Estamos de volta a março de 2004, quando distribuímos aos diretores, acionistas e colaboradores do Diário do Grande ABC o que chamei de Planejamento Estratégico Editorial. Em julho, quatro meses depois, assumiria a direção de redação do jornal mais tradicional da região.
Soube nesses dias, no documentário da Globoplay sobre o Caso Celso Daniel, que o PT teria influenciado na contratação, após a aquisição de ações do jornal pelo empresário Ronan Maria Pinto.
Mantinha com o PT e com o empresário Ronan Maria Pinto relações formais, de jornalista e fontes de informação oficiais. Nada além disso. Particularmente, Santo André, mesmo com a morte de Celso Daniel, vivia um ambiente de mudanças importantes. Que aos poucos se dissiparam até virar o que virou.
Tudo isso – as relações do PT -- não importa porque além de não ser informado sobre essa contextualização, nada se alteraria se o fosse. Basta acompanhar a reprodução daquele projeto que durou nove meses e que foi antecedido pela minha nomeação ao cargo de ombudsman do jornal.
Vou deixar para o final dessa série algumas avaliações sobre aquele período e o período consequente, que chega aos dias de hoje.
Acompanhem o segundo capítulo do Planejamento Estratégico Editorial, que trata de regionalidade.
Não se pode esquecer que naquela altura do campeonato, colecionava 14 anos à frente da revista impressa LivreMercado, a melhor publicação do gênero quando contraposta geograficamente a qualquer região do País.
Colocamos a Economia do Grande ABC na pauta jornalística do Grande ABC com uma publicação específica, defensora da liberdade econômica, da sensibilidade social e de Estado competente.
Vamos ao documento que considero histórico, embora tenha sido abortado após nove meses.
PROVINCIANISMO NÃO!
É preciso compreender o sentido de regionalidade que aplicaremos na linha editorial do jornal para que não se caia na armadilha do reducionismo simplificador.
Regionalidade não tem nada a ver com provincianismo. Não faremos do jornal uma repetição diária dos veículos semanários que vivem e sobrevivem de releases dos governos municipais e de empresas privadas que contam com assessoria de imprensa.
O conceito de regionalismo contemporâneo prende-se ao desafio de vasculhar cada centímetro quadrado do território dos sete municípios do Grande ABC sem perder de vista o encaixe metropolitano.
Também não poderemos desprezar aspectos nacionais e internacionais. Traduzindo a equação: nosso regionalismo jamais se desgrudaria do ambiente metropolitano e muito menos dos sacolejos globalizantes, mas não cometeria a insanidade de, literalmente, tentar agarrar o mundo, enquanto a essencialidade de sua própria gênese territorial escapa entre os dedos da dispersão.
ESCOLHA DE SOFIA
Teremos, em função das circunstâncias econômicas e financeiras, de promover uma espécie de escolha de Sofia; ou seja, definir um padrão de cobertura predominantemente regional mesmo que isso custe redução do espaço nacional e internacional.
Precisamos ganhar o jogo em nosso quintal de forma massacrante, da mesma forma que perdemos quando partimos para a luta em campo adversário.
Queira-se ou não, jogar o jogo do noticiário nacional e internacional com os grandes conglomerados de comunicação é uma batalha inglória. O que não significa que devemos abandonar o barco.
É evidente que não, até porque a medida contraria o conceito de regionalidade contemporânea. O que temos de executar — e esse é um caso de decantação — é a busca de novas vertentes de cobertura nacional e internacional que fujam da dependência do noticiário das agências. Apresentaremos um projeto específico sobre isso, mas não numa primeira etapa.
OLHAR METROPOLITANO
O grande mote que pretendemos apresentar é a captura de um regionalismo moderno, instigante e evolucionista. Algo jamais mostrado na história dos jornais metropolitanos presos a pautas federalizadas com soluços, apenas soluços, locais.
Faremos um Diário do Grande ABC Metropolitano, ou seja, estaremos conectados permanentemente a tudo que nos rodeia, sobremodo nos campos que mais de perto atingem nossos leitores.
Não podemos minimizar o fato de que estamos incrustados numa região metropolitana de 39 municípios e 18 milhões de habitantes, que representam quase metade do PIB estadual e cerca de 20% do PIB nacional.
Nosso território preferencial é o Grande ABC. Nosso território complementar é a Grande São Paulo. Somos — a Grande São Paulo — um Estado de Minas Gerais em população e muito mais em economia. Somos quase o dobro dos 420 municípios do Rio Grande do Sul.
UM GRANDE PAÍS
A Grande São Paulo é um País tratado sem zelo pelos meios de comunicação. O Grande ABC está no interior desse gigantesco painel humano e precisa ser devassado para ser entendido.
Tudo o que estiver ocorrendo na Região Metropolitana de São Paulo deverá nos interessar detidamente. Nossos indicadores sociais e econômicos não podem se circunscrever à geografia do Grande ABC. Temos de correlacