Na edição de julho de 1999, escrevi um texto para a revista LivreMercado que tratava, mais uma vez, de futebol. Mas não só de futebol. Preparei uma breve exumação sociológica na esteira de um espetáculo deprimente em final de campeonato no Morumbi. Tudo está logo abaixo.
Mais de 20 anos depois, parece que houve evolução civilizatória bastante tímida. E que deverá sofrer retrocessos agora com a possibilidade de os mandantes venderem os jogos em plataformas digitais e contratarem narradores, repórteres e comentaristas que, pelos ensaios iniciais, só terão um time em campo para analisar. Analisar é força de expressão.
Sobre a possibilidade de generalização de torcidas organizadas nas transmissões, os jornais mostram hoje os reflexos do jogo entre Flamengo e Fluminense. Talvez seja bom que tudo isso ocorra, porque, quem sabe, a chamada mídia profissional faça exame meticuloso do que anda a produzir. E não se omita em questões eticamente reprováveis e legalmente condenáveis. Caso, por exemplo, do roubo da vaga do São Caetano pelo Água Santa de Diadema na Série A-1 do Campeonato Paulista. Todos se calaram ou apoiaram uma fraude. Fizeram o jogo federacionista, que negou o próprio regulamento da competição.
Esta é a octogésima-sexta matéria da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País, junção da revista de papel LivreMercado e desta revista digital CapitalSocial.
Boleiros demais,
inclusive na mídia
DANIEL LIMA - 05/07/1999
Só muita obtusidade intelectual enxertada de fanatismo esportivo pode reduzir os acontecimentos da decisão paulista entre Corinthians e Palmeiras à molecagem de Edílson, atacante alvinegro que, depois de sacramentar a conquista com o gol de empate aos 30 minutos do segundo tempo, resolveu produzir abusados e desrespeitosos malabarismos com a bola.
O gesto de Edílson, que lhe valeu demonstração de demagogia disciplinar do técnico Wanderley Luxemburgo em forma de corte da Seleção Brasileira, foi o capítulo final de uma competição em que a marca do oportunismo e da contradição expôs também a instabilidade diretiva do presidente da Federação Paulista de Futebol, Eduardo José Farah.
Não bastasse isso, os incidentes registrados no Morumbi servem de alerta à própria mídia eletrônica e impressa que, na ânsia de empinar o Ibope e a venda de exemplares, tem agido agressivamente como fomentadora de idiossincrasias entre jogadores profissionais. Como se sabe, eles pensam muito mais com os pés do que com a cabeça.
Os dois principais protagonistas do pugilato da decisão paulista, os atacantes Edílson e Paulo Nunes, deram a senha de que poderiam levar o jogo à barafunda. Suas fotos estampadas na capa da edição domingueira da Folha de S. Paulo, em atitudes provocativas, denunciavam que algo de estranho poderia acontecer no Morumbi.
Briga antecipada
Estimulados pelo jornal, por sua vez pautado por bate-bocas dos jogadores em rádios e emissoras de televisão, Edílson e Paulo Nunes posaram para fotos em suas respectivas concentrações ostentando ares de desafetos. É possível que a briga fosse antecipada se aquele jornal tivesse preparado a sessão de fotos num estúdio, reunindo os dois atacantes, e não num encontro virtual. Menos mal, porque pouparia a todos de cenas de selvageria e violência.
Edílson e Paulo Nunes acenderam o estopim do conflito na primeira página da Folha de S. Paulo e levaram desavenças pessoais deliberadamente para o gramado. Não fosse a molecagem de Edílson, a que se seguiu imediata perseguição ensandecida de Paulo Nunes (e também do veterano Zinho), certamente Paulo Nunes o substituiria porque levou para o gramado, sob o calção, não uma máscara qualquer para comemorar eventual gol com criatividade e alegria, mas uma faixa de campeão da Libertadores da América carregada de provocação barata e revanchista. Sem marcar gol e um dos responsáveis pela suspensão do jogo, Paulo Nunes (e também Euler) não se deu por vencido e tratou de exibir o pedaço de pano que quase reacendeu a fogueira de conflitos.
Mídia corrosiva
O comportamento da Folha de S. Paulo não é exceção no mundo esportivo. Talvez seja uma rotina a falta de ética mais apurada. Está aí o animador Galvão Bueno, da TV Globo, a instalar as transmissões esportivas em picadeiro de péssimo gosto. Manobra os adjetivos e as avaliações ao sabor da audiência e das conveniências geralmente obscuras.
