A trajetória de Ronaldo Pinto da Silva é muito parecida com a de Marcelo Rubens Paiva, autor do best seller Feliz Ano Velho. Os dois encontraram no poder das palavras espécie de fórmula mágica para dar novo sentido à vida depois de acidentes que os tornaram tetraplégicos no auge da juventude. Aos 27 anos e seis após a tragédia, o andreense Ronaldo Pinto acaba de colocar o ponto final em seu primeiro livro. É uma autobiografia densa, recheada do realismo de quem sentiu na pele que a vida, às vezes, tem a triste mania de imitar a própria vida.
Apesar das similaridades, há uma distância de gerações e até de oportunidades entre Ronaldo e Marcelo. Ronaldo tinha apenas seis anos e não deve se lembrar da época em que o hoje jornalista Rubens Paiva, escritor de outras quatro obras, tornou-se ídolo ao revelar publicamente sua tragédia pessoal ocorrida nos anos 80. É óbvio que Ronaldo também deseja colher frutos com o recém-descoberto talento literário. Mas o principal desafio já foi vencido: a coragem de quebrar a barreira da vergonha para expor a vida dentro dos limites de uma cadeira de rodas.
O texto original de Dando Passos Sem Poder Andar está em análise nas editoras Aleph, Siciliano, Via Lattera, Nova Fronteira e Elevação. O próprio título, por enquanto provisório, fornece dimensão do que editores e posteriormente leitores irão encontrar. A narrativa é sequência nua e crua dos altos e baixos de quem aprendeu a se equilibrar entre o céu e o inferno mesmo com quase todos os movimentos do corpo comprometidos. "O livro é meu grande amigo. Aquele que me ouviu em desabafo, que guardou meus segredos e me deu forças para recomeçar" -- conta Ronaldo.
O recomeço, nesse caso, significou aprender que a amplitude da palavra dependência vai muito além da definição pragmática descrita no dicionário. Ele confessa que nos dois primeiros anos após o acidente prostrou-se na cama à espera de um milagre que, logo compreendeu, não aconteceria. Tomado pela revolta, pensou várias vezes em dar fim à própria vida, mas como não tinha mais os movimentos dos dedos das mãos, nem o ato de extremo desespero poderia cometer sem ajuda de um parente ou amigo. Restava-lhe, então, reaprender a sonhar.
Ronaldo Pinto da Silva colocou altas doses de inconformismo nas páginas do livro. Alguns relatos extrapolam o ceticismo, são secos, sem retoques. Mas as pitadas de emoção recheiam as entrelinhas numa espécie de dualidade que explicita a compreensão de mundo de quem já foi livre para andar, cortar a unha, coçar a cabeça, abotoar a camisa e ligar a televisão e agora precisa da ajuda de terceiros para as coisas mais corriqueiras, cuja importância passa totalmente despercebida para a maioria. "Tento me policiar para não ser intransigente demais nem procurar culpados. A gente costuma não perceber a importância das pequenas coisas" -- admite.
Ronaldo nasceu e mora em Santo André com a mãe e os avós maternos. A irmã mais nova não vive com a família, mas está sempre em Santo André. A força do aconchego e principalmente do suporte familiar ampliou seu entendimento sobre a grandiosidade do amor que dispensa contrapartidas e revigora-se até com o sorriso amarelo do canto dos lábios. A mãe Deise, muitas vezes, foi alvo da ira incontrolável e da total falta de complacência diante da abnegação demonstrada diuturnamente. No próprio livro há passagens ríspidas com a mulher que é o verdadeiro anjo da guarda do filho. Mas há também os momentos de reconhecimento, como o que relata o passeio da família a um restaurante à beira-mar, após longo período de reclusão doméstica. “... Não aceitava ser carregado no colo em público, receber comida na boca... Mas o que o amor não faz? E lá estava eu, superando meus limites, meus medos, minhas barreiras e principalmente a minha vergonha. Minha família merecia...”.
