Sociedade

Trajetória de um
espírito indignado

TUGA MARTINS - 05/12/2000

Quem ouve as histórias de menino nascido à beira dos rios Tietê e Paraná contadas por Luiz Roberto Alves pensa logo em páginas de romance brasileiro e sequer imagina que o cátedra de Crítica da Cultura da pós-graduação da USP (Universidade de São Paulo) tenha protagonizado enredos tão típicos do Interior do Estado. Dos tempos vividos na cidade natal de Andradina, o professor traz arraigado o sabor da jaca e da manga, além do gosto pela pesca, que hoje pratica às margens da Represa Billings ou em algum pesque-pague da região. Mas é no desenrolar da trajetória de vida que Luiz Roberto Alves exacerba os contrastes da infância simples com os anseios do espírito indignado que acolhe no peito.


Aos 53 anos, Luiz Roberto Alves integra um dos mais audaciosos projetos acadêmicos no Grande ABC. Graças a convênio firmado entre o Imes (Centro Universitário Municipal de São Caetano) e a USP, ele participa da criação de curso inédito de mestrado intitulado Gestão da Sociedade Regional, voltado a estudantes de Administração. "É uma invenção nossa para valorizar o esforço regionalizante do Grande ABC" -- registra. Esse tesão intelectual que Luiz Roberto tem pela região está ancorado em questões favoráveis à cultura, como a inquietação política e a mescla étnica da população local. "O Grande ABC só terá ótimo potencial cultural se vencer o provincianismo político-clientelista e se a pseudo-elite deixar de pensar cultura como produto de entretenimento" -- alfineta.


Aos olhos de quem acredita que cultura política ruim mata as boas políticas culturais, o Brasil é um país onde as modernidades não conseguiram resolver as injustiças básicas para sustentar o desenvolvimento: é a nona economia do mundo, mas ocupa 70º lugar em educação e 120º em saúde. Essas tristezas nacionais chegam a tirar Luiz Roberto Alves do sério. A fala do professor sai com ênfase e convicção rígidas, exaltadas até. A idéias que defende são cultivadas desde a juventude, tempo em que trocou a onda hippie por estudos e pesquisas.

Quando frequentava a faculdade não aderiu ao movimento flower-power nem às guerrilhas contra a ditadura militar. "Ouvi muita gente falar e depois desaparecer" -- afirma. Formou-se em Letras na USP e conquistou bolsa de estudos na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde estudou Filosofia de 1974 a 1976. "As culturas hebraica e judaica sempre foram muito importantes como referência para refletir a sociedade e a história" -- sublinha o professor. A vida acadêmica israelense deu a Luiz Roberto Alves o privilégio de estudos aprofundados ao lado de acervo de dois milhões de livros, mas também mostrou o horror da Guerra Santa, do terrorismo e da escassez de verde do Oriente Médio. "Fazíamos jornadas até uma pequena queda dágua cercada por quatro árvores que eram super admiradas" -- lembra.


No Brasil deu aulas de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no Viscondão, hoje Escola Estadual Terezinha Sartori, de Mauá. Foi diretor das escolas públicas General José Artigas, em Diadema, e Lauro Gomes, em São Bernardo. Em 1978 passou a integrar o corpo docente da Umesp (Universidade Metodista de São Paulo). Concurso para a cadeira de História da Cultura e Culturas Alternativas na USP levou Luiz Roberto a deixar os colégios estaduais e mais tarde a dedicação integral à USP o tirou da Umesp. 


No início dos anos 90 teve a oportunidade de realizar pesquisa sobre o humanismo renascentista na Biblioteca do Vaticano. Além da bolsa de estudos da Fapesp (Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Luiz Roberto Alves precisou de dezenas de cartas de recomendações para romper as seguranças protocolares do país papal. "Trabalhei ao lado da Capela Sistina, pesquisei Galileu, Abravanel, Marcelo Fitino e Leonardo da Vinci, que compõem universo de um dos momentos mais belos da história ocidental" -- afirma. Aliás, o professor oferece uma máxima para o envolvimento constante que mantém com a pesquisa: "Ensinar e pesquisar é a cachaça fundamental". Apesar da terminologia etílica, Luiz Roberto não bebe e também não fuma. Bons hábitos dos quais não abre mão.


Foi na Itália também que Luiz Roberto conheceu Sabine, estudante suíça de Educação e Religião, hoje sua segunda esposa. Pai de José Celso, de 28 anos, Ariel de 23 e Daniel de 20, Luiz Roberto enfrenta o desafio de criar a pequena Ana Sara de apenas um ano e meio. Divide o prazer das responsabilidades familiares com a leitura intensa. Diz que já não consegue mais distinguir livros de estudos de livros de lazer. A biblioteca pessoal com cerca de três mil livros está pulverizada entre o apartamento do primeiro casamento e a nova casa. Os títulos vão de estudos de linguagem a raridades sobre arte e culturas. "Perco a noção de quanto leio no decorrer de um ano" -- conta o professor.


O prazer pela leitura foi despertado cedo. Desde os 12 anos já consumia livros. Logo na adolescência devorou obras de José Engenieros e os clássicos O Pequeno Príncipe e Vôo Noturno de Saint Exupery. Aos 15 já debutava em poemas estrangeiros e se deliciava nos romances do primeiro momento de Jorge Amado, como Capitães de Areia, e José Lins do Rego, em Fogo Morto. Luiz Roberto Alves observa que o desinteresse das novas gerações pelos livros se deve ao que chama de passagem da leitura escrita para a leitura da imagem ou assimilação de grandes tópicos. "Temos de ser no mínimo solidários com o novo modo de ler" -- defende. A intimidade acumulada por anos com a arte de ensinar garante ao professor que o novo modo de ler não é pior e nem melhor, apenas diferente. "Rio muito com meus alunos" -- entusiasma-se.


