Imprensa

Uma entrevista emblemática
sobre estágio da regionalidade

DANIEL LIMA - 09/11/2021

O enunciado que proferi repetidas vezes e que virou manchete da Entrevista Especial do Diário do Grande ABC de ontem simboliza o fracasso do Grande ABC em construir uma teia de iniciativas e complementaridades que redundem em ganhos de produtividade institucional e programática. “Via Preferencial” no que se refere ao fator regionalidade como ponto de partida e fita de chegada jamais poderia estar em estágio de proposta com cheiro de naftalina, mas de configuração reformista histórica.  

Sem a Via Preferencial da Regionalidade, que, como reproduziu o Diário, abarca principalmente dois ramais, o da Política e da Economia, não temos saída para enfrentar a encrenca em que nos metemos nos últimos 40 anos – uma via crucis para quem insiste em reafirmar um palavrão chamado desindustrialização.  

Agradeço ao Diário do Grande ABC pela oportunidade de levar a seus leitores cada vez também mais digitais uma síntese apertadíssima de alguns pressupostos de uma regionalidade tardia e falha, mas nem por isso irrecuperável.  

Primeira vez  

Pela primeira usei a expressão Via Preferencial como síntese do que deve ser o conceito central de regionalidade. Desde que me meti a traçar linhas nem sempre compreendidas sobre a importância de o Grande ABC abandonar as sete cabeças de um bicho disforme e se lançar em complexo, desafiador mas impostergável mergulho sinérgico que rompa fronteiras municipais, imprimo literalmente essa expressão. O momento supostamente seria mais assimilável.  

Afinal, por que não pegar carona semântica quando se fala tanto em Terceira Via na disputa presidencial? Via Preferencial, cá entre nós, é muito mais factível, embora carregada de obstáculos. Ou estaria errado?  

Foi uma ação cognitiva involuntária (é assim que funciona esse tal de conhecimento, ativo intangível e imperscrutável) que me levou à Via Preferencial, captada pela inteligência dos jornalistas que me entrevistaram, Sérgio Vieira (diretor de Redação) e Júnior Carvalho (colunista). 

Elefante em container  

Reproduzo em seguida a Entrevista Especial completa. Antes, tento explicar a quem não domina a arte do jornalismo e da especificidade de edição o quanto é complexa uma operação técnica em que a oralidade de declarações longas do entrevistado se transfere a espaço previamente delimitado. Ou seja: o desafio é adequar à materialidade do espaço físico de papel as respostas orais abundantes.  

Não se trata de transfusão impossível como colocar de volta os insumos de uma pasta de dente, mas está longe de algo automático, protocolar. Exige-se muita sensibilidade e destreza para que não se descontruam conceitos e dados. Talvez a melhor imagem seja enfiar container adentro um elefante irrequieto.  

A edição da Entrevista Especial do Diário saiu sem retoques. O elefante bravio coube no compartimento desejado. Algumas declarações foram sacrificadas exatamente porque abundantes em relação à inelasticidade do espaço-padrão. Mas nada que ferisse sequer levemente o escopo do trabalho.  O elefante apenas perdeu umas gordurinhas.   

Acredito que esse tenha sido apenas um pontapé inicial sob a perspectiva de que não há como marcar um encontro com o sucesso da regionalidade sem priorizar a formação de um batalhão que entre em campo com essa finalidade. Uma turma que envolva tanto representantes dos municípios, da sociedade, como principalmente os sete prefeitos de plantão.  

Somente a vontade política – ou mais que isso, o determinismo político – poderá encaminhar o Grande ABC à obviedade de que nenhuma porção de arroz inadvertidamente no piso da cozinha do varejismo de políticas públicas sequer se aproxima da importância da janela quebrada sintomática de casa arrombada.   

‘No Grande ABC,  

a regionalidade  

é via preferencial’  

08/11/2021 às 00:01 

 Sérgio Vieira e Júnior Carvalho

do Diário do Grande ABC  

O jornalista Daniel Lima, editor e diretor do site Capital Social, defende que o Grande ABC vá para o divã e analise como as divisões municipalistas têm prejudicado a regionalidade. Em entrevista ao Diário, ele fez alusão à busca pela terceira via na corrida presidencial e pediu que os prefeitos invertam as prioridades. “No Grande ABC, a regionalidade é via preferencial. A questão econômica e política são os dois ramais principais”. Para Lima, é possível extrair resultados positivos das divergências entre os prefeitos locais, a exemplo da guerra fria travada entre os tucanos Paulo Serra (Santo André) e Orlando Morando (São Bernardo). “Aparentemente isso é uma loucura, é uma discrepância. Mas tem uma luz nessa história que não pode ser esquecida: pela primeira vez na história, nós temos dois prefeitos capazes de ter um relacionamento extramunicipal e extrarregional. A região já despertou o interesse de figuras nacionais e estaduais. Não podemos perder esse timing”. 

