Sociedade

Democracia de araque,
eis o que a região pratica

DANIEL LIMA - 24/03/2003

Estamos tão distantes da democracia da informação quanto os Estados Unidos e o Iraque da sensatez nesse confronto bélico no Oriente Médio. 

A comparação não é simples recurso metafórico. Retiro da guerra no Iraque a inspiração para reiterar o quanto o capital social está fragilizado no Grande ABC. Na manhã de sábado assisti pela GloboNews, diretamente de Doha, no Catar, a entrevista coletiva do general Tommy Franks, comandante das forças dos Estados Unidos, sabatinado por exército de jornalistas do mundo inteiro. 

Tommy Franks respondeu a todas as perguntas -- muitas das quais extremamente incômodas -- sem jamais perder a serenidade e, mais que isso, sem abusar da inteligência dos entrevistadores nas questões mais candentes, como táticas de guerra. Optou sempre o comandante pela franqueza da necessidade de não revelar detalhes que pudessem comprometer o planejamento, em vez de verbalizar evasivas desrespeitosas. 

Enquanto em pleno teatro de operações de uma guerra estúpida o comandante da nação mais poderosa do mundo expunha-se em rede mundial de televisão a uma diversidade de profissionais de comunicação, no Grande ABC as reuniões do Consórcio de Prefeitos e da Agência de Desenvolvimento Econômico, só para exemplificar, excluem qualquer participação da mídia. Questionar os resultados, então, nem pensar. 

Qualquer observação que se faça sobre determinadas atuações de agentes políticos, empresariais, sindicais e sociais, por mais ponderada que seja, é encarada como afronta. A unilateralidade é a marca registrada. 

Durante a trajetória do Fórum da Cidadania, este jornalista comeu o pão que o diabo amassou a partir do momento em que, com base em fatos, passou a alertar sobre os riscos que a entidade corria. O consenso do Fórum incluia o engajamento compulsório da mídia. 

O pensamento único aplicado durante regime ditatorial é menos nocivo porque tem o carimbo da desconfiança. Num regime supostamente democrático, ganha a etiquetagem de verdade.

Vá lá que há questões que, como nos quartéis-generais, precisam ser mantidas em segredo. Tudo bem. Mas e a prestação de contas à comunidade? Quando nossas autoridades se dispuseram, em conjunto, a submeter-se à interlocução com jornalistas? Na Câmara Regional, então, nem se fale. Os encontros sempre se pautaram como algo parecido a um piquenique de engravatados onde sobram promessas e escasseiam realizações. 

Coletivas de imprensa para tratar de questões relevantes da região são miragens. Jamais se realizam. Quando, por exemplo, os sete prefeitos que comandam o Consórcio Intermunicipal vão marcar com antecedência um encontro com a mídia para relatar o desempenho da entidade e estarão preparados para indicações? E os dirigentes da Agência de Desenvolvimento Econômico? E os sete presidentes das associações comerciais? Os quatro dos Ciesps? E tantos outros? Quando, quando, quando? Ou se acham, todos eles, absolutamente intocáveis? 

Ainda outro dia este jornalista, a editora-chefe Malu Marcoccia e a repórter-editora Vera Guazzelli, de LivreMercado, tiveram ao vivo e em cores a prova do quanto nossos dirigentes políticos estão despreparados para interlocução qualificada. A entrevista que fizemos com o prefeito Luiz Tortorello, para produzir a Reportagem de Capa de março de LM, teve momentos de tensão.

Sobremodo no primeiro dos três módulos, em que o encontro versou sobre a decadência econômica do Município, o prefeito Tortorello comportou-se em vários momentos como quem estivesse diante de abelhudos contumazes. Onde já se viu -- deve ter-se indagado o prefeito, do alto de sua autoridade -- esse cara vir até mim e contrapor aos meus dados econômicos vazios informações fundamentadas? Só isso justificaria a indelicadeza e a agressividade do dirigente público. 

Gravações do encontro provam um destempero que não é exclusividade de Luiz Tortorello. Na verdade, a reação é generalizada entre quem se coloca no pedestal da glória efêmera do poder. E vale também para dirigentes empresariais e sindicais que, contaminados pelo mesmo vírus, adotam como regra não o confronto qualificado de informações, mas a via única de declarações geralmente enviesadas pelo corporativismo e interesses eleitorais. 

Recentemente, a Prefeitura de Santo André perdeu oportunidade de reunir a imprensa para esmiuçar a questão do IPTU tão controvertido e tão mal-entendido. Custaria chamar a mídia? Custaria reunir o secretário de Finanças, o prefeito e outros secretários eventualmente importantes na consolidação de informações sobre a Administração? Teria melhor maneira de acabar com os excessos que cercaram o movimento? É claro que não. 

Não foi por meio de uma entrevista coletiva que o prefeito Maurício Soares decidiu renunciar ao cargo? Talvez tenha faltado mais profundidade ao encontro, com a decisão sendo acompanhada por espécie de prestação de contas com direito a questionamentos, mas o básico foi feito. 

Por que o prefeito Luiz Tortorello não reúne seu staff econômico e chama a mídia para oferecer contraposições que visem, como pretendemos, a levar conhecimento aos interessados? Sim, porque até agora São Caetano não consegue responder à grande interrogação: qual vai ser o seu futuro econômico diante da decadência comprovada de indicadores produtivos? 

O comandante das forças norte-americanas no Iraque poderia ser requisitado, assim que a estupidez dessa gerra terminar, para dar um curso intensivo de relações com a mídia. A missão será menos desgastante para ele. E provavelmente estressante aos supostamente democratas regionais avessos a contraditórios.


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