Imprensa

30ANOS: réplica e tréplica
sobre desindustrialização

DANIEL LIMA - 27/04/2020

Na edição de abril de 1998 a revista LivreMercado publicou uma réplica e uma tréplica sobre o processo de desindustrialização. Tudo porque na edição anterior, este jornalista escreveu sobre os equívocos de Luiz Henrique Proença Soares, então Diretor-Adjunto de Produção de Dados da Fundação Seade, um ramal do governo do Estado de São Paulo. Aos tucanos de então, como aos tucanos e outros bichos de agora, não convinha botar o dedo na ferida da quebra do dinamismo da indústria paulista. LivreMercado não estava e jamais esteve nunca atrelado a qualquer interesse político ou partidário.

Acho que vale a pena acompanhar os dois conteúdos daquela edição. Mais que posicionamentos institucionais (afinal, Seade e LivreMercado jamais poderiam ser vistos como braço individual de dados, no primeiro caso, e de avaliação desses mesmos dados, no segundo caso) o que se sugere aos leitores é atenção ao que chegaria no futuro em forma de presente para confirmar o passado de análises da publicação.

Como já repeti trilhões de vezes, “desindustrialização” sempre foi uma palavra maldita no Grande ABC. Uma corrente para trás sempre engatilhava armas poderosas para perseguir que a pronunciasse – quanto mais para quem a analisasse com provas de dados irrefutáveis.

Vale mesmo a pena acompanhar este que é o trigésimo-segundo capitulo em comemoração aos 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, a junção de LivreMercado e de CapitalSocial.

ABC Paulista: crise

ou recomposição? 

 LUIZ HENRIQUE PROENÇA SOARES* - 05/04/1998

Em fevereiro tive a honra de apresentar às Comissões Municipais de Emprego das Regiões Metropolitanas de São Paulo e da Baixada, reunidas em São Bernardo, uma análise comparativa da situação das estruturas produtivas do Estado, de suas regiões e, mais especificamente, das ali representadas. Alguns entendimentos equivocados sobre minha intervenção, veiculados por esta revista, me levam a tentar esclarecer os principais aspectos daquela fala, sempre à luz dos dados disponíveis. 

Comecei por alertar para as dificuldades de identificar claramente os contornos de um quadro em intenso processo de mudanças, que causam fortes impactos nas estruturas produtivas do País, do Estado e muito especialmente das duas regiões em questão -- Metropolitana de São Paulo e Baixada, ambas emblemáticas de muitos dos aspectos em profunda transformação no panorama mundial. É nessa escala que tais problemas devem, a meu ver, ser entendidos para que as ações sejam social e economicamente eficazes e justas. 

A internacionalização da economia brasileira, operada a partir do final dos anos 80 e de forma mais contundente ao longo da década de 90, responde a um movimento planetário. Acirra-se a competição por novos mercados, envolvendo redução de custos e aumento de qualidade. Evidentemente, esse processo planetário encontra respostas diferenciadas em cada país e região, de acordo com suas estruturas produtivas e políticas econômicas específicas. 

Desemprego preocupante 

No Brasil, aponte-se como cenário os inúmeros benefícios decorrentes da estabilização da moeda e dos preços, mas também as profundas e estruturais desigualdades sociais e regionais e as dificuldades decorrentes das medíocres taxas de crescimento econômico que o País vem experimentando nos últimos anos. Se o crescimento por si só não é garantia de desenvolvimento, e especialmente de novos empregos, sem ele as coisas tornam-se muito mais complicadas. 

O aspecto socialmente mais evidente e preocupante dos novos tempos, entre nós, está na elevação dos índices de desemprego e na precarização dos vínculos empregatícios. A reestruturação produtiva em curso parece apontar para aprofundamento dessa tendência, pela introdução de novas tecnologias poupadoras do uso de força de trabalho. A indústria automobilística brasileira, por exemplo, fortemente concentrada no espaço e cuja performance é fundamental para a economia metropolitana -- e especialmente a do Grande ABC --, após 12 anos consecutivos de comportamento instável, produzindo cerca de 700 mil unidades/ano, voltou a crescer em 1993 a taxas médias anuais de 20%, chegando em 1996 à marca de 1,5 milhão de veículos. 

