A Bíblia ensina que a fé é capaz de mover montanhas. A vida de Claudio Demarchi, no entanto, derivou por caminhos pouco alentadores antes de trazer à tona um dos símbolos da sapiência do livro sagrado. Esse homem responsável pela requintada cozinha do Buffet Piazza Demarchi, em São Bernardo, demorou pelo menos 25 anos para entender que o prazer de viver está muito além da efêmera euforia aditivada pela dependência química. Ao encontrar-se na religião, literalmente renasceu. E ao externar o talento culinário — provavelmente genético e até então adormecido — encontrou o ingrediente que faltava para temperar o difícil reencontro com a paz de espírito.
Hoje com 45 anos, Claudio Demarchi declina do medo e até da vergonha de expor o passado. Amadureceu o suficiente para enfrentar eventuais manifestações de preconceito, porque agora conhece a diferença entre ser prisioneiro de ilusões e um dependente declarado de Deus e do trabalho. Da espiritualidade ele extrai a força de vontade imprescindível para abominar o domínio implacável do vício em prol da dádiva divina de simplesmente ser. O trabalho ajuda a cultivar a dignidade recuperada a duras penas e a perpetuar o nome da família que é referência em uma das mais italianas combinações da mesa: o frango com polenta.
A família, aliás, está em altíssima conta com Claudio Demarchi. Ele reconhece o quanto o apoio incansável dos irmãos André, Claudinei e Cleide e da mãe Dona Jô — o pai André Demarchi é falecido — foi fundamental na reconstrução de sua trajetória. Também cita o amigo Clauzer, a pastora Nilda e Deus. Sabe que os fez sofrer e que as amarguras deixaram marcas, por isso alegra-se diuturnamente diante dos gestos de afago materno ou de cada sorriso fraternal, seja qual for o motivo. “Saber que minha família confia em mim e que posso olhá-los de cabeça erguida é minha grande recompensa” — confessa sem a mínima intenção de escamotear as lágrimas que rolam livremente pela face.
Quem observar por alguns minutos a relação de troca e de carinho que existe entre os irmãos Demarchi terá dificuldades para compreender os motivos que levaram Claudio a desviar do caminho previamente planejado pela família de prósperos comerciantes. Ele não foi mais uma vítima da pobreza ou da desestrutura familiar, causas que comumente empurram os jovens para a dependência química. Mas, como todo garoto no auge da auto-suficiência, abusou da displicência e da necessidade de aventuras. “Você acha que consegue se controlar e é facilmente controlado pela busca do prazer fácil. Quando se chega a esse estágio, se tiver de fazer uma escolha, você fica com a droga” — relata.
As palavras tão sinceras quanto estarrecedoras exorcizam os vínculos com o passado e recheiam os testemunhos frequentes na igreja evangélica Estrela da Manhã. Foi a comunidade religiosa que o alçou do fundo do poço, após longa e dolorosa peregrinação por clínicas de recuperação de toda espécie. “Em vez de virar o rosto, é preciso ajudar, dar a mão, sempre” — desabafa com total conhecimento de causa. Como aprendeu a encarar com naturalidade uma etapa da vida que não pode simplesmente ser empurrada para debaixo do tapete, Claudio faz sua parte também fora da igreja. Amigos, amigos dos amigos e até clientes do Piazza Demarchi costumam solicitar a força das, hoje, sábias palavras para lidar com problemas relacionados à dependência de filhos ou entes próximos.
Militante da vida — Há fortes sinais de gratidão eterna no papel de militância ativa que Claudio Demarchi assumiu perante a congregação. Também existe a celebração constante ao presente celestial da segunda oportunidade. Esses dois estágios de reconhecimento materializam-se nos 500 pratos de sopa distribuídos semanalmente às comunidades carentes de São Bernardo. Auxiliado por duas funcionárias do Piazza Demarchi, Claudio prepara pessoalmente o caldo que mata a fome dos menos favorecidos e alimenta sua alma de cozinheiro.