Longe de acompanhar a sofreguidão pelo conhecimento por meio da leitura, a escrita também consta do cotidiano de Luiz Roberto, que assina quatro livros: Literatura e Inquisição no Brasil, sua tese de mestrado; Contos Populares, um apanhado de histórias do Grande ABC que está com vontade de reeditar; Humanismo e Exílio, fruto da experiência na Itália; e Culturas do Trabalho -- Comunicação para a Cidadania. Isso sem contar os mais de 150 artigos destinados a revistas e outras centenas para jornais. "Meu Deus, quanto escrevi até hoje?" -- admira-se, ao enumerar os trabalhos realizados.


A dedicação à pesquisa e ao mundo acadêmico, no entanto, não foi obstáculo para que Luiz Roberto Alves assumisse a então Secretaria de Educação, Cultura e Esporte de São Bernardo durante o primeiro governo de Maurício Soares, ainda filiado ao PT. A experiência em cargo executivo do Poder Público revelou-lhe que é possível transferir idéias do intelectual para a ação cultural. Selou a descoberta com novos modelos de Emeis (Escolas Municipais de Educação infantil) e esportes comunitários de bairros, entre outros. Na contrapartida, a vivência o credencia a transmitir em salas de aula o que aprendeu nos gabinetes, misturando a tudo isso conceitos dos críticos culturais Michel Serteau e Jacques Le Goff.


Numa mescla de catolicismo e protestantismo populares, Luiz Roberto Alves se identifica como cristão primitivo. "Tenho horror ao sectarismo" -- avisa. A proximidade com o cristianismo está substanciada na prática de Jesus no mundo médio-oriental, que o professor avalia como cultural revolucionário. Da mesma maneira sóbria, ouve música sempre atrelando os acordes à época da composição. Cita que em visita a Lipisig, na Alemanha, compareceu a concerto numa igreja onde Johan Bach era coordenador musical. Mas quem pensa que o perfil do acadêmico aceita apenas clássicos mundiais, nem imagina que entre suas preferências musicais está o maracatu tocado no Morro do Querosene, uma favela perto da USP. Dos grandes compositores, o professor desliza à voz brasileira de Sinval Silva e Carlos Cachaça. "Coisas como os falsos pagodes, sambas e axés dos anos 90 são insuportáveis" -- considera.


As decepções de Luiz Roberto se estendem aos gramados esportivos. Afirma que foi corintiano até há dois anos, quando a torcida do alvi-negro lançou-se com fúria sobre o ônibus dos jogadores. "Naquele dia o futebol morreu" -- lamenta, e justifica: "Esse negócio que se produz em torno da bola e dos jogadores não é bom". A postura sempre irredutível de Luiz Roberto Alves o levou a desviar de viagens desejáveis a Cuba e ao Chile. No primeiro caso por conta do modismo e, no segundo, em razão da imagem negativa de Augusto Pinochet. Para o professor, o melhor roteiro é o ecológico. "Fui educado para conviver com o mundo rural com cachoeira e mata" -- sonha. Porém, as passagens atuais têm destino para o aconchego da família, seja no Interior ou na Suíça.


A juventude de Luiz Roberto Alves abriu espaço à atração por esportes. Disputava inocentes partidas de futebol de várzea travestido de goleiro e atualmente pratica natação e condicionamento físico por orientação do ortopedista. Se por um lado não é fã da malhação, por outro se entrega às delícias do cinema. Charles Chaplin é o que considera genial e Glauber Rocha, com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, lhe propicia a maior empatia. Dos autores que já leu, o professor destaca Albert Camus entre os estrangeiros, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector entre os nacionais e José Regio entre os poetas. À mesa Luiz Roberto ainda carrega dúvidas: não decide entre o arroz com feijão e a culinária italiana.


Leia mais matérias desta seção: Sociedade

Total de 1097 matérias | Página 1

21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!
20/01/2025 CELSO DANIEL NÃO ESTÁ MAIS AQUI
19/12/2024 CIDADANIA ANESTESIADA, CIDADANIA ESCRAVIZADA
12/12/2024 QUANTOS DECIDIRIAM DEIXAR SANTO ANDRÉ?
04/12/2024 DE CÃES DE ALUGUEL A BANDIDOS SOCIAIS
03/12/2024 MUITO CUIDADO COM OS VIGARISTAS SIMPÁTICOS
29/11/2024 TRÊS MULHERES CONTRA PAULINHO
19/11/2024 NOSSO SÉCULO XXI E A REALIDADE DE TURMAS
11/11/2024 GRANDE ABC DOS 17% DE FAVELADOS
08/11/2024 DUAS FACES DA REGIONALIDADE
05/11/2024 SUSTENTABILIDADE CONSTRANGEDORA
14/10/2024 Olivetto e Celso Daniel juntos após 22 anos
20/09/2024 O QUE VAI SER DE SANTO ANDRÉ?
18/09/2024 Eleições só confirmam sociedade em declínio
11/09/2024 Convidados especiais chegam de madrugada
19/08/2024 A DELICADEZA DE LIDAR COM A MORTE
16/08/2024 Klein x Klein: assinaturas agora são caso de Polícia
14/08/2024 Gataborralheirismo muito mais dramático
29/07/2024 DETROIT À BRASILEIRA PARA VOCÊ CONHECER