Imprensa

30ANOS: Fórum da Cidadania
procura reagir e voltar a ser fera

DANIEL LIMA - 15/06/2020

Na edição de fevereiro de 1999 da revista LivreMercado fiz uma análise da situação do Fórum da Cidadania que praticamente clareou uma situação que muitos pretendiam minimizar: estava na hora da maior entidade coletiva que o Grande ABC já criou sair da improdutividade e avançar a uma reação inescapável.

Trazer para esta série especial de 30ANOS do melhor jornalismo regional do País os textos mais importantes da trajetória fugaz do Fórum da Cidadania tem importância dupla: reativa a memória de um passado que sugeria novos tempos ou tempo inéditos do Grande ABC e, ante o fracasso que se seguiu, lamentar que daí em diante tudo ficou ainda pior em detrimento de institucionalidades locais e, sobremodo, de integração regional.

Esta é a sexagésima-sétima matéria de uma série que vai terminar só quando acabar. E que, pelo andar da carruagem, extrapolará esta temporada. Afinal, há muitas temáticas a explorar. 

Um pato que vai

voltar a ser fera? 

 DANIEL LIMA - 10/02/1999

Talvez a analogia seja cruel, mas já está sendo usada para propositalmente ferir suscetibilidades, despertar irritação e provocar reações de modo a levar lideranças do Fórum da Cidadania a contragolpear. O fato é que o conceito da entidade já não tem o brilho de outrora, quando foi criada há quase cinco anos e, como um furacão, varreu da face institucional do Grande ABC a poeira do desinteresse, do descompromisso e da insensibilidade a causas regionais.

O Fórum da Cidadania viu seu poder de fogo debilitar-se a tal ponto que de fera virou pato. Daí a analogia. Por que pato? A resposta dos provocadores é simples: pato anda, pato corre, pato nada, pato voa, mas não executa nenhuma dessas tarefas com competência porque troca o foco pela dispersividade. Por isso é pato, não fera.

A fase de pato do Fórum da Cidadania provavelmente terminará neste 27 de fevereiro, data preliminarmente programada para tornar-se referência da entidade mais importante da história recente da região. O coordenador-geral do Fórum, o arquiteto Sílvio Tadeu Pina, decidiu promover workshop a pouco mais de 30 dias do término do mandato de 12 meses.

Animador de processos

O grande desafio desse megaencontro é fazer o Fórum da Cidadania largar a mania de querer resolver tudo sem ter disponibilidade de recursos financeiros, materiais e humanos, e concentrar-se na função para a qual foi concebido — tornar-se o grande animador dos processos de mudanças na região.

O momento que vive o Fórum da Cidadania é paradoxal. Exatamente no período em que trocou o bote de fera astuta pelas trapalhadas de pato, o Grande ABC atingiu os melhores momentos de mobilização entre formadores de opinião e tomadores de decisão. No período em que virou sinônimo de vanguarda responsável, aproveitando o vácuo da campanha Vote no Grande ABC, em 1994, o Fórum contribuiu decisivamente para alguns milagres institucionais numa região em que prevalecia um passado de aferrado provincianismo territorial com todas as sequelas culturais, econômicas e políticas que se possa imaginar a partir do uso e abuso da viseira da compartimentação em vez da amplitude da integração.

Acossado pela nova estrela regional, o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos, criado quatro anos antes, mas em atividade puramente vegetativa depois que seus fundadores foram substituídos no comando dos Executivos locais, recuperou vitalidade sob a administração de novos prefeitos, três dos quais (Celso Daniel, Luiz Tortorello e Maurício Soares) da turma que o concebeu.

O ressurgimento prático do Consórcio foi seguido há dois anos por nova instância regional, a Câmara do Grande ABC, combinação de representantes dos Executivos, dos Legislativos, das classes empresariais e sindicais e também de entidades sociais, além do próprio governo do Estado.

