Uma das várias bandeiras da revista LivreMercado ao longo dos anos voltava-se aos pequenos negócios. O Grande ABC vivia uma invasão dos bárbaros varejistas de porte avantajado. Surgiam propostas à harmonização dos interesses conflitivos. No texto abaixo, mostramos o que se passava em agosto de 2000 em Santo André e na região.
Esta é a centésima-sexta-quarta edição da série 30ANOS do melhor jornalismo regional do País – de LivreMercado e de CapitalSocial em plataforma digital.
Pequenos ainda
esperam ajuda
DANIEL LIMA - 05/08/2000
Quem vai colocar o guizo de restrições no pescoço do gato dos grandes negócios do comércio? É melhor não arriscar a resposta. A Prefeitura de Santo André decidiu vetar projeto de lei do vereador Márcio Pereira que instituía comitê de análise do impacto socioeconômico de grandes empreendimentos. A decisão assinada pelo prefeito interino João Avamileno baseia-se oficialmente na inconstitucionalidade da proposta aprovada pela Câmara Municipal. A iniciativa compete ao Poder Executivo, mas nada indica que isoladamente algum prefeito do Grande ABC dê o primeiro passo nesse sentido. Nenhum quer perder a oportunidade de recepcionar novos investimentos. Pior: nenhum quer o ônus tributário de uma decisão unilateral quando se debate tanto a questão da regionalidade.
O secretário de Desenvolvimento Urbano de Santo André, Irineu Bagnariolli, escalado pelo Executivo para falar sobre o assunto, explica que a inconstitucionalidade do projeto de lei é patente. Tanto quanto o interesse da Prefeitura de ver o assunto remetido à Câmara Regional, como está explícito na resposta formal do prefeito interino João Avamileno. "Não obstante o vício de iniciativa apresentado, no mérito também não merece prosperar, uma vez que neste momento se demonstra contrário ao interesse público, considerando que a matéria vem sendo profundamente analisada pela Câmara Regional e deverá ser contemplada pela nova Lei de Desenvolvimento do Comércio" -- afirma o documento enviado ao Legislativo.
O desequilíbrio de forças entre grandes e pequenos negócios no Grande ABC (e nas regiões metropolitanas) está longe de ser resolvido porque existe a lógica de sobrevivência que permeia os administradores públicos. Nenhum quer barrar investimentos comerciais de porte isoladamente e favorecer a vizinhança numa região tão estreitamente ligada como o Grande ABC, onde os territórios econômicos se misturam.
Ao remeter o assunto para a Câmara Regional, busca-se retaguarda política e econômica conjunta para assunto tão abrasivo. A Câmara Regional é informal, por isso não tem poder de legislar. Caberia a cada prefeito enviar projeto de lei aos respectivos legislativos.
Frio na espinha
Embora o documento assinado por João Avamileno transfira à Câmara Regional a análise de profundidade no tratamento do impacto dos grandes investimentos, a realidade é outra. O grupo de trabalho definido para debater o aniquilamento do pequeno negócio na região avança timidamente. Mal se reúne. Por isso, ao transferir a decisão política para a Câmara do Grande ABC, a Prefeitura de Santo André, na realidade, evidencia o frio na espinha que a preservação da pequena empresa provoca quando tratada no âmbito exclusivamente municipal.
O secretário Irineu Bagnariolli explica que a decisão do Executivo de Santo André prende-se também à necessidade de debates entre os principais interessados na regulamentação de propostas que sejam capazes de compatibilizar interesses de pequenos e grandes negócios e que o resultado seja benéfico ao consumidor.
De qualquer modo, a condução do projeto de lei aprovado pelo Legislativo de Santo André e considerado sem base constitucional confirma a falta de sinergia nas relações dos dois poderes. Afinal, como tem maioria na Câmara Municipal, o Executivo poderia ter racionalizado o debate. Bastava ter evitado que a intenção de apresentar o projeto de lei -- que depois passou por comissões e foi aprovado em plenário -- fosse desestimulada com o argumento jurídico da ilegalidade constitucional.
