O silêncio durante e após a segunda edição do ABC Folia é ardilosa dissimulação que pode alimentar a falsidade de que foram superados os transtornos da barulhenta edição inaugural, um ano antes. O carnaval temporão que Santo André transplantou com casca e tudo de Salvador proporcionou, na verdade, três noites de horrores que fariam corar de vergonha devassos protagonistas de Sodoma e Gomorra. Nem o som estridente dos grupos musicais conseguiu abafar o festival de abusos. Até porque houve momentos em que os próprios artistas, atônitos com o que viam do alto do palco armado na Avenida José Amazonas, resolveram paralisar a exibição em represália aos lances de anarquia absoluta e em solidariedade aos indefesos.
A violência que olhos atônitos acompanharam dos camarotes armados na passarela foi refresco perto do que ocorreu em áreas menos protegidas por um exército de 200 policiais e seguranças privados. Socos, pontapés, assédios sexuais, xingamentos, roubos, furtos e ameaças patrocinados por hordas de jovens escondidos no anonimato de grupos organizados formaram a coreografia mais contundente da avenida.
Um pouco distante dos holofotes, das câmeras de televisão, dos milhares de abadás que dividiram a passarela em bem nascidos e excluídos, a gravidade dos incidentes ultrapassou os limites da selvageria e se instalou em patamar ainda acima, o da barbárie. Substituiu-se o que seria a pista de foliões por implacável arena de delinquentes.
A avalanche de foliões deliberadamente violentos que se misturaram com espectadores comuns possibilitou contendas que transformam em coroinhas os integrantes dos grupos mais indomáveis das torcidas uniformizadas de futebol. O pau comeu solto sem que se tomassem providências elementares. Até porque o policiamento concentrou-se praticamente no núcleo da festa. Se mesmo ali, diante de tudo e de todos, a agressividade disputou as atenções com o espetáculo das bandas musicais, o que imaginar dos espaços mais afastados?
A vizinhança mais próxima da Avenida José Amazonas desta vez não reagiu aos decibéis extravagantes do som porque se tomou a providência de encerrar cada uma das três noites de folia assim que os ponteiros do relógio se encontravam à meia noite. A medida transmitiu a sensação pública de que o ABC Folia enquadrara-se em critérios de civilidade, como defendiam os moradores revoltados no ano passado, com o apoio do ombudsman da Prefeitura que, desta vez, silenciou. Pena que o que se viu ao rés do chão foi muita pauleira, no sentido criminoso do verbete.
O que fazer, nesta altura do campeonato, para colocar ordem nessa incubadora de incivilidades? É arrematada burrice permitir que a cada ano novos e cada vez mais violentos lances se multipliquem geometricamente em três noites de histeria coletiva e acreditar que os reflexos desse quadro vão se dissipar nos dias seguintes.
Primeiro, porque os maus exemplos não têm repercussões práticas apenas durante o prazo de validade do evento. A impunidade de hoje é o solo fértil de novas transgressões amanhã. Ou será que os promotores do ABC Folia jamais ouviram falar em tolerância zero, programa de segurança que o prefeito de Nova York aplicou para reduzir drasticamente os indicadores de criminalidade de uma das maiores metrópoles do mundo e no qual, para efeito de entendimento, quem atirasse papel fora do cesto de lixo público era punido na mesma intensidade de um batedor de carteiras?
Segundo, porque se está jogando na lata do lixo da omissão interesseira e imediatista uma programação cultural que, levada a local adequadamente fechado e com cobrança de ingresso que impeça desenfreada corrida ao ouro da bagunça, poderia entrar para o calendário de entretenimento regional com expressiva possibilidade de converter-se num show-business potencialmente milionário mas imprescindivelmente responsável. Até porque, já se conhece a história da galinha dos ovos de ouro.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!