Novas organizações

Se não bastassem o Consórcio e a Câmara, mais recentemente uma nova organização passou a constar do organograma de recuperação do Grande ABC, a Agência de Desenvolvimento Econômico, braço estratégico e de marketing da Câmara Regional.

É provável que tenha grande dose de razão quem, há algum tempo, disse não se preocupar com o futuro do Fórum da Cidadania se o Grande ABC chegasse ao estágio de mobilizar autoridades políticas, empresariais, sindicais e sociais. A Câmara Regional é exatamente esse ponto de maturidade da região? Talvez sim, talvez não. Mesmo que seja, entretanto, fica difícil sustentar a dissolução do Fórum da Cidadania.

Por mais que o aparelho institucional da região esteja azeitado, por mais que não sofra prisão de ventre de comodismos, por mais que vacinas de pragmatismos evitem alergias demagógicas, por mais que banhos de infravermelho de democracia favoreçam a recuperação de articulações emperradas, a Câmara Regional jamais será o Fórum da Cidadania pela simples diferença de que sua infraestrutura organizacional está vinculada ao Estado na forma dos representantes públicos que a lideram, enquanto o Fórum da Cidadania é marcante pedaço da sociedade civil, embora esteja longe da massificação desejada.

Equívocos estratégicos

Um dos equívocos estratégicos do Fórum da Cidadania, além de multiplicar o temário em proporções semelhantes ao acréscimo de entidades associadas, foi envolver-se diretamente em operações, na maioria dos casos sempre em desvantagem numérica e logística diante de representantes das administrações públicas locais e do Estado.

À medida que se tornou coparticipante de decisões, sobre as quais seu grau de influência estava limitado, o Fórum da Cidadania perdeu parte da capacidade de fermentar avaliações críticas sobre as transformações por que passa a região. Sem que as outras organizações regionais que se estabeleceram produtivamente a partir das cobranças do próprio Fórum preparassem qualquer armadilha para engessar um concorrente institucional que incomodava exatamente pelo senso crítico, a própria entidade autoflagelou-se pelo excesso de voluntarismo e escassez de sensibilidade tática e estratégica.

É exatamente esse um dos pontos centrais que devem nortear os debates do workshop deste mês. Ou o Fórum da Cidadania volta às origens da animação dos mais diferentes segmentos sociais, políticos, empresariais e sindicais do Grande ABC, ou perderá a própria essência com que foi criado. Trata-se, portanto, de definir-se como instrumento cerebral de pressão e avaliação das propostas e ações dos poderes Executivo e Legislativo, como extensão da sociedade, ou misturar-se de vez a essas instâncias, assumindo todas as sequelas possíveis dessa interdependência incestuosa.

Fosse esse o único problema do Fórum da Cidadania, até que o workshop prometeria ambiente ameno. Há mais questões a serem debatidas. Uma das quais, que parecia geneticamente adormecida, pode voltar a assombrar as principais lideranças do Fórum: pode sofrer reparos a cláusula pétrea de que as plenárias da entidade devem decidir tudo por consenso, porque o sistema automaticamente excluiria os pontos de divergência sobre os quais os associados não devem se digladiar.

Exatamente um dos candidatos à coordenação geral do Fórum da Cidadania, o sindicalista Carlos Augusto César Cafu, sugere modificação no estatuto. Com a perspicácia de publicitário que busca frases de efeito para colar conceitos, Cafu diz que é preciso substituir o consenso pelo bom senso. Seu principal argumento é a falta de entendimentos em várias discussões. “Basta uma entidade que compõe o Fórum opor-se a determinado tema para que o assunto seja descartado. Acho que isso não é correto” — desabafa Cafu.

É possível que a bandeira contra o consenso provoque reações à candidatura de Cafu, diretor do Sindicato dos Químicos do Grande ABC. Há um grupo de fundadores do Fórum que atribui à unanimidade das deliberações a razão da própria existência da entidade. Também não falta quem já não suporte mais as amarras da consensualidade.

