quem mais espelha a veia artística da mãe. Não é para menos. Desde a gestação ouvia seleção musical exclusiva. "Lilian também canta, mas Elen não tem o dom" -- diz. Fora a vocação nata de entoar as mais variadas escalas, Maria Auxiliadora confessa que atreve-se ao bordado, à pintura e outras expressões artesanais. Faz também propaganda -- com aplausos da família -- dos dotes culinários que levam à mesa especialidades da cozinha mineira. Relembra o solo que fez no Municipal de São Paulo no Programa de Natal de 1983 com a mesma simplicidade com que conversa sobre receitas domésticas mexidas em panela de pedra sabão. Não esconde que canta todo o tempo, quando está feliz e quando está deprimida.

Para eternizar o próprio conhecimento, Maria Auxiliadora escreve há anos livro didático sobre técnica vocal. "O problema é que não consigo terminá-lo. Sempre tem uma coisinha ou outra para incluir" -- diz. Dedica-se ainda a estudos sobre canto e medicina. Aliás, se não tivesse escolhido a voz como ferramenta de trabalho, Maria Auxiliadora teria estetoscópios e bisturis em ação. Na juventude pensou seriamente em cursar Medicina ou Engenharia, mas rendeu-se à imortalidade da canção. Além de aulas de canto, abre seu Espaço Vocal Auviguielli para cursos de violão, teclado, piano popular, órgão litúrgico, saxofone e sessões de fonoterapia. Orienta ainda na formação de bandas e corais. "Às vezes é possível identificar talentos numa conversa descompromissada" -- diz.



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