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DALILA TELES VERAS - 05/02/2001

Não é só o século XX que se foi. Com ele também parecem desaparecer muitos dos resquícios de uma prática mortal que sempre trabalhou contra a difusão da cultura na nossa região: a atitude provinciana e medrosa de nossos criadores de cultura em vincular o produto de sua criação ao Grande ABC. Esse receio infundado também contaminou a iniciativa privada que, ainda que aqui instalada, pouco ou nada investia na cultura local e, quando o fazia, imbuída pelo tal temor, acabava optando por atrelar a imagem institucional a artistas da Capital.

O Poder Público, por sua vez, que deve cumprimento aos inalienáveis preceitos constitucionais, nem sempre cumpriu o papel de facilitador, fomentador, formador e preservador da memória e patrimônio, impedindo que manifestações artísticas locais conquistassem visibilidade, circulando com a mesma intensidade de sua produção.

Não obstante, a força e a diversidade da cultura aqui produzida contribuíram para sua própria auto-regulação sem que, para isso, tivesse que ceder a pressões pautadas por ideologias, tampouco a intervencionismos estatais e muito menos à pura e simples regulação de mercado. Os sinais dessa mudança já são bastante visíveis e representam indicadores para novos tempos nos quais a marca da regionalidade se faz presente. A cultura produzida na região já não se envergonha da origem e passa a grafar Do ABC sem nenhum constrangimento. Alguns dos sinais identificados com a marca cultural ABC: o uso do marketing cultural foi a opção do Banco Volkswagen para o projeto das 12 mil agendas de 2001 que encomendou à agência DEPTO e oferece como brinde, distribuído em vários cantos do País. A inclusão em suas páginas de trabalhos de seis poetas e seis artistas plásticos da região constitui o diferencial da iniciativa. Foram convidados os poetas Jurema Barreto de Souza, Zhô Bertholini, Dalila Teles Veras, Fabiano Calixto, Rosana Chrispim, Tarso M. Melo e os artistas plásticos Paula Caetano, Alexis Iglesias, Edson Lourenço, Paula Pedroso, Sérgio Guerini e Valdo Rechelo, comparecendo cada um deles com dois trabalhos que abrem cada um dos meses do ano.

O fato de todos os artistas residirem no Grande ABC, região onde a empresa tem sede, torna-se bastante emblemático pois, ao receberem a mesma dignidade de tratamento que se costuma emprestar à arte produzida nos grandes centros, deixa patente o reconhecimento dessas obras.


Literatura -- A literatura produzida no Grande ABC foi a estrela da abertura do projeto palavrapontocompontosem, no Sesc São Caetano, em novembro de 2000. Além de um sarau que contou com a presença de um poeta representante de cada uma das cidades do Grande ABC (Irineu Volpato -- São Bernardo, Margarete Schiavinatto e Milton Andrade -- São Caetano, Dalila Teles Veras -- Santo André, Guilherme Vidotto -- Mauá, e Paulo Franco -- Rio Grande da Serra) e da participação do cantor e compositor Luciano Garcez, uma exposição de textos ainda hoje ocupa todas as paredes disponíveis da sede do Sesc: A Cidade Vista por Seus Poetas e Cronistas, composta por textos de 20 autores selecionados por Dalila Teles Veras. São eles: Ademário Augusto de Souza, Alexandre Takara, Antonio Possidonio Sampaio, Aristides Theodoro, Cláudio Feldman, Dalila Teles Veras, Fabiano Calixto, Gilberto Tadeu de Lima, Guilherme Vidotto, Irineu Volpato, Jurema Barreto de Souza, Kleber Mantovani, Luís Alberto de Abreu, Margarete Schiavinatto, Paulo Franco, Semiramis Correia, Tarso M. de Melo, Valdecirio Teles Veras, Wagner Calmon, Wilma Lima, Zhô Bertholini.

O projeto palavrapontocompontosem, parceria entre o Sesc Carmo, o Sesc São Caetano e a Secretaria de Educação e Cultura de São Bernardo, conforme seus próprios organizadores, teve como propósito divulgar a palavra sob as mais diversas formas de criação, galáxia verbivocovisual que vai do repente ao rap, da MPB ao RPG, da palavra-som-e-sentido ao ruído, através de exposições, cursos e oficinas, saraus, intervenções, shows, musicais e eventos diversos em que se pode flagrar a presença transformadora da palavra em diferentes suportes, registros e modalidades artísticas.

A literatura local, expressa nos mais diversos estilos e gêneros, foi inserida nesse contexto através do tratamento digno dado à apresentação dos textos que compõem a exposição. De quebra, o Sesc ofereceu aos frequentadores um marca-página em sete versões, cada uma com um poema de sete poetas representando as sete cidades do Grande ABC.

O mesmo Sesc São Caetano marca este início de 2001 com o evento Plataforma ABC, mostra da produção artística local abrangendo a área da música e do teatro, além da intervenção Grafitando o ABC, dos artistas Tota e Kiko, ligados ao movimento hip hop. O projeto contou com a parceria das secretarias de Cultura locais, encarregadas da indicação dos artistas.