Ronaldo digitou as 298 páginas do livro com adaptador especial para portadores de deficiência. O equipamento abriu-lhe as portas da informática e do mundo virtual com a possibilidade real de utilizar o computador como ferramenta de trabalho. Antes de sofrer o acidente, ele era técnico em eletrônica na Relosul, empresa de Santo André especializada em manutenção de relógios de ponto. Sem o movimento dos dedos das mãos, foi impossível dar sequência à profissão. Por isso, tratou de fazer curso de web designer e já ensaia a construção dos primeiros sites para empresas -- um dos quais, da própria Relosul, a antiga empregadora.
O destino reservado a Ronaldo Pinto da Silva o fez descobrir outra faceta de seu lado comunicativo. Há três meses ele passou a apresentar quadro especial no programa Avape Notícias que vai ao ar às segundas-feiras pelo canal local ABC3, da Canbras. Na tela da televisão ele faz comentários sobre a vida dos portadores de deficiência, lê crônicas de autoria própria e debate temas como inclusão e discriminação.
Recentemente, ele próprio protagonizou episódio em casa noturna de Santo André. Ronaldo e a acompanhante solicitaram ao anfitrião atenção especial na acomodação. A situação explícita de dependência física e o amparo da lei dispensavam justificativa mais aprofundada para que os dois fossem liberados da fila de espera. "Não fomos atendidos e ainda tivemos de ouvir conselho pouco amigável do anfitrião. O homem -- acho que era um gerente -- me disse sem meias palavras que pessoas como eu não deveriam sair de casa. Chorei muito, fiquei revoltado, mas tive de encarar o fato e a certeza de que vai acontecer outras vezes" -- emociona-se, ao contar que espera o resultado da ação por danos morais que moveu na Justiça contra o estabelecimento.
Vida de esperança -- A participação no Avape Notícias é considerada por Ronaldo Pinto como espécie de coroamento de todo o esforço para, dentro do possível, levar uma vida normal. O espaço na televisão amplia seus horizontes porque extrapola o mundo dos consultórios médicos, das clínicas de fisioterapia e do próprio quarto, locais onde passa a maior parte do tempo. Sentir-se útil e integrado de alguma forma à rotina é condição básica para manter a auto-estima e agarrar-se ao mais fino fio de esperança de recuperação.
E Ronaldo sobrevive exatamente dessa esperança, da certeza de que voltará a andar, a mover o tronco e as mãos. Ele faz parte de um grupo de 30 brasileiros com diferentes tipos de lesões na medula que se submete a tratamento experimental no Hospital das Clínicas, em São Paulo. A técnica é desenvolvida simultaneamente no Brasil e na Inglaterra e consiste em retirar células-tronco do doente e reimplantá-las após serem manipuladas em laboratório para transformarem-se em terminais nervosos. As células modificadas migram automaticamente para os locais da lesão e, aos poucos, reconstroem os movimentos. Ronaldo é um dos próximos na fila do reimplante e aguarda a cirurgia para ainda este mês.
Os olhos brilham quando ele fala no assunto, principalmente após a notícia de que foram positivos os exames da primeira paciente do grupo submetida ao reimplante. Os médicos detectaram sinais de reação na medula e, se tudo continuar assim, é possível que dentro de um ano e meio a companheira de grupo de Ronaldo volte a andar. O relato o leva imediatamente às lágrimas e remete ao flash back do dia do acidente. A pergunta que nunca vai calar surge, então, instantaneamente: "Porque eu"?
Ronaldo ficou tetraplégico após acidente automobilístico. Sua namorada, à época, dirigia o carro em estrada do Interior paulista. Nenhum dos dois havia bebido nem usado drogas e a velocidade era moderada. Estavam a caminho do que prometia ser uma noite inesquecível e Ronaldo, talvez embalado pelo momento de felicidade, esqueceu-se do cinto de segurança. A motorista perdeu a direção, o carro rodopiou na pista, bateu num barranco e ele foi atirado para fora. O romance não resistiu à tragédia, mas o tempo é pródigo em curar feridas, principalmente as afetivas. "Não quero nenhum envolvimento amoroso sério. Preciso dedicar-me à minha reabilitação. Mas não posso deixar de admitir que tem uma baixinha por trás dos bastidores fazendo o meu queixo cair. Não fosse esse meu bloqueio afetivo temporário, ela já teria me conquistado" -- escreveu nas últimas páginas do livro o estreante autor.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!