Sociedade

Uma obra de arte
em cada prato

VERA GUAZZELLI - 05/02/2003

O argentino Max Murray certamente discorda das duas primeiras estrofes de uma das mais famosas músicas da banda Titãs. Se os roqueiros abusaram da metáfora para chegar à conclusão de que comida é pasto e bebida é água, o chef internacional que dá o tempero a quatro casas noturnas no Grande ABC coloca dois dos maiores prazeres da vida numa dimensão superior. Max Murray não se contenta em simplesmente fazer comida. Ele faz questão de transportar para cada receita o dom imaculado de transformar a culinária no prato principal de sua criação artística mais bem acabada. 

Para entender exatamente a concepção do chef sobre o ato de cozinhar basta comparar talheres a pincéis, panelas a telas e tintas aos ingredientes. A correlação se desenha rapidamente na cabeça de quem o observa em ação por pouco mais de 30 minutos. À frente do fogão, o homem responsável pelos cardápios dos bares Vera Cruz, Liverpool, Fonte Leone e do recém-inaugurado Pimenta tira, põe, resmunga, faz caras e bocas, dá ordens, olha feio para o prato e só alivia a expressão quando considera a obra completa. Não sem antes chamar a atenção do ajudante que deixou o bolinho passar do ponto ou picou a salsinha fora de padrão. Depois vem o arremate, o toque final que deixa a criatura com a cara do criador. 

O encontro de Max Murray com a arte culinária tem explicações genéticas. Tanto o avó quanto o pai eram cozinheiros de mão cheia e gostavam de preparar reuniões para a família regadas à fartura de comida. Foi, no entanto, um capricho do destino — obviamente amaldiçoado à época — que transformou o quase médico em gourmet de primeira grandeza. Ele cursava o quarto ano de Medicina na Universidade de Buenos Aires, mas teve de interromper os estudos e deixar a Argentina por adversidades ideológicas em meados da década de 70. O período era complicado porque as ditaduras militares fervilhavam em toda a América do Sul. 

Max Murray veio para o Brasil, mas o País também vivia anos de chumbo e não foi possível prosseguir o curso. Como precisava ganhar a vida em terra estranha, lançou-se a pescar lagosta nos mares de Búzios. “Conheci o pessoal dos restaurantes finos do local e logo passei de fornecedor a comprador” — descreve com aquela expressão característica de há males que vem para o bem. O argentino de 47 anos, que frequentemente utiliza frases atribuídas à sabedoria popular para justificar passagens ou descrever reações, montou seu primeiro restaurante na paradisíaca cidade do Rio de Janeiro. Começou atendendo os turistas conterrâneos que aportavam por lá, gostou do negócio e enterrou definitivamente bisturis e estetoscópios. 

O debut gastronômico em terras fluminenses foi o primeiro passo de trajetória profissional cíclica que começou no Brasil no final dos anos 70 e quase três décadas depois aportou justamente no Grande ABC. Depois de ingressar na rede francesa Marriott, no Grupo Sheraton, estudar Nouvelle Cusine na Catalunha (Espanha) e comandar casas famosas em São Paulo como La Traviatta, Gianni e o Mestiço, mudou-se definitivamente para Santo André. A cidade não tem tradição gastronômica e a explosão de bares, restaurantes e casas noturnas ainda é bastante recente para subsidiar diagnósticos positivos no segmento. De qualquer maneira, Max Murray garante que encontrou na região algo que sempre procurou ao redor mundo: ambiente para extravasar a experiência acumulada em quase 30 anos. 

“Cheguei apenas para montar o cardápio, me envolvi com a organização dos bares e não pretendo retornar a São Paulo tão cedo” — garante o chef, que supervisiona o treinamento diário dos 150 funcionários das quatro casas noturnas. Max exige tudo impecavelmente nos conformes. Das toalhas à troca dos talheres para pratos específicos. Como nenhum detalhe pode ficar de fora, os garçons fazem até lição de casa: levam o cardápio para estudar porque devem conhecer a elaboração de todos os pratos. Eles precisam ter na ponta da língua respostas para quaisquer dúvidas dos clientes. 