Essa discussão adicionará lenha na fogueira de dissensos no Fórum. O próprio candidato César Cafu ganha formas impactantes porque é o primeiro concorrente ao principal cargo do Fórum em cujo currículo não consta qualquer ligação como empreendedor.

Depois do executivo privado Wilson Ambrósio, do médico e empresário Fausto Cestari, do sociólogo e empreendedor assistencial Marcos Gonçalves e do atual coordenador, o arquiteto Sílvio Tadeu Pina, surge um sindicalista para disputar o comando do Fórum.

Disputar é o verbo correto, pelo menos por enquanto, já que, diferentemente das sucessões anteriores, desta vez há previsão de pelo menos dois nomes concorrerem aos votos dos eleitores. Um dos quais não será o do comerciante Filipe dos Anjos Marques, ex-presidente, atual membro do Conselho Superior da Acid (Associação Comercial e Industrial de Diadema) e coordenador do grupo de política do Fórum. Filipe afirma que não tem qualquer interesse em dirigir o Fórum por causa de atividades profissionais.

Sua voz é respeitada. Suas críticas pesam na balança. Não tem papas na língua. Critica o Fórum pela dispersão de ações, pela dificuldade de focar os pontos mais importantes da região e também pela possibilidade de ficar a reboque da Câmara Regional, do Consórcio de Prefeitos e da Agência de Desenvolvimento Econômico. “Não podemos perder a capacidade propositiva” — afirma. Ele lembra que só com organização e planejamento o Fórum da Cidadania continuará sendo respeitado, porque do outro lado do espectro institucional da região há Poder Público e sindicatos cujos representantes têm tempo e recursos financeiros para dominar a cena.

Do consenso ao dissenso

Sem Filipe Marques, é possível que outras duas candidaturas possam ameaçar o projeto de César Cafu. O empresário Antonio Castillo Jato, representante do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) de São Bernardo seria uma das alternativas. O dentista André José de Andrade seria outra. Paradoxalmente para quem entende que consenso e bom senso não são a mesma coisa, Cafu afirma que deixará de ser concorrente se não houver articulações que o coloquem a salvo do desgaste de uma disputa. “É assim que funciona no nosso sindicato” — compara.

Como as eleições estão programadas para março e no meio do caminho há um workshop, a expectativa de lideranças do Fórum da Cidadania está voltada para a unanimidade na escolha do coordenador-geral, sob pena de a entidade viver a primeira grande crise sucessória. Não faltarão tentativas de tratar eventual disputa eleitoral como saudável exibição democrática.

Mas não deixará de ganhar a conotação de tiro no próprio pé uma organização que transformou o consenso em pilar estatutário ver-se às voltas com rupturas provocadas pela incapacidade de evitar confrontos na disputa pelo comando.

O workshop também é hora da verdade para mexer numa ferida que o Fórum tem tratado com a coragem de avestruz. Trata-se da participação de representantes político-partidários nas plenárias. Não dá mais para jogar debaixo do tapete da hipocrisia o mal-estar provocado pelas candidaturas de Fausto Cestari e Marcos Gonçalves à Câmara Federal e à Assembleia Legislativa. Ex-coordenadores com histórica participação na entidade, Marcos e Fausto causaram surpresa quando se lançaram candidatos. Mesmo sem o aval da entidade, a derrota de ambos acabou creditada à baixa densidade popular da instituição.

Várias lideranças do Fórum da Cidadania defendem a liberação estatutária à participação dos partidos políticos. Também já não formam bloco monolítico os opositores à presença de representantes de empresas no quadro de filiados. O coordenador Sílvio Tadeu Pina mantém-se irredutível contra a presença de empresários nas plenárias, mas sua posição tem menos apoiadores do que antes. A constatação é que esse maniqueísmo ajuda a emperrar a profissionalização do Fórum da Cidadania, cuja infraestrutura administrativa tem reduzidíssimo quadro de colaboradores.