Compõem a mostra seis shows musicais com nomes de reconhecido talento (Célia, Luciano Garcez, Vasco Faé, Fernando Deghi, Grupo Operante Mr. Joça e Grupo Lundum); quatro peças de teatro adulto (A Fronteira do Acaso, com o Grupo Arruaça, de Diadema; Partida, com o Núcleo de Montagem Teatral da Escola Livre de Teatro de Santo André; AAA.AA, pelos alunos das oficinas de teatro do Departamento de Cultura de Rio Grande da Serra; e Última Instância, pelo Grupo Acalanto, de Ribeirão Pires) e seis peças de teatro infantil (O Pum de Micura, com o Grupo Caixote de Rua, de Ribeirão Pires; O Asno, com a Cia. Fraternal Arte na Rua, de Mauá; Dom Chicote Mula Manca, com o Grupo Rossinante; A Velha Cadeira e o Cavalo, com a Cia. Teatral Irmãos Nicolau; A Sátira de Chapeuzinho Vermelho, Cia. de Teatro Água Viva; e KNa, Cia. de Teatro da Fundação das Artes de São Caetano).

A parceria entre o Sesc e as secretarias de Cultura locais não é nova. A Mostra Regional de Teatro, para citar um exemplo, realizada com sucesso em julho de 1999, já apontava para esse esforço de regionalização do Grande ABC. 


Autores locais -- A Livraria Alpharrabio, que já possui em seu catálogo mais de 50 títulos de autores da região, realizou em 1999 o projeto 7 Anos 7 Cidades -- Culturas, que mostrou e discutiu vários aspectos da cultura no Grande ABC. Dessa mostra que durou exatos sete meses (um mês inteiro dedicado a cada uma das sete cidades da região) participaram diretamente das 50 atividades do projeto (exposições, recitais musicais, debates, workshops, depoimentos, performances teatrais e lançamentos de livros) mais de 100 pessoas, artistas e intelectuais da mais alta representatividade na cultura local. O material acumulado desse projeto (transcrição de palestras, depoimentos e debates) ultrapassa mais de 300 páginas digitadas. 

Em 2000, a livraria também promoveu dois projetos relevantes para o entendimento do processo cultural da região. O primeiro deles, O Imaginário Cultural na Região do Grande ABC neste final de século, levantou através de palestras, debates, mostras e publicações questões sobre o nosso imaginário, provocando reflexão e acumulando conhecimento a respeito. O principal eixo desse projeto está na publicação da coleção Imaginário, composta de nove volumes, três dos quais já estão no mercado. Essas obras, em forma de diário literário, refletem a vivência e a relação dos autores com suas respectivas cidades no Grande ABC.

Em outubro último, a Alpharrabio também lançou, em Diadema, o projeto A Literatura Mora ao Lado, uma campanha que visa fomentar a leitura e divulgar a literatura local, além de aproximar o escritor do leitor através de encontros, debates e palestras. Simultaneamente ao lançamento do projeto foi lançado o Abecês, jornal porta-voz da campanha, com artigos sobre livros e leitura, além de resenhas críticas das obras dos escritores da região. Já estão agendados diversos encontros de escritores para este início de 2001 em faculdades e bibliotecas da região.

Como se pode depreender, o Grande ABC passa -- lentamente, é verdade -- a não ter medo da marca regional, não mais encarando-a como peja, no sentido limitador de pitoresco ou folclórico, mas no seu sentido mais amplo de regionalidade, de localismo, bem como fator decisivo de formação de identidade e integração social.

Faltam ainda aos criadores de cultura mais incentivos para viabilizar seus projetos: escritórios especializados em marketing cultural e encaminhamento de projetos que possam se beneficiar de leis de incentivos fiscais, cursos sobre o assunto, ferramentas, enfim, que os habilitem também a bolsas de estudo ou estágios em instituições.  

De qualquer maneira, a fase de nossa dentição cultural já está superada. Esquecidas as ações entre amigos, o compadrismo e os favores, a cultura vai a campo em busca de parceiros reais para sua difusão e circulação. 

Entretanto, os artistas locais ainda não conseguiram erradicar por completo outra velha prática, decorrente exatamente de todas as mazelas apontadas: a do cachê que frequentemente ainda lhes é indecentemente negado, tanto pelas instituições de caráter privado quanto pelas secretarias de Cultura. As justificativas são muitas. "O show é a título de divulgação do seu trabalho", "Você não tem estrada", "Santo de casa não faz milagre", atingindo, inclusive, aqueles que comprovadamente possuem reconhecida trajetória profissional. Certamente que a estrada referida não é a estrada da arte, do talento, da pesquisa e do profissionalismo, mas pura e simplesmente a estrada da grande mídia e do carimbo de sucesso, que, convenhamos, nem sempre é sinônimo de qualidade.

Um levantamento minucioso reforçará ainda mais nossa convicção de que a Plataforma ABC (fazendo uso do achado feliz do Sesc) não serve apenas para aguardar os trens num lugar que, desde sempre, serviu apenas de passagem. Hoje, Plataforma ABC é onde se colocam os artistas e as artes. Não mais lugar de passagem, mas estação onde o sentido da viagem começa a inverter a mão de direção. 


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