A traquinagem de Edílson provavelmente não ocorresse se no ano passado Galvão Bueno desse tratamento profissional à agressão de Dunga a Bebeto, durante um jogo da Seleção Brasileira pela Copa do Mundo. Dunga não só se manteve a salvo de críticas como foi glorificado durante a competição como exemplo de liderança.
Até parece que aquela cabeçada no próprio companheiro de equipe era prova de talento que, todos sabem, é bastante limitado. Mas o que se pode fazer quando os critérios de avaliação estão subordinados à paixão clubista e ao verde-amarelismo ufanístico? Como agir com responsabilidade se o torcedor de futebol, no fundo, no fundo, gosta de ser enganado?
Globo avaliza
O que se esperar dos espetáculos de futebol se a maior emissora de TV do País avaliza gesto tão grosseiro? Também as emissoras de rádio se esmeram em proporcionar fanfarronices. Quem acompanha minimamente as transmissões, os ambientes de vestiários, as entrevistas nos intervalos dos jogos, sabe do que muitos repórteres são capazes. Eles querem mesmo ver o circo pegar fogo.
E os chamados comentaristas esportivos, responsáveis pela avaliação das equipes e jogadores? Alguns não têm o menor respeito pelos protagonistas dos jogos e ajudam a conflagrar as relações entre jogadores e treinadores. Casos de pura birra pessoal ganham forma de rancorismo explícito.
Circunscrever o impacto do vergonhoso final do Campeonato Paulista às embaixadas de Edílson é muito cômodo para quem pretende camuflar a realidade de amadorismo explícito dentro dos gramados, nos vestiários, nas tribunas de Imprensa e nas arquibancadas de um esporte que, paradoxalmente, vive o limiar de meganegócios envolvendo os clubes que estão virando empresas.
Que ambiente se pode esperar de uma final de competição em que dois jogadores expulsos no jogo anterior em situações de alta antidesportividade ganharam condições legais de jogo, casos de Evair e de Galeano? Ou de um regulamento que mercantilizou o cartão amarelo e empalideceu de vergonha o cartão vermelho, tornando-os objetos descartáveis?
Quem não sabe que os cartões amarelos viraram pó em disciplina e ouro em dinheiro, porque os clubes não tiveram seus atletas suspensos ao final de cada série de três advertências, mas pagaram multas altíssimas, de até R$ 1 mil por unidade? Ou que os cartões vermelhos nem mais representaram suspensão automática porque os infratores foram julgados antes do jogo seguinte e, no caso dos times grandes, invariavelmente absolvidos?
Boleiros milionários
O que o universo do futebol ainda não sacou, porque é extremamente tribal, é que por mais que o Brasil seja um País de Terceiro Mundo, por mais que as falcatruas o transformem numa quase mafiocracia, os investimentos que aportam na atividade provocarão muitas mudanças.
O futebol brasileiro é essencialmente muito mais forte que suas mazelas. Nossa matéria-prima é tão abundante quanto rica. Muitos Edílsons e Paulos Nunes emergem a cada instante nos campos de várzea. Os espetáculos que podem oferecer dentro de campo dependem, entretanto, do tratamento que recebem e também da forma com que são preparados em momentos diferenciados como uma decisão de campeonato.
Frágeis socialmente, egressos de camadas mais embrutecidas pelas vicissitudes da vida, eles sintetizam o perfil do profissional de futebol brasileiro. Mal se reconhecem executivos da bola. Agem ainda como boleiros. Milionários boleiros.
Uma pena que tão boleira quanto eles seja boa parte da crônica esportiva eivada de fanatismo clubista e de ambições mercantis que possam assegurar contratos de publicidade milionários. Vale tudo pela audiência, tal qual os programas dos Ratinhos que as elites tanto condenam.
Atentados à cidadania
No dia-a-dia do jornalismo esportivo, cometem-se verdadeiros atentados à cidadania, à responsabilidade da comunicação. Tudo sob os ouvidos e os olhares plácidos de leitores e telespectadores, inconscientemente adaptados aos desvarios porque o País, como um todo, parece definitivamente vencido pela síndrome de Macunaíma cultural.
Imolar Edílson, como fez o demagogo Wanderley Luxemburgo, é gesto simples, superficial, típico de um País que age sob impulsos politicamente corretos, mas desastradamente comprometedores com o futuro. Afinal, não foi assim que fizeram com as torcidas organizadas, cuja violência dentro e fora de campo é o grito de uma juventude abandonada pelo Estado-do-Mal-Estar-Social, do Estado perdulário, do Estado prestidigitador, e também de uma sociedade emburrecida, superficial, que consome quinquilharias impressas e eletrônicas com a avidez dos abutres?
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