Apesar disso, os assalariados com carteira assinada no Grande ABC ocupados nas indústrias do setor de material de transportes -- responsáveis por 19,6% do emprego formal na região em 1989 -- passaram de 117.935 trabalhadores em 1989 para 82.011 em 1995. Muitas empresas fecharam as portas ou mudaram de mãos em função da ampliação das escalas de produção e da vertiginosa renovação tecnológica, num contexto de juros altos que inibem o investimento das pequenas e médias empresas. O cenário social assim composto é, de fato, desolador. 

Serviços desconhecidos 

Além das dificuldades decorrentes do turbilhão da mudança, lamentavelmente faltam dados para melhor ilustrar e compreender esse quadro. O censo econômico realizado pelo IBGE quinquenalmente, que produzia valiosas informações estatísticas desagregadas por Município, deixou de ser elaborado a partir de 1985. As pesquisas conjunturais desse Instituto, ainda que valiosas, não permitem aberturas além do âmbito estadual e estão atrasadas em sua divulgação. O setor de serviços, cujo crescimento é uma das marcas do processo de transformação das estruturas produtivas, não é objeto de nenhuma enquete mais abrangente. A exceção é o mercado de trabalho investigado no detalhe permanentemente, desde 1985, pela PED --Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de São Paulo, realizada em parceria pela Fundação Seade e pelo Dieese. 

Tal situação nos levou, há quatro anos, a desenvolver metodologia que resultou na Paep (Pesquisa da Atividade Econômica Paulista) atualmente em curso e que, dentre inúmeras parcerias institucionais, está atendendo à demanda colocada pelos sete Municípios do Grande ABC integrantes do Consórcio Intermunicipal, que solicitaram uma expansão da amostra, de modo a se obterem resultados significativos para essas cidades. A pesquisa busca produzir estatísticas econômicas que permitam atualizar os cálculos dos agregados macroeconômicos, bem como indicadores confiáveis sobre o processo de reestruturação produtiva. Seus resultados, captados numa amostra de quase 40 mil empresas em todo Estado de São Paulo, devem começar a vir a público ao longo do segundo semestre deste ano e haverão de iluminar substancialmente esta discussão. 

Perseguição fazendária 

Por enquanto, trabalha-se com a informação disponível decorrente dos chamados registros administrativos, como os dados sobre emprego formal produzidos pelo cadastro do Rais (do Ministério do Trabalho), o consumo de energia elétrica, o valor adicionado fiscal etc. Cada um tem limitações que, se respeitadas, fornecem indicações preciosas das realidades às quais se referem. 

Parece-me totalmente fantasiosa uma alegada hipótese de que, dentre as limitações ao valor adicionado como proxi da atividade econômica, esteja uma suposta perseguição por parte das autoridades fazendárias, anos a fio, sobre determinada região ou segmento produtivo. 

Consideradas as informações de valor adicionado produzidas pela Secretaria da Fazenda, o Grande ABC manteve participação no Valor Adicionado do Estado a partir de 1985, para o conjunto da indústria, em cerca de 15%. O Estado de São Paulo respondia, em 1980, por 52% da produção da indústria de transformação brasileira. Somente um ufanismo tolo poderia ver isso com bons olhos e esquecer os problemas gerados por essa concentração, seja aqui, seja nos demais Estados. Creio que não há documento de política de desenvolvimento que não ostente, dentre suas metas, o atenuamento das desigualdades regionais. 

Desconcentração seletiva 

De fato, Estados e regiões, pouco industrializados têm se esmerado na atração de novas empresas.  Meta louvável, desde que a custos suportáveis. São Paulo não pode se dar ao luxo de abrir mão de receitas tributárias, enfraquecendo o setor público e frustrando, com isso, as fortes demandas sociais e das próprias empresas quanto à sua intervenção. Apesar disso, durante toda a primeira metade desta década, a participação da indústria de transformação paulista no total nacional manteve-se em torno de 49%! 