O ritual da sopa é sagrado e consome no mínimo cinco horas de trabalho, sempre nos dias de folga do bufê. Claudio Demarchi conta com a ajuda dos irmãos também na empreitada do voluntarismo, já que os ingredientes da sopa são quase que totalmente patrocinados pela casa que dirige junto com a família. A distribuição é sempre feita pela igreja Estrela da Manhã, que tem também a responsabilidade sobre toda a logística de encaminhamento do donativo.
A culinária é praticamente o mundo de Claudio Demarchi. Ele cresceu na cozinha do Restaurante São Judas Tadeu — onde a mãe comandou forno e fogão por anos a fio — e só adotou a profissão há oito anos, exatamente à época da inauguração do Buffet Piazza Demarchi. Desde então, deixou aflorar o lado gourmet, embrenhou-se em cursos de especialização culinária e abandonou de vez outras possíveis habilidades profissionais como publicidade e propaganda, moda, decoração e até ourives. Todas essas carreiras haviam sido tentadas, mas em nenhuma Claudio encontrou o prazer que sente ao transformar ingredientes comuns em pratos sofisticados.
“Cozinhar me traz cada vez mais satisfação” — confessa. Fosse o contrário, seria incapaz de permanecer tantas horas na cozinha do bufê, sem perceber o tempo passar. Nos dias de festa, ele costuma chegar ao Piazza Demarchi por volta das 10h e só abandona o posto de madrugada, entre 1h e 2h, período em que todos os pratos já foram servidos e que as festas geralmente caminham para os momentos finais de descontração. No papel de chef, Claudio supervisiona tudo o que sai da cozinha. Antes disso, porém, já deu seu toque especial a molhos, caldas, sobremesas, batidas e outros itens que faz questão de sempre preparar.
Acostumado à rotina de restaurantes desde criança, Claudio incrementou o know-how genético para tocar o bufê com os irmãos desde que os restaurantes do Grupo Demarchi foram divididos entre a família. A cada seis meses renova pelo menos 60% do cardápio e introduziu as famosas degustações para clientes que contratam festas. Nesses eventos os futuros anfitriões experimentam pelo menos 35 iguarias entre entrada, prato principal e sobremesa e escolhem o que será oferecido aos convidados. A iniciativa contribui para personalizar as recepções e evita que o chef acabe por sugerir pratos de sua predileção. Claudio, é lógico, revela as preferências: insallata prima com mussarela de búfala, folhas verdes, tomates secos e molho à base de queijo; pirosky, massa recheada de cogumelos e ervas finas, além de salmão ao molho de maracujá e da sinfonia de pêra, sobremesa que leva fatias de pêra cozida, sorvete de creme, calda quente de chocolate, lascas de amêndoas e hortelã.
Todas as receitas incluem o toque indispensável de dedicação e criatividade de quem está sempre com a mão na massa. A recompensa costuma vir em forma de festas, muitas festas. São no mínimo quatro eventos por semana com algumas datas disputadas por três ou quatro pretendentes. O Piazza tem recepções já agendadas para 2004. Mas há também o lado humano que aflora em meio a tanto trabalho. Claudio Demarchi é cativante e não raro trava amizades que rendem até postais de casais, que mesmo em lua-de-mel querem agradecê-lo pela festa que ajudou a realizar. A mais recente mensagem veio da Austrália, dos pombinhos que foram celebrar as primeiras semanas de vida a dois na terra dos cangurus.
Em meio à dedicação ao trabalho e a devoção à igreja, Claudio Demarchi também encontra tempo para levar uma vida normal. Solteiro, não bebe, não fuma e frequenta bares, boates, clubes e praia sem qualquer temor de reencontrar o passado. Os desencontros do passado, aliás, o ensinaram a apreciar atos prosaicos como andar na chuva num domingo pela manhã ou ouvir uma boa música. Já a lição tirada de tudo isso acalenta seu principal sonho: o de abrir uma clínica de recuperação para dependentes químicos, para ajudá-los na difícil travessia da alucinação para a realidade por meio da valorização da vida. “É difícil, mas não impossível” — garante.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!