Quando acabaram de ouvir, recentemente, palestra sobre dependência química, 17 jovens de uma escola Senai do Grande ABC se levantaram imediatamente e pediram ajuda. Foi surpreendente para a classe e para os professores ver aqueles rostos transtornados e ao mesmo tempo esperançosos por sentir que alguém lhes estava oferecendo um ombro e uma palavra encorajadora diante da doença que acabavam de escancarar publicamente. O episódio só não chocou o palestrante, Ricardo Galhardo Blanco, embora o tenha emocionado, como, aliás, acontece há 18 anos. Não adianta. Mesmo há quase duas décadas lidando com orientação e recuperação de dependentes, cada encontro, cada depoimento mais profundo é suficiente para levar às lágrimas esse professor de 39 anos, cabelos escassos e já grisalhos, de fala mansa e cativante.
"Choro mesmo. São momentos difíceis para todos que estão nesse desvio e me envolvo muito com eles" -- relata Ricardo Blanco, que perdeu a conta de quantos jovens e adultos enfrentou em estado semi-terminal e os fez ganhar a parada da vida. "Não se recupera um drogado. Recupera-se um ser humano que carrega uma doença chamada dependência química. Procuramos reintroduzir valores, amor, sentimento de utilidade na vida dessa pessoa" -- ensina o professor de Relações Humanas e de Orientação Sexual e Educacional do Colégio Petrópolis/Pueri Domus de São Bernardo e também mestre de Educação Religiosa no Externato Enau de Ribeirão Pires. Uma grande medalha de Nossa Senhora ao peito é o primeiro sinal da funda religiosidade de Ricardo Blanco, denunciada, depois, a cada frase com a qual reconstrói a trajetória comunitária à qual se entregou, toda pavimentada em Deus. "Não importa qual a crença, todos chegam a Deus no final" -- assegura.
Salvar uma moçada movida a bebida pesada e droga idem não significa uma vida de glamour para o professor Ricardo, mas de tenacidade. Como empresário, ele dirige com os pais e quatro irmãos o restaurante Tudo em Família, em São Bernardo. É na pele de orientador, entretanto, que se realiza. Sua agenda transborda de compromissos na forma de palestras em escolas e entidades, empresas e clubes de vários Estados. Já chegou a magnetizar platéias até de Cabo Verde, na África, onde dependentes são tratados em sanatórios, pois são vistos como loucos. "Não funciona substituir droga por droga. Quando se tira o remédio, o buraco existencial ainda está lá" -- sublinha.
Toda a estratégia está alicerçada em transformar o dependente colocando-o de frente com seu interior, angústias e dúvidas, mas também diante de suas potencialidades. No final, não sai outra pessoa. Apenas é o mesmo ser humano com outra visão de mundo. "Drogas dão prazer e reduzem temporariamente algum sofrimento. Por isso precisamos substituí-las por algo também prazeroso, como amor, atenção, uma perspectiva de vida" -- orienta. A experiência com comunidades terapêuticas levou Ricardo Blanco a ser um dos fundadores, em 1994, do Gábata (Grupo de Apoio Bem-Aventurada a Toxicômanos e Alcoólicos). É nessa fronteira que se dedica de segunda a segunda, associando as ações dessa entidade de apoio a dependentes com a vida de líder pastoral. Ricardo também comanda o grupo de oração da Igreja do Rudge Ramos, em São Bernardo, e trabalha com encontros de jovens e de casais em dezenas de paróquias do Grande ABC e da Capital. Atua ainda com recuperação de drogados junto à Comunidade Gábata em São Roque, Interior paulista. A montanha de atividades chegou a arranhar o casamento com a também professora Valquíria, com quem fez um pacto: ela cuida agora da agenda. "Aos domingos procuro ficar com a família e num feriado ou outro me permito desaparecer" -- conta, citando o 12 de Outubro, de Nossa Senhora Aparecida, quando decidiu pescar em Bertioga. O pequeno filho Rafael, de cinco anos, ainda não cobra tanto a presença do pai quanto Nathália, de nove. "Troco a quantidade pela qualidade das poucas horas que passo com eles. Vamos ao shopping, brincamos, fazemos tricô em casa" -- diverte-se Ricardo Blanco, que às quartas-feiras ainda encontra tempo para ser apresentador de TV. Comanda às 21h30 o Gábata e Você, pelo Canal ABC 3 da Canbras/TVA.