Que conclusões podem ser extraídas desse conjunto de dados? 

Primeiro, que está evidentemente configurado um movimento de desconcentração de certas atividades produtivas, que vai da Capital paulista e da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) para o Interior do Estado e para outras unidades da Federação. Tal movimento configura-se tanto pela instalação de novos empreendimentos no Interior do Estado e em outros Estados, como pela eventual transferência de plantas industriais de áreas tradicionais para novas localidades. 

No caso da RMSP e especialmente da Capital e do Grande ABC, se as chamadas deseconomias de aglomeração devem ser consideradas limitantes à expansão industrial -- o saturamento da infraestrutura, especialmente a viária, a poluição ambiental, o custo dos terrenos e outros fatores que afetam a vida das empresas --, há sem dúvida aspectos que devem ser levados em conta, para além dos números. 

A racionalização da produção proporcionada por novas técnicas de organização social do trabalho (just-in-time, terceirização etc.) e pelo enxugamento das linhas de produção e especialização das empresas, decorrentes da globalização e da pressão competitiva global, leva, naturalmente, a uma economia significativa de espaço físico: não há mais necessidade de grandes estoques e boa parte do que se fazia na empresa passa a vir de fora, normalmente de fornecedores locais, mas também de fornecedores internacionais. Essa economia de espaço permite, por sua vez, a desmobilização de áreas industriais altamente valorizadas, constituindo-se em excelentes oportunidades de negócios para inúmeras empresas. Abrem-se, assim, espaços na região para que se instalem atividades comerciais e de serviços, explorando um mercado concentrado e de alto poder aquisitivo. 

Processo contraditório 

Por outro lado, essas mesmas novas técnicas organizacionais, particularmente o just-in-time que hoje se encontra amplamente difundido nas principais cadeias produtivas industriais, exigem a proximidade física entre fornecedor e cliente, impedindo, desta forma, que parcela expressiva da cadeia produtiva, ligada principalmente à indústria automobilística, se afaste da região. 

O que ocorre, portanto, no Grande ABC é de certo modo um processo contraditório. De um lado, as chamadas deseconomias de aglomeração apontam no sentido da perda gradativa da importância da região na produção industrial do Estado em favor de localidades não tão distantes da Capital e que não apresentam ainda as mesmas desvantagens (Sorocaba, Campinas, São José dos Campos), ou mesmo de outros Estados, como se demonstrou na palestra, e principalmente no caso de novos investimentos. 

De outro lado, entretanto, a estrutura industrial fortemente enraizada na região, os enormes investimentos realizados e que não podem ser desmobilizados a não ser à custa de grandes prejuízos, as novas técnicas de produção que exigem proximidade física entre clientes e fornecedores, principalmente de partes e componentes de maior volume, além da proximidade do Porto de Santos, garantem continuidade ao Grande ABC enquanto centro industrial de importância no Estado e polo que atrai empresas que precisam atuar próximas aos grandes fabricantes. 

Além disso, os espaços liberados pelo processo de racionalização da indústria continuarão a ser ocupados por atividades no setor de serviços -- seja os de apoio às atividades industriais, seja os serviços pessoais -- e por atividades de comércio, destinadas ao mercado de alto poder aquisitivo existente na região. 

Movimentos de alteração 

Há, portanto, importantes movimentos de alteração da base produtiva do Grande ABC, não homogêneos nas sete cidades, que deixam alto saldo de postos de trabalho eliminados, não compensados pelos que estão sendo criados, assim como de empresas extintas pelo aumento da concorrência, que não significam perda de dinamismo de uma das regiões mais importantes do País. Trata-se, isso sim, de sua inserção no processo de globalização. 

* Luiz Henrique Proença Soares é Diretor-Adjunto de Produção de Dados da Fundação Seade

Crise e recomposição

 DANIEL LIMA - 05/04/1998

Em nenhum trecho do artigo ABC Paulista: crise ou recomposição? desdobramento da matéria Que mentira que lorota boa da edição de março desta revista, o executivo da Fundação Seade justifica eventual equívoco desta publicação. A essência da matéria publicada por LivreMercado é uma análise detalhada e recheada de números sobre a afirmativa de Luiz Henrique Proença Soares de que não há evasão industrial e consequentes perdas econômicas do Grande ABC. 