Outra versão para a trajetória do projeto de lei do vereador Márcio Pereira, aliado do prefeito, é de que interessava ao Paço Municipal a fragilidade legal da proposta porque, assim, o prefeito licenciado Celso Daniel ganharia tempo para não se envolver pessoalmente na rejeição. Ao se desincompatibilizar do cargo para concorrer à reeleição, Celso Daniel deixou para o vice-prefeito a tarefa de responder negativamente ao Legislativo sobre assunto que, mesmo tratado com imperfeição jurídica, exige posicionamento do chefe do Executivo. Como já não ocupa o cargo, não lhe compete comentar o espinhoso tema oficialmente.
Grandes perdas
O comércio varejista da região, basicamente de estrutura familiar, foi rebaixado de 36 mil estabelecimentos cadastrados pelo Sincomércio em 1990/1991 para 22.294 em março do ano passado, conforme revelou LivreMercado há três meses. A causa do pequeno comércio é reconhecidamente inglória aos administradores públicos da região. Restringir investimentos tem o significado imediato de dar um tiro no próprio pé.
Quem der o primeiro passo praticamente afastará os investimentos que estão programados, transferindo-os para municípios que não oponham regulamentação. Só para Santo André estão previstos vários novos negócios na área comercial. Uma nova unidade do Carrefour e a estreia da Rede Sonae seriam anunciadas nos próximos meses. No caso do Sonae, a área escolhida teria sido a Granja Ito, ao lado do Shopping ABC, na Avenida Pereira Barreto.
A liberalidade para instalação de negócios comerciais no Grande ABC e nas regiões metropolitanas como um todo é lugar-comum no Brasil. O rejeitado projeto de lei formulado em Santo André e que ganhou clonagem em outros Legislativos do Grande ABC é consequência do pedágio social que a Prefeitura de Porto Alegre, administrada pelo PT, impôs ao Carrefour. O projeto de lei gaúcho foi apresentado pelo Executivo e contemplou série de ações de resguardo ao pequeno negócio da vizinhança do empreendimento, inclusive 0,5% do faturamento líquido durante o primeiro ano de atuação do Carrefour para investimento na preparação técnica dos comerciantes minúsculos.
Mundo reage
O avanço dos grandes conglomerados comerciais preocupa especialistas em varejo no Brasil. É o caso de Marcos Gouvêa de Souza, renomado consultor da área. Recentemente ele afirmou que os níveis atuais de concentração no comércio têm contribuído para o crescimento das regulamentações sobre a operação e sobre a própria velocidade da globalização do varejo. "Na Itália, acaba de ser aprovada nova regulamentação disciplinando as vendas promocionais no varejo não-alimentar" -- afirma o consultor.
Também na França há mudanças: "Grandes redes de hipermercados enfrentam restrições para transferir aos consumidores todos os benefícios das compras em larga escala, como forma de disciplinar a concorrência entre grandes e pequenos varejistas" -- conta.
Atento ao movimento internacional, Gouvêa explica que na Alemanha a venda constante de produtos abaixo do custo é considerada ilegal. O procedimento foi revisto no ano passado com o propósito de assegurar aos comerciantes de menor porte condições de competir frente ao avanço das corporações varejistas.
Marcos Gouvêa explica que o varejo brasileiro é um dos menos regulamentados do mundo, além de cada vez mais concentrado, competitivo e global. "Se foi positivo porque criou um setor dinâmico, flexível e ousado, que em boa parte conseguiu sobreviver ao intervencionismo pré-real em cenários de constante instabilidade, de outro lado fragilizou empresas menos preparadas nas áreas estratégica, financeira e gerencial. Por isso tornou-se presa fácil do processo de concentração global, com prejuízo maior para pequenas e médias e grandes redes de lojas incapazes de competir em igualdade financeira de condições" -- afirma o especialista.
Quem imagina que a atenção ao pequeno negócio se limita à Europa, onde o capitalismo sempre enfrentou as barreiras de Estados voltados para a socialdemocracia, é porque não acompanha a movimentação econômica nos Estados Unidos. Marcos Gouvêa lembra a frustrada tentativa de fusão das redes Staples e Office Depot em 1997, que reuniria 1,1 mil lojas de material de escritório. "O acerto esbarrou no julgamento da Federal Trade Comission e o principal argumento envolvia a perspectiva de eventual controle de preços dos produtos dessas categorias em 40 mercados dos Estados Unidos" -- cita.
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