Libertar jovens e adultos do vício soa como verdadeira missão. O momento derradeiro que fez Ricardo Blanco desviar do segundo ano da Faculdade de Administração de Empresas e mergulhar durante seis anos em estudos sobre dependência química foi em 1982, quando viu um amigo próximo afundar-se em PMD (psicose maníaca-depressiva) e rodar todos os centros de recuperação de São Paulo. Chegou a vê-lo andando nu pelas ruas, o que o abalou profundamente. Na época, vários outros colegas também tombavam como trapos humanos diante das drogas e bebidas. Ricardo decidiu, então, não estabelecer limites na dedicação para içá-los do poço. Hoje, o amigo maníaco-depressivo é um dos mais requisitados profissionais em seu ramo de atuação no Brasil. Na comunidade terapêutica do Gábata em São Roque, Interior paulista, 35% dos 320 dependentes que por ali passaram nos últimos seis anos foram resgatados ou estão em avançado estágio de recuperação. É um índice para estourar champagne. "A ciência prova que 15% das pessoas desenvolvem dependência química, desde a criança que experimenta informalmente o primeiro gole de cerveja incentivada pelo pai até adultos que potencializam a doença após os 20 anos. Desses casos disfuncionais, só 5% conseguem escapar" -- expõe o professor.
Não importa a quantos jovens Ricardo Blanco já salvou. Uma única vida libertada das drogas já é façanha e tanto nestes tempos em que a dependência rouba a existência de milhões de jovens e adultos que vivem a sensação de estar em um beco sem saída. Desorientados, em fuga, em protesto, cada um acreditando ter um motivo. O que o professor Ricardo ensina é que a redução da dependência envolve muito mais do que despejar culpas sobre problemas pessoais ou familiares. "É preciso muito diálogo e conscientização do que é a doença. Somente assim se pode buscar a libertação e, quando for o caso, um bom tratamento clínico" -- afirma. Os primeiros sinais de advertência para o problema começam a ser trabalhados com diálogo a fim de ser diagnosticada a origem do desenvolvimento da doença. Problemas de personalidade ganharam ênfase no decorrer dos anos, segundo Ricardo, com o agravamento dos conflitos sociais. "A droga sempre existiu. Mas a juventude de antes tinha valores mais pré-estabelecidos e um freio social forte, pois a sociedade realmente marginalizava o dependente e quem lidava com isso. Hoje, pais e professores perderam a autoridade sobre os jovens. Os amigos passaram a ser grandes ídolos que influenciam, para o bem e para o mal" -- adverte.
Como tudo tem um fim, a dependência chega a um momento de esgotamento, tal a maneira como fere o físico e o psíquico da pessoa. "O problema é quando se dá esse momento. Pode ser numa conversa na cadeia, dentro de um sanatório ou no leito de um hospital, em estágio terminal" -- racionaliza o professor, que se emociona ao rememorar vidas que viu lhe escaparem das mãos. O outro extremo, porém, também é verdadeiro. Gente que descobriu o ponto de retorno brilha agora em outros momentos. Para aqueles 17 jovens do Senai que levantaram a bandeira branca da rendição, a escola contratou um terapeuta para orientá-los junto com a família. No Gábata em São Roque, ex-dependentes se tornaram monitores e são coordenados até pela Febract (Federação Brasileira das Comunidades Terapêuticas). E no programa da Canbras/TVA Ricardo tem a mão forte de antigos viciados que hoje dão testemunhos e fazem palestras como ele.
Tanto empenho rendeu a Ricardo Blanco, em setembro último, o título de cidadão são-bernardense por homenagem da Câmara Municipal. Ele se mudou para São Bernardo aos nove anos, vindo do Tatuapé, na Capital. A próxima empreitada do professor é colocar em livro parte de sua trajetória. O título já tem: A Vida Fez o Professor. O ano também: 2001, quando a campanha da fraternidade da Igreja Católica trabalhará o tema Um Século Sem Drogas. Até a época está pré-marcada: maio, mês de Nossa Senhora. Se não der, há outra data mística: 25 de dezembro, Natal de Jesus Cristo e aniversário de Ricardo Blanco. Mais providencial do que isso seria impossível para esse fervoroso devoto das causas humanas e divinas.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!