Como sabem os leitores, evasão industrial é assunto de históricas avaliações desta publicação. Em nenhum trecho do artigo agora publicado está solidamente contestada aquela interpretação. Mais que isso: embora faça tentativas de minimizar a situação, o próprio executivo do Seade acaba por ceder à realidade, em vários trechos da peça que pretendera utilizar como instrumento de esclarecimento. 

Convém ressaltar que o executivo da Fundação Seade foi solicitado a detalhar e justificar as estranhas declarações sobre o que chamou de mito da desindustrialização na região, publicadas originalmente no Diário do Grande ABC, mas por razões diversas não manteve contatos com esta publicação. Os contatos com sua assessoria foram claros e específicos, mencionando-se com detalhes a posição desta revista. Após a publicação da matéria, a própria assessoria do executivo solicitou a possibilidade de esclarecimentos. Em vez de reservar espaço na coluna específica para os leitores (LM Leitor), a direção de LivreMercado dispôs-se a algo mais minucioso, mais detalhado, de forma a ser utilizado como artigo que acabou ganhando a forma e o conteúdo da matéria ABC Paulista: crise ou recomposição? 

Em realidade, o que se tem hoje no Grande ABC, e não é de hoje, é algo que se encaixa sob um título parecido ao criado pelo executivo da Fundação Seade. A diferença está no fato de que Luiz Henrique Proença Soares, certamente por não viver a realidade regional, coloca crise e recomposição como fatos excludentes, enquanto esta revista prefere crise e recomposição como realidades conectadas, interligadas, e que exigem todo um arrazoado, que não cabe necessariamente agora ser vasculhado, para tentar chegar à cronologia exata da origem de um e de outro. Algo parecido com o desafio de tentar responder o que veio antes: o ovo ou a galinha? 

Como gelatina 

Certo mesmo é que, embora tenha tentado restringir a coleta de dados econômicos a alguns períodos menos desfavoráveis à realidade de crise e de recomposição, fatores que resultaram no esvaziamento econômico regional, a argumentação do representante da Fundação Seade tem consistência semelhante à da gelatina. Basta reler a matéria publicada na edição de março, confrontá-la com a estoica tentativa de defesa do representante do Seade e constatar que provavelmente ele se encontra na mesma situação de desconforto do canibalesco Mike Tyson após a mordida que arrancou um tampo da orelha de Hollyfield. 

De qualquer modo, restrições à parte, o artigo de Luiz Henrique Proença Soares demonstra que aquela instituição do governo do Estado tem em seu quadro de colaboradores profissionais preparados para desvendar muitos dos caminhos tortuosos que estes tempos de globalização criaram. Pena que, na busca de defender o indefensável, provavelmente porque soa politicamente correto inflar o ego do Grande ABC nestes tempos de dificuldades socioeconômicas, um desses profissionais tenha  cometido atentados a uma realidade quem nem o mais apaixonado dos moradores da região ousa mais contestar -- o evidente esvaziamento econômico provocado pela evasão industrial --, motivo, aliás, da usina de mobilização que se vive internamente em forma de Fórum da Cidadania, Consórcio Intermunicipal e Câmara Regional. 

Uma pena que, disposto a colecionar argumentos para contestar o incontestável, o representante da Fundação Seade tenha até procurado relacionar as dezenas e dezenas de galpões industriais ociosos no Grande ABC como resultado de novos métodos organizacionais, não a evidentes deserções. 

Uma olhadinha mais apurada em nova matéria sobre os aspectos fiscais e tributários que envolvem a região, na página 13, refresca a memória sobre as perdas regionais que a Fundação Seade há de comprovar e detalhar este ano, com pesquisas e estudos, nos trabalhos citados pelo executivo Luiz Proença. É disso que se precisa para que os faróis de milha de engajamento da sociedade regional na busca de soluções não percam o foco.



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