Se nós temos alguma dúvida com relação à primeira, segunda ou terceira vias na política, na regionalidade existe uma realidade que precisa ser praticada. No Grande ABC, a regionalidade é uma via preferencial. As questões econômica e política são os dois ramais principais dessa via. A política porque é capaz de dar essa governança regional e a economia por dar sustentação social. Então, neste exato momento, a regionalidade não admite qualquer tipo de tergiversação. Até então, como jornalista, eu achava que só se resolveria a questão da regionalidade por meio da economia. Mas existe, antes disso, um arranjo político-institucional. Isso quer dizer que o municipalismo no qual nós nos dividimos em sete pedaços é importante, mas não pode ser da forma autárquica que está aí, sem esse vazo de comunicação importante que é a regionalidade.

No Grande ABC, a ideia de regionalidade é personificada institucionalmente pelo Consórcio Intermunicipal. Esse formato está funcionando? 

Existe uma dificuldade no manejo da regionalidade. Não é o clube dos prefeitos que vai resolver da forma que está aí. É preciso que haja um arranjo além do Consórcio, mesmo que depois passe a fazer parte da instituição. Mas esse arranjo passa por cima – no bom sentido – da infraestrutura que existe lá hoje. Não é de hoje que o clube dos prefeitos perdeu foco naquilo que mais interessaria, que seria a questão econômica, derivada da política. O clube dos prefeitos não se mostrou capaz de fazer a gestão política da região. Como isso não ocorreu, é impossível fazer a gestão econômica. A partir do momento que a gente vai poder construir algo, mesmo que informal, de colegiado, com assessoramento de pessoas especializadas, a partir desse movimento é que nós teremos a possibilidade de começar a recolocar o Grande ABC em um caminho que é indispensável, que é de recuperação político-econômica. Nesse ponto, eu não via até então nada que convergisse para que houvesse uma paz política na região, diante das divisões que existem e dos interesses municipalistas.

Mas a preocupação municipalista não é importante? 

Eu não condeno os prefeitos, porque se não cuidar do municipal, vai haver consequências eleitorais. Mas a regionalidade não é mais a via preferencial. Ela foi apenas por um tempo, com o Celso Daniel (ex-prefeito de Santo André, morto em 2002). Mas de lá para cá a coisa descambou. E quando falo isso não é que o clube dos prefeitos não tenha valor. Tem. Mas ficaram muito preocupados com muitas coisas, mas deixaram o principal: a gestão política dos entes e da economia.

Como o sr. vê a divisão entre os prefeitos Paulo Serra (Santo André) e Orlando Morando (São Bernardo)? 

Temos, de um lado, o prefeito de São Bernardo, que passa a ter como aliados principais figuras do PSDB estadual e nacional. Do outro, o prefeito de Santo André, que tem outro grupo do aspecto estadual e nacional ao seu lado. Aparentemente isso é uma loucura, é uma discrepância. Mas tem uma luz nessa história que não pode ser esquecida. Pela primeira vez na história, nós temos dois prefeitos capazes de ter um relacionamento extramunicipal e extrarregional na questão político-partidária e eleitoral – e com os consequentes resultados do ponto de vista social. Nunca tivemos um prefeito que tivesse essa intersecção com candidatos fortes ao governo do Estado e ao governo federal. E hoje temos dois. Então, vejo o lado positivo disso. Quem mais se aproximou disso foi o Celso.

Na prática, o que esses dois personagens podem trazer de benefícios para o Grande ABC diante desse prestígio junto a figurões do Estado? 

Eu acho que essa disputa entre eles poderá existir durante algum tempo sem que seja prejudicial se os dois entenderem o significado de regionalidade. Acho que isso já despertou o interesse estadual e nacional em relação ao Grande ABC. Seja qual for o resultado das eleições (de 2022), já demos um passo adiante que nunca tínhamos dado antes porque nunca se chegou a esse estágio. Acredito que nós não podemos perder esse timing. Daí a sugestão para que a regionalidade como via preferencial seja martelada insistentemente. Nós estamos apanhando há 40 anos. O declínio econômico-social da região começou nos anos 1980.

Como superar os interesses eleitorais locais em benefício da regionalidade?

A regionalidade tem de estar acima de tudo, inclusive das divisões internas dos municípios. As pessoas que devem participar desse projeto devem entender que não podem as questões menores, por mais importantes que sejam, atrapalhar a questão maior, que é a regionalidade.

