Se a história do desenvolvimento do Grande ABC fosse indexada, não seriam poucos os capítulos escritos pelos passos de Vicente Martins Júnior, que da frustração de não ter cursado Medicina fez brotar idéias geniais como a criação da CTBC (Companhia Telefônica da Borda do Campo), a instalação do Corpo de Bombeiros e a Casa da Esperança, em Santo André. Dentista formado pela primeira turma da Escola de Pharmacia e Odontologia de São Paulo, Vicente Martins chega aos 88 anos conduzido por trajetória que desliza da preocupação extremada com a família ao combate na Revolução de 1932.
Conta animado que na noite que estourou o conflito, estava no Cine Carlos Gomes quando chegou um sargento do Tiro de Guerra de Santo André, interrompeu a sessão e fez a convocação dos soldados. "Meu nome foi o primeiro" -- orgulha-se. Ficaram concentrados por três dias na CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), então na Avenida Industrial, rodeados de armas e munição. "Foi prova de fogo para o tal de capitão Góis, advogado que tinha medo até de pulga, quanto mais de revólver" -- diverte-se com a lembrança.
Nascido em Jaú, Interior de São Paulo, onde ganhou o apelido de Tatinho, Vicente Martins desembarcou no Grande ABC aos 13 anos para morar com o irmão farmacêutico João Batista por conta da morte do pai. Caçula dos 14 filhos de dona Antonia Marigo, logo viu-se perseguindo a idéia de estudar Medicina, mas acabou reprovado em latim no exame de admissão à faculdade. "Sem a Medicina fiquei meio sem rumo" -- admite. Não demorou muito para o futuro profissional voltar a sorrir. A opção pela Odontologia surgiu quando passeava pelo Centro de São Paulo e foi reconhecido por dentista famoso da terra natal. De imediato projetou a carreira na imagem do conterrâneo. "Sensacional, pensei" -- conta. Por mais de 30 anos exerceu a profissão que acabou sendo sufocada pelas responsabilidades decorrentes do comando da CTBC.
A primeira casa da família foi na Rua Coronel Oliveira Lima. Vicente Martins começou a pensar em telefonia quando se mudou para a Praça do Carmo, onde mora até hoje. "Tínhamos telefone na Oliveira Lima, instalado pela Companhia Telefônica Brasileira, mas com a mudança perdemos o benefício porque as linhas não chegavam até a Praça do Carmo. Então contratei um moço que ficava de plantão na casa da Oliveira Lima atendendo as ligações e trazendo os recados" -- lembra com indignação. Para se ter idéia da precariedade do serviço, basta observar que o número da linha de Vicente Martins era 168 e as de alguns amigos tinham apenas dois dígitos. Ou seja: havia menos de duas centenas de linhas telefônicas no Grande ABC. "O dia que comecei a vender telefone, não vencia a demanda" -- comenta.
Naquela época, Vicente Martins foi convidado a concorrer à presidência do Rotary Club de Santo André. Chegou a recusar o convite por diversas vezes, até que aceitou. Mas não acreditava que ocuparia o cargo. Foi nos compromissos assumidos durante a campanha que emergiu o ideário de fundar uma companhia telefônica para a região. A CTBC surgiu oficialmente em 1954. Para pôr a empresa em operação, Vicente Martins viajou com Oliver Tognato sócio da Tecelagem Tognato, para a Suécia para comprar equipamentos e conquistou junto às prefeituras o direito de instalação das linhas. Em agosto de 1958 foi registrada a primeira ligação da CTBC, que tempos depois destacou-se no setor de telecomunicações por ter sido a primeira companhia a utilizar o DDD (Discagem Direta à Distância) no Brasil. Vicente Martins conduziu a CTBC até 1973, quando a companhia foi estatizada, alternando a presidência com o amigo e parceiro Oliver Tognato. A CTBC voltou às mãos de particulares em 1998, adquirida pelo Grupo Telefónica.
Pérola entre as realizações de Vicente Martins, a Casa da Esperança, uma das organizações Destaque do Ano no PDE de 1999, arquiva fragmentos da história do empreendedor. Na verdade, remonta os tempos em que sonhava com a Medicina. "No dia que fazia exame para entrar na faculdade, conheci uma menina linda. Nunca mais a vi. O reencontro aconteceu 20 anos depois, quando ela já era internacionalmente conhecida como doutora Maria Eliza Bierrenbach Savoy, especialista em neurologia. Fiz questão de convidá-la para o projeto da Casa da Esperança" -- emociona-se. A Casa Esperança é um moderno laboratório de exames neurológicos.
Vicente Martins soube como ninguém dosar com parcimônia os investimentos em social e negócios rentáveis. Quando fez gestões para trazer o Corpo de Bombeiros para Santo André estava acertando tanto no cravo quanto na ferradura. Se por um lado a iniciativa trouxe tranquilidade para a população, por outro aliviou as pesadas taxas de seguro contra incêndio dos empreendedores. Apesar da intensa atividade profissional, Vicente Martins nunca deixou de render atenção extremada aos filhos José Vicente, Luiz Antônio e Flávio Caio, bem como a Maria José, com quem divide a vida há mais de 60 anos.
Os mais de 400 metros quadrados que a casa da família ocupa na Praça do Carmo são afinados ao sotaque interiorano que o empreendedor descarrega em conversas sobre o crescimento acelerado da região. "Isso aqui antes era uma beleza. Agora...” -- diz com reticência nostálgica. Para os filhos, Vicente Martins foi pai e mãe. Ofereceu à família inovações das mais variadas épocas: telefone, vitrola, TV. Apesar de estar sempre na vanguarda, não desprezava o piano clássico entoado pela esposa. Poucos foram os momentos dedicados ao lazer. A vida foi cunhada em trabalho, trabalho e mais trabalho.
Mesmo quando trocava o terno pelo uniforme de tênis, cercava-se de vínculos com a vida profissional. Por influência dos franceses da Rhodia, tênis era o esporte da moda e Vicente Martins costumava jogar com os executivos nas quadras do clube da multinacional ou na casa de Mário Bisoni, então diretor da Pirelli. Apesar de não perder as partidas da seleção brasileira nas várias copas que assistiu, Vicente Martins confessa que não é apaixonado por futebol. Como hobby empunha a leitura. Dispõe de biblioteca pessoal invejável, principalmente porque já devorou página por página das centenas de obras que mantém nas prateleiras. Só depois que deixou a CTBC decidiu apostar em lazer. Comprou apartamento na Baixada Santista, onde costuma refugiar-se.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!