É preciso desarmar o espírito de preconceitos para entender o que levou Ilda Lopes Ortiz a desistir do próprio casamento em favor dos absolutamente carentes. Nascida e criada em Mauá, essa mulher de 53 anos há uma década e meia trocou a estabilidade familiar pela missão de acolher idosos abandonados, doentes mentais desassistidos e alcoólatras. Ou seja, quem chegou à sarjeta. Relatos de assistência a engenheiros e advogados desiludidos com a família, profissão e até desmemoriados não faltam nas conversas de Ilda Ortiz. Conversas calibradas de tanta emoção que ecoaram até os ouvidos do consultor especial da General Motors, André Beer. O executivo é um dos mais recentes apoiadores da obra social comandada em Mauá por Ilda, batizada de Centro de Recuperação Camille Flammarion em homenagem ao discípulo francês de Alan Kardec. As contribuições pessoais do executivo chegam há quatro meses na forma de alimentos. "Soube que o senhor André faz parte de grupo espírita do cardiologista Eurícledes Zerbini" -- comenta a benemerente, também auxiliada em agosto com cheque de R$ 8.960 do Instituto General Motors.
André Beer acompanhou seu trabalho antes mesmo de conhecê-la. Nas visitas que fez ao QG assistencial presenciou o início da construção da nova enfermaria da casa, que terá 40 leitos. Prontamente se dispôs a ajudar. "Pagou todo o material" -- admira-se Ilda, ao mesmo tempo em que comemora a possibilidade de acomodar melhor os doentes. Ela conta que quando foi agradecer, Beer prontamente respondeu: "Estou fazendo por mim". A atitude do executivo arrancou lágrimas da alma fortalecida da benemerente.
Mas nem sempre as ações de Ilda Ortiz tiveram apoio de anjos da guarda de alto quilate. O início da saga foi com os amigos Joel Silva, Irani Antunes de Oliveira, Maria Angélica Mathias e Maria Aparecida Zachario, quando fundaram em 1987 o Grupo Espírita Francisco de Assis. Joel Silva era o mestre espiritual e Ilda Ortiz a aluna mais disciplinada. Com o tempo a harmonia se dissipou e nem assim Ilda desistiu. "O grupo se desentendeu e acabei sozinha no comando do projeto" -- rememora.
De família católica e infância retratada como filha de Maria, Ilda converteu-se ao espiritismo ao testemunhar o mais velho dos três filhos, Rinaldo Alexandre Moço, vencer fase conturbada por meio de orações e orientações religiosas. O comportamento alterado do rapaz, então com 12 anos, havia tirado a mãe da rotina tranquila de esposa de pequeno comerciante. De ajudante do mercadinho do marido, Ilda Ortiz passou a correr atrás de médicos, psicólogos e toda sorte de analista. "Ele se desinteressou da vida, não tinha equilíbrio emocional. Procurei de tudo para ajudar meu filho e só encontrei paz no espiritismo" -- conta. A calmaria gerada pela retomada da saúde do primogênito logo foi substituída por ânsia de doação. Ilda sentia-se impulsionada a realizar algo mais abrangente.
Ainda em companhia dos amigos, a benemerente iniciou contato com carentes interagindo com outros grupos de ação social. Acompanhava voluntários até a Praça Roosevelt, na Capital, onde ajudava a servir sopa quente a indigentes. Também colaborava com enfermeiros que se prontificavam a fazer curativos e cabeleireiros que davam nova aparência àqueles marginalizados. "Percebi que, apesar de todo esforço, eles continuavam sem moradia" -- lembra. Enquanto planejava criar uma casa abrigo onde pudesse receber os moradores de rua, Ilda Ortiz organizou campanha de alimentos para comunidades carentes mais próximas de sua casa. Cadastrou 35 famílias da favela do Jardim Oratório, em Mauá, às quais distribuía cestas básicas todo último domingo de cada mês. O trabalho era conhecido como Campanha Alta de Souza e exigia longas caminhadas pela cidade em busca de doações. Para as crianças Ilda ensinava evangelização sem aprofundar a religião espírita e montava oficinas culturais com aulas de pintura e artesanato, além de oferecer lanche.