O senhor acha que faltou regionalidade no debate sobre a fuga de montadoras no Grande ABC, por exemplo? 

Sem dúvida. A Ford saiu de São Bernardo, mas nós já tínhamos perdido, ao longo dos anos, outras pequenas e médias empresas que equivalem a 18 fábricas da Ford em forma de emprego. Isso já vem de longe. As pequenas e médias empresas do Grande ABC sumiram.  

E o que poderia ter sido feito pelos prefeitos da região para evitar o declínio automotivo no Grande ABC? 

Como nós nadávamos de braçada em termos de criação de riqueza, que é um processo de perda gradual, o Grande ABC não percebeu esse movimento. Eu já apontava isso no passado, mas era execrado. Ninguém queria admitir que começávamos a perder. E quem acreditava, havia um sentimento corporativista de determinadas lideranças de não desvalorizar seus negócios. Nunca tivemos um coletivismo de forças para parar e analisar o que vinha acontecendo, e infelizmente ainda não temos. Por isso digo que é fundamental essa via principal. 

O que é preciso para colocar isso em prática?

Reunir, de cara, todos os sete prefeitos, sem exceção, e jogarem no lixo suas questiúnculas pessoais e municipais. Será que essas questões não podem continuar como estão, mas sem atrapalhar o macro, a regionalidade? Hoje, voluntariamente e involuntariamente, por osmose, inércia, atrapalha. Todo mundo normalizou esse fracionamento regional, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Temos de ter a humildade de entender que economia é uma ciência que tem de ser respeitada, que só mesmo quem é de fora, com informações de quem é de dentro, será capaz de botar os olhos aqui e identificar os problemas, como o do setor automotivo. Vão chegar a conclusões que talvez já saibamos, mas vão dar um ritual de definições de políticas públicas para resolver.

Como avalia o papel dos deputados da região, estaduais e federais? 

Por mais que eles façam, será sempre muito pouco perto daquilo que nós podemos fazer em termos de regionalidade como via preferencial. Problemas que chamo de miudezas são resolvíveis, mas aquilo que mais nos interessa é uma agenda regional a ser traçada.

Nós temos três times da região no Paulistão. O futebol também é um tema que deveria ser discutido de forma regional? 

Não tenho dúvida. Especialmente o futebol, exige dos clubes essa preocupação de regionalidade. Independentemente do perfil dos clubes, vejo que eles têm uma obrigação de se juntarem e separar a rivalidade. A rivalidade é intrínseca e tem que ser mesmo, senão não tem sentido. Mas eles têm de agir como empresários para trabalhar dentro de um novo patamar. As mídias sociais estão aí. É preciso haver uma massificação do interesse do morador da região pelo clube de sua cidade. Isso precisa ser trabalhado. Nesse sentido, não podemos esquecer que hoje temos a internet para ajudar. Eles poderiam ter, inclusive, um mesmo patrocínio para todos os clubes da região, como tinham os dois clubes do Sul. Eles podem ganhar muito com esse sentimento de regionalidade. 

No início do ano, o senhor foi baleado por um dono de petshop. O que mudou com o episódio? 

Quando falo dessa questão de forma séria, sinto muito, fico muito emocionado, por isso sempre brinco com esse caso. Mas tenho um desafio comigo de, a cada um ano, me autoavaliar. Eu estabeleci esse período e vou esperar um pouco mais para ter uma definição para avaliar o que aconteceu de fato na minha vida, é um processo de mudanças. É difícil ter uma conclusão, mas o que eu sei é que eu mudei. O mais palpável até agora é que eu fiquei muito mais suscetível a determinadas coisas, sobretudo as questões de tratamento pessoal. Fico muito irritado hoje – e isso me aflorou – com determinados tratamentos pessoais discriminatórios, de qualquer espécie, seja por raça, idade ou vestimenta. Isso aflorou muito em mim e é o que mais pesa.

Ficou com sequelas? 

Ainda tenho problemas de ordem física. Cognitiva, não. Eu ainda tenho dificuldade de deglutição, perdi alguns dentes e tenho feito um tratamento. Mas esse tratamento vai ter de ser retardado porque há fragmentos do projétil. Eu perdi uns 20% do meu paladar. O prognóstico é que eu não tenha recuperação disso. Eu tive muita sorte, porque ainda estou com a bala no corpo. Foi um tiro à queima-roupa, a 50 cm, de uma Taurus 38. Enfim, tem algumas sequelas, mas perto daquilo que é viver, é muito pouco. E é um aprendizado.



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