Sociedade

Pequenina
revolucionária

WILSON SOUZA - 05/05/2001

A máxima que diz estarem os melhores perfumes nos menores frascos também se aplica ao ser humano. Ninguém é capaz de avaliar a capacidade de uma pessoa pelo aspecto físico, principalmente na era da tecnologia, quando impera a aptidão mental. Mas o reconhecimento público é fundamental, particularmente depois que o criador da Pop Art, o norte-americano Andy Warhol, afirmou que todas as pessoas têm direito a 15 minutos de fama. A recompensa, porém, é fugaz se não houver suporte na conquista. Eliana Borges Cardoso é mignon, tem apenas 1,54 metro de altura mas ações grandiosas. Nunca perseguiu a fama e já inseriu seu nome na história da Faculdade de Direito de São Bernardo. Sua façanha? Ser a primeira mulher a ocupar a direção da entidade, a primeira ex-aluna da instituição a dirigi-la e a mais jovem a ocupar o cargo máximo da organização. Pioneirismo é sua marca. 

Eliana Cardoso nasceu em Santo André há 37 anos e forjou a carreira a partir dos conhecimentos adquiridos com a Teologia da Libertação proposta por Leonardo Boff, além dos acontecimentos que marcaram o ápice do novo sindicalismo brasileiro. Dos estudos do antigo Primário na Escola Inah de Mello, em Santo André, ficaram marcados os primeiros passos do coletivismo no grupo de teatro e nas aulas de tricô. Aos 13 anos já participava da comunidade de jovens na Igreja Nosso Senhor do Bonfim, no Parque das Nações, onde conheceu o amigo e mentor frei Luiz Favaron. Foi com ele que Eliana tomou gosto pela luta dos deserdados e definiu sua profissão. Era 1979 e os sindicatos dos metalúrgicos de Santo André e São Bernardo tinham acabado de sofrer intervenção. Eliana participou ativamente na campanha de arrecadação de alimentos para os sindicalistas que se escondiam na igreja. "Os advogados frequentavam a comunidade e eu achava linda a luta em defesa dos sindicalistas. Quando participei de palestra sobre o AI-5 (Ato Institucional nº 5), decidi ser advogada" -- recorda a diretora da Faculdade de Direito de São Bernardo, no cargo desde o início do ano. 

A efervescência política e sindical nas missas, encontros e atividades na Igreja do Bonfim marcaram profundamente Eliana Cardoso. Filha de instrutor de mecânica e de dona-de-casa, ela é a primeira mulher, e quinta na sucessão, entre oito irmãos. Foi a primeira da família a frequentar curso superior, rompendo barreiras típicas da época. "Devo muito a minha mãe. Ela sempre incentivou as mulheres da família a estudar" -- relata. O pai, quando soube da intenção da garota de ser advogada, não aceitou de bom grado. "Somos uma família honesta" -- dizia, alegando preconceito em relação à profissão. Com o incentivo maternal e a facilidade proporcionada pelo pai como instrutor na escola, Eliana fez o então Segundo Grau no Colégio Pentágono, no curso de Processamento de Dados. Aos 16 anos começou a trabalhar como estagiária, através do CIEE (Centro de Integração Escola-Empresa), na antiga Firestone, e um ano depois outro pioneirismo marcou sua vida: pela primeira vez a empresa efetivava um funcionário com menos de 18 anos de idade. Eliana assumia o cargo de Controladora de Dados no Centro de Processamento de Dados da Firestone, onde permaneceu até 1984.

A participação política de Eliana Cardoso nos encontros da Igreja do Bonfim continuou, a ponto de ajudar na caça de público para dar cobertura aos sindicalistas que frequentavam as missas, driblando policiais de plantão na porta. Dentro da capela, enquanto fiéis acompanhavam a pregação religiosa, sindicalistas se reuniam no convento instalado nos fundos da igreja, em assembléias. Eram momentos de muita tensão e Eliana participava da corrente que mudaria parte da história política do País ao contribuir para a fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. "Legalmente não sou fundadora do PT porque era menor de idade, mas trabalhei duro para sua criação coletando assinaturas. Posso considerar-me uma das fundadoras do partido" -- relembra. O envolvimento partidário arrastou Eliana Cardoso para as disputas eleitorais que culminaram com a eleição do membro da comunidade Geraldo Granela para a Câmara de Vereadores de Santo André. Foi um dos mais votados da cidade no pleito de 1982. Mas as lutas internas pelo poder afastaram Eliana do convívio partidário. "Oficialmente ainda sou filiada ao PT, mas não milito há muito tempo" -- confessa.

O conflito sempre acompanhou Eliana Cardoso e foi intenso em 1980, quando prestou vestibular. Tinha acabado de ser promovida na Firestone e sua entrada na Faculdade de Direito atrapalhava os planos da empresa. "Passei no vestibular, mas não tinha dinheiro para pagar a matrícula. Quem me socorreu foi o frei Luiz Favaron, que retirou dinheiro do próprio bolso" -- lembra com voz embargada e lágrimas nos olhos. Ela recorda que, um ano após entrar na faculdade, o frei foi transferido para o Paraná, numa ação empreendida pelo governo para acabar com o foco de resistência contra o regime militar. Naquele período, Eliana Cardoso teve participação ativa nos acontecimentos na faculdade. Criou o Movimento Frente formado por grupos de esquerda e, pela primeira vez, a instituição assistiu uma mulher concorrer ao cargo de presidente do diretório acadêmico. Eliana encabeçou a chapa, mas não foi eleita. "Na última hora a chapa rachou e perdemos para os conservadores" -- cita. 

O trabalho na Firestone não satisfazia a inquieta quartanista de Direito. Em 1984 abandonou o alto holerite na multinacional para ser estagiária no escritório Rocha Miranda, em Diadema, onde passou a ganhar salário mínimo. Para deslocar-se de Santo André ao trabalho, comprou uma Yamaha RX 80 que ainda hoje é guardada na garagem. Foi no escritório Rocha Miranda que Eliana teve contato com Direito Trabalhista. Formou-se em 1985 e quatro anos depois prestou concurso para lecionar a disciplina Prática Trabalhista na Faculdade de Direito de São Bernardo. Tornou-se a primeira professora concursada da instituição. Antes dela lecionaram as professoras Ester de Figueiredo Ferraz e Vera Lúcia Machado DÁvila. 

As dificuldades eram tantas que nem banheiro feminino existia na sala dos professores. "Usava o banheiro masculino" -- recorda. Foi a vingança da persistência, pois antes desse pioneirismo Eliana enfrentara situação constrangedora. Dois anos antes fôra indicada para dar aulas na instituição, mas foi rejeitada pela direção sob alegação de que era mulher. O real motivo era a fama de agitadora. Hoje Eliana ostenta meiguice, adquirida com o amadurecimento, além de mestrado em Direito do Trabalho pela USP (Universidade de São Paulo) e especialização na Itália. O lado agitador ficou para trás, mas não a inquietude, que só se acalma quando a professora se transforma em mãe dedicada da filha Raissa, de oito anos. O lazer preferido é andar a cavalo, dedilhar o violão ou praticar turismo ecológico. Nos finais de semana compartilha com a filha a prática de hipismo clássico em haras de São Bernardo. Em casa ainda arranja tempo para auxiliar nos estudos de Raissa. 

Para quem se acostumou a amparar e brigar por excluídos, Eliana Cardoso sofreu o impacto da discriminação quando esteve na Europa. Em 1987, novamente com a ajuda de frei Favaron, recebeu bolsa de estudos da Cáritas, organização ligada à Igreja Católica. Partiu para a Itália para estudar Direito Sindical na Universidade de Milão a convite do professor daquela instituição Giuseppe Tarzia. Em terras italianas, graças às roupas que ganhou da comunidade local, pôde enfrentar o rigoroso inverno e se viu obrigada a frequentar locais reservados a imigrantes. "Senti na pele o que é preconceito" -- recorda-se. Após um ano de estudos retornou ao Brasil e desenvolveu trabalho de assessoria jurídica para vários sindicatos, entre os quais o dos Metalúrgicos do ABC, da Construção Civil de São Caetano e dos Professores do ABC. O envolvimento com o movimento sindical e a bagagem adquirida nos encontros da comunidade de base da Igreja conferiram a Eliana Cardoso despojamento e disposição para enfrentar o mundo acadêmico. Em classe foi a primeira professora a dar aulas calçada com tênis e a sentar-se sobre a mesa, impensável até então. Suas aulas eram concorridas e isso incomodava a direção. 

Desde que assumiu o comando da faculdade, Eliana Borges Cardoso vem surpreendendo por atitudes simples. Os educadores já não são obrigados a dar aulas de terno e gravata e sobre a mesa na sala dos professores são encontrados cachepôs com variedade de chás e lanches. Antes, só café e mate. Outra medida foi abolir a obrigatoriedade de autorização do diretor para fixação de cartazes no interior do prédio. Docentes, alunos e funcionários apreciam as mudanças. Foram eles os responsáveis pela escolha de Eliana para o cargo de diretora da faculdade. Pela primeira vez na instituição um candidato recebeu 80% dos votos da congregação (professores, alunos e funcionários) para formar a lista tríplice encaminhada ao prefeito. Nas disputas anteriores, os votos foram equilibrados. 

O clima otimista na gestão de Eliana coincide com a qualificação da Faculdade de Direito de São Bernardo pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Dentre os 243 cursos de Direito existentes no País, a OAB recomenda somente 52, entre os quais o de Direito de São Bernardo. "O corpo docente é muito qualificado" -- elogia a diretora. Dos 64 professores, 32 são titulados, 12 doutores e 20, mestres. Dos demais, 37,5% fazem mestrado e a faixa etária predominante do professorado é 40 anos -- 30% dos docentes são mulheres. O vestibular é disputado. Concorrem em média 12 candidatos por vaga, mas somente 480 são admitidos, compondo o total de 2,4 mil alunos por temporada. Para satisfazer essa clientela, Eliana sonha em melhorar as condições da biblioteca informatizando o acervo de 15.228 volumes e 9.985 títulos, além de criar sala especial de informática para os alunos. Projeta a instalação de um museu na faculdade e deseja incentivar a formação de coral e grupo de teatro, além de montar jornal e estimular os alunos a lerem mais. Alguém duvida que conseguirá?


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