Uma das heranças do modo Fernando Henrique Cardoso de governar, e sobre o qual o sucessor Lula da Silva tem dinamitado com simplicidade, é o estilo garboso dos deslocamentos, a elegância dos discursos, o cavalheirismo impecável com interlocutores escolhidos a dedo, o sangue frio para suportar situações candentes; enfim, o fairplay de corte europeizado e primeiromundista que parece dividir o mundo entre os bem-aquinhoados e os mal-ajambrados, os bem-nascidos e os mal-aventurados.
A troca de comando da Presidência da República revela com nitidez cristalina nesse campo de estilos o quanto Fernando Henrique Cardoso contrasta com Luiz Inácio Lula da Silva. FHC é arrasadoramente muito mais vendável como produto nacional bruto de intelectualidade a serviço do bem do que o despojamento da cabeça aos pés de um Lula da Silva que nem os ternos sob medida escamoteiam origens suburbanas.
Nada mais cretino esse conceito arraigado pela valorização acrítica do pretensamente sofisticado e pela desqualificação ou suspeição discricionária ao supostamente provinciano. Exatamente por acreditar nessa fórmula supostamente mágica de distinguir competências pelo invólucro engomado e pela verborragia emplumada em detrimento da embalagem mal-apetrechada e pela linguagem inclinadamente popular que o Brasil entrou pelo cano nos últimos oito anos.
De fato, Fernando Henrique Cardoso é um homem de fino trato, bem dotado intelectualmente, portador de exuberância teórica que o coloca sem favor algum entre espécimes de se admirar como grande protagonista da intelectualidade internacional. Soma à didática e à imagem o imprescindível poliglotismo para navegar por águas estrangeiras e por céus multinacionais.
De fato, Lula da Silva é um homem de trato tosco, moldado intelectualmente em maratonas de encontros com velhos amigos de guerra sindical e nem tão velhos companheiros de academias anticapitalistas. Lula da Silva foi doutrinado sob a ótica de pragmatismo arrasador que o instala entre espécimes mais exóticas do cenário nacional e internacional, especialmente porque seu currículo de migrante e metalúrgico contrasta com a nobreza da árvore genealógica da maioria dos chefes de Estado.
É nesse ponto, paradoxalmente, que Lula da Silva tem causado tanto sucesso internacional. É espécie de estranho no ninho, como Lech Valessa, do Sindicato Solidariedade, nos anos 80. Internamente, nos salões mais tradicionais, ainda o olham de esgueio, lhe fazem gentilezas e mesuras, mas, no fundo no fundo, os anfitriões prefeririam mandatário de estirpe mais tradicional e que combinasse com o surrado refinamento da maioria dos convidados.
Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva são exemplares emblemáticos de modelos fartamente reconhecíveis no dia-a-dia corporativo -- governamental, social e econômico. A avalanche de réplicas comportamentais que saltaram da incubadora dos dois mandatos de FHC solidificou-se como praga nos ambientes do Grande ABC. Se por tradição ibérica as aparências sempre se sobrepujaram à essência, o que dizer então dos anos FHC?
Quantos e quantos almofadinhas de palavreado rebuscado mas de praticidade nula, quando não aparvalhada, fizeram nome por estas plagas e deixaram todos prostrados diante do caos econômico e social originário do Palácio do Planalto e fertilmente ramificados em todas as instâncias de poder?
Como apenas há pouco tempo FHC foi apeado do poder que tentou transferir a José Serra, essa fauna de gente finíssima continua a marcar presença. Muitos deles não têm o pedigree intelectual minimamente desejável mas tentam disfarçar o estágio de aprendizes de supostos bons modos porque jamais poderiam perder a carona da moda.
Não é assim por acaso com os candidatos a craques ou pretensos craques de futebol que devassam os gestos e as atitudes de Ronaldos, Rivaldos, Robinhos e tantos outros, e também de jovens em busca de identidade que se jogam de corpo e alma no colo dos cantores da moda, ou os anônimos marginais imitadores baratos da obra rocambolesca dos Fernandinhos Beira Mar?
Nada mais desastroso para a cultura nacional que o espólio de Fernando Henrique Cardoso. Ao levar para o Palácio do Planalto o ar aristocrático e sólidos conhecimentos sociológicos, Fernando Henrique Cardoso cristalizou o anteparo a um governo infestado de descalabros técnicos, quando não éticos. Seus antecessores o consagraram antecipadamente como modelo ideal de comportamento. Itamar Franco era tão instável para os padrões de chefe de Estado como o esvoaçar de seu topete fazedor da alegria de chargistas. Fernando Collor de Mello era tão confiável e discreto quanto um veículo sem freios e rodas barulhentas. Ou seja: FHC significava, entre outras expectativas, a redenção da auto-estima de um País que acabara de descobrir a invulnerabilidade -- artificializada, como se sabe -- da moeda.
Os clones caricaturados de Fernando Henrique Cardoso estão por todos os cantos corporativos também e atuam como salva-vidas que nem saber nadar. Engravatados, meticulosos, postiços no falar e no vestir, eles acreditam que decorar alguns trechos de obras famosas, estabelecer diálogos em que a serenidade suplanta largamente a inventividade e se diplomarem em cursos intensivos contam muito mais pontos do que profissionais menos nobres de vestimentos, mais profundos nas interlocuções, mais estridentes nos confrontos de idéia e muito mais produtivos.
O modelo fernandohenriquista é uma fraude na corrida contra o relógio para construir um País materialmente mais forte, municípios mais competitivos, empresas mais azeitadas. O Brasil cansou de comer mortadela e arrotar peru nos anos FHC. Espero que todos tenham aprendido a lição e reparem mais nos agentes públicos, privados e sociais. Há canastrões demais no mercado.
Total de 1097 matérias | Página 1
21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!