O convívio com aquelas famílias contribuiu para que cada vez mais o grupo de Ilda Ortiz sentisse falta de espaço físico. Logo conseguiu alugar pequena casa no Bairro da Matriz, onde começou a abrigar indigentes. A ex-dona-de-casa não esperou ser procurada. Saía à caça de necessitados e os levava até o novo espaço. Na casa oferecia banho, corte de cabelo e unhas, roupas limpas, alimentos, encaminhava a médicos e providenciava documentação. Acolhia mendigos dos mais variados lugares, sem discriminação. Mesmo com a dissolução do grupo, Ilda continuou. "Além de correr risco, usava os recursos da minha família para pôr o projeto em andamento" -- conta.
A dedicação extremada rendeu críticas do marido Pedro Moço e mais tarde a separação. "Quis trazer meu ex-marido para a ação social e ele até tentou, mas não tinha o mesmo ideal que eu" -- comenta Ilda Ortiz. Mesmo com as relações pessoais tumultuadas e sem o apoio do grupo de amigos, ela prosseguiu com a tarefa de reintegrar pessoas na sociedade e na família e, principalmente, reerguê-las física, moral e espiritualmente. Foi poupada de guerra conjugal quando consolidou separação amigável com Pedro Moço, que ficou com os filhos.
Livre para se dedicar integralmente à causa que escolheu, Ilda Ortiz conquistou da Prefeitura em 1995 cessão de 6,7 mil metros quadrados em comodato e reconhecimento de utilidade pública para o centro de recuperação. Com a felicidade da vitória veio junto a decepção. Ela constatou que o índice de reintegração dos indigentes é mínima. Entre os internos há 35 casos de amnésia sem documentação.
Se antes precisava correr atrás de necessitados, Ilda Ortiz agora não dá conta da demanda. Sonha com a ampliação do Camille Flammarion, forte aliado das ações do setor de saúde pública e também da Secretaria da Criança, Família e Bem-Estar Social de Mauá. Ou melhor, batalha para transformar o lugar em casa abrigo com estrutura hospitalar. Para cumprir o papel de intermediário nos processos de reintegração social da municipalidade, o centro de recuperação recebe da Prefeitura R$ 88 por interno. "Hoje temos recursos disponíveis para 100 abrigados, mas estamos com 150 na casa" -- enumera.
O Camille Flammarion consome mensalmente R$ 15 mil de manutenção, sem incluir alimentação. A equipe é formada por 11 funcionários -- enfermeiras, cozinheira, lavadeira, monitores, secretária e médico -- e 15 voluntários. Além dos cuidados com saúde e higiene, a casa conta com pomar e horta para terapia ocupacional. Nos planos de ampliação está a oficina de trabalhos manuais.
Mesmo rodeada de cenários desoladores, Ilda Ortiz mantém humor invejável. Conta orgulhosa que conseguiu até recompor a vida amorosa ao lado de Ari Luiz de Faria, músico que nas horas vagas é parceiro das obras sociais. Confessa que quando olha para trás ainda se espanta com a transformação de vida que passou, mas que mantém relacionamento agradável com os três filhos, hoje casados, e netos. Além disso, não esconde que atualmente está mais voltada para a espiritualidade do que para o espiritismo. "Deixei aflorar meu lado esotérico" -- diz. Para praticar o aprendizado em tarô, numerologia e massagem de relaxamento, Ilda abriu clínica de terapias alternativas onde emprega tempo para gerar recursos que em boa parte acabam nas obras sociais do Camille Flammarion.
Apesar de se dizer realizada, a benemerente não esconde a frustração de não ter estudado. Deixou a escola na quarta série e desde então remói a vontade de cursar Medicina ou Assistência Social. Ilda não frequentou as salas de aula por imposição do pai, João Lopes Ortiz, que acreditada que estudos serviam apenas para rapazes. Em contrapartida, tem diploma dos mais diversos cursos endereçados à época para meninas: corte e costura, datilografia e cabeleireira, entre outros.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!