O exemplo da Agência de Desenvolvimento Econômico é surradamente citado como prova de que o Fórum da Cidadania se excedeu na discriminação ao capital. A entidade ligada à Câmara Regional é financiada em grande parcela por empresas do Polo Petroquímico de Capuava e tem representantes do setor no quadro diretivo. O temor de Pina e de outros dirigentes do Fórum da Cidadania quanto à possibilidade de desequilíbrio nas decisões plenárias perde substância quando se argumenta que nenhuma organização associada pode manobrar fora dos limites estatutários. Tanto quanto na Agência Regional de Desenvolvimento.

Como se observa, temas candentes não faltam para converter o anunciado workshop num divisor de águas do Fórum da Cidadania. Se tudo isso não fosse suficiente, ainda há outro ponto que as entidades que integram a organização não só precisam compreender como devem mostrar maturidade para reagir.

Trata-se da exagerada dependência da entidade em relação a algumas lideranças mais proeminentes. Por motivos diversos, entre os quais a própria necessidade de renovação da instituição, essas lideranças resolveram se afastar do dia-a-dia dos trabalhos. Muitos dos problemas que atingem o Fórum da Cidadania têm estreita ligação com essa espécie de vácuo diretivo.

Também faz parte do caldeirão de complicações do Fórum da Cidadania a composição do quadro associativo, com mais de 100 entidades. O gigantismo se deu num movimento paralelo à perda de foco crítico e do eixo estratégico. Torre de Babel é uma das expressões que definem as plenárias.

Além de o gigantismo jogar areia nos olhos do pragmatismo, reclama-se muito também contra o que se convencionou chamar de INGs (Indivíduos Não-Governamentais), numa clara e cáustica crítica às ONGs (Organizações Não-Governamentais) cujos representantes não passam de alguns gatos pingados. Carlos Augusto César Cafu é um dos propagadores dessa ironia avassaladora, cuja origem é a deficiência no processo de aprovação dos novos integrantes do quadro associativo.

Concentrador do maior número de instituições em atividade no Grande ABC, espécie de Entidade das Entidades, o Fórum da Cidadania escorregou gradualmente no calabouço do corporativismo que tanto pretendia combater. À medida que deixou escapulir pelos vãos dos dedos da grandiosidade de participantes e pelo buraco da imprevidência estratégica a capacidade de gerenciar os temas mais relevantes para o futuro do Grande ABC, o Fórum da Cidadania foi absorvido pelos interesses corporativos.

Incapacidade geral

Para se ter ideia do quanto o Fórum está descuidado, bastam alguns exemplos. O primeiro é a Universidade do Trabalhador, do empreendedor Abraham Kasinski, projeto que não sai do papel por falta de definição de área pública em Mauá ou em qualquer outro Município. Em nenhum momento o Fórum foi capaz de alçar a questão à vitrine das grandes propostas da região, como se o assunto não mexesse diretamente com a preparação e a reciclagem de profissionais num momento de obsoletismo contínuo da mão-de-obra.

Outro exemplo é alçar também à ribalta das grandes questões regionais uma completa reforma da legislação de uso e ocupação do solo, cuja repercussão socioeconômica pode estabelecer o contraste entre desenvolvimento e deserção econômica. Nenhuma ação efetiva também se deu, sempre como elemento de pressão junto aos poderes constituídos, para o fortalecimento dos pequenos negócios, massacrados pelas grandes corporações comerciais, industriais e de serviços.

Outro exemplo de omissão são os recordistas índices de criminalidade que atingem o Grande ABC. Notadamente na periferia de desemprego mais acentuado, de drogas mais abundantes. Em vez de macrotemas, o Fórum da Cidadania prefere ações tópicas, muitas vezes tão integrativas quanto o senso comunitário dos ermitões.

Resta saber se o workshop conseguirá mesmo reconverter o pato em fera ou será um festival de esgrimistas verbais que preferem a indecisão de quem parece pisar em ovos à ousadia de quem está empenhado mesmo em preparar omeletes.



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