Max Murray costuma utilizar três meses para chegar ao cardápio ideal de uma casa. Todas as receitas são catalogadas com ficha técnica, foto de apresentação e manual de preparo e montagem do prato. O trabalho vai além da habilidade profissional porque exige a pitada de sensibilidade indispensável para evitar exageros capazes de espantar a freguesia. O Fonte Leone foi inspirado numa vila toscana e oferece 80% de pratos originários da culinária italiana. Já o Pimenta, como o próprio nome sugere, acolhe a comida caliente de regiões do México, Jamaica, Cuba, Tailândia e até Norte do Brasil. Parece óbvio. Mas a diferença está exatamente em tornar o óbvio desejável, em não deixar as receitas passarem do ponto. 

Qual a fórmula ideal? “Pesquisa, experimentação, criatividade e mão na massa” — generaliza o chef cuja marca registrada são os cabelos presos num rabo de cavalo e o inseparável chapéu de palha que só perde espaço para o exemplar branco de mestre-cuca. Max é também professor licenciado da Escola de Hotelaria e Turismo do Sindicato dos Restaurantes, Bares e Hotéis de São Paulo e fornece consultoria para pequenos e médios empreendedores interessados em abrir negócios. A eles costuma dar orientações sobre gestão, funcionamento, armazenamento, compra e atendimento e nunca deixa de utilizar um de seus bordões preferidos para resumir os ensinamentos. “Nesse ramo, somente o olho do dono engorda o boi” — enfatiza. 


Cozinha de pau — As frases de efeito também têm espaço garantido para descrever detalhes da vida pessoal do chef. A cozinha experimental que montou em sua casa no Bairro Jardim, em Santo André, está equipada com todos os apetrechos que fariam a felicidade do mais aficcionado dos gourmets. São panelas, facas e talheres para todas as funções. Faltam apenas ser inauguradas. Sem tempo disponível, o chef quase nunca utiliza o espaço que idealizou para refugiar-se na busca por inovações. As refeições no lar do pai de quatro filhos, separado há dois anos, costumam resumir-se a uma xícara de café. Recentemente ensinou a empregada a servir o café da manhã completo, desses de hotel estrelado, mas ainda não conseguiu testar o aprendizado. 

Obviamente em casa de ferreiro o espeto é quase sempre de pau. Nada desagrada mais a Max Murray do que descobrir a falta de dedicação na elaboração de um prato, a falta de carinho que dá sabor especial a qualquer receita simples. Talvez por possuir a habilidade nata de reconhecer as falhas só de bater o olho, ele raramente é convidado por amigos para almoçar ou jantar. Ninguém quer se arriscar a ganhar o olhar de reprovação do mestre. Vai que o tempero não agrade ou que as combinações deixem transparecer total amadorismo. “Puro preconceito. Adoro comer qualquer coisa que outras pessoas preparam para mim” — avisa em tom quase de súplica. 

Max Murray também coleciona suas contradições. Aprecia carne como todo bom argentino, mas não gosta de preparar picanhas. Quando pode escolher, prefere empenhar o talento em risotos e no camarão à siberiana: os crustáceos são refogados na manteiga com pepino e champions, depois flambados na vodca e salpicados com mistura de pápricas doces e salgadas. Também tem predileção especial por sobremesas. O petit gateau, bolo mal passado com calda de chocolate, é seu preferido. Ainda como todo bom argentino, inflama-se ao falar de futebol. A maré, no entanto, não está grande coisa. Mas como sempre existe um dito popular para salvar a pátria, Max Murray consegue até filosofar sobre a derrocada do seu Palmeiras que despencou para a Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro. “É preciso dar um passo para trás, antes de andar dois para frente” — arrisca, com a imediata solidariedade do fotógrafo de LivreMercado, companheiro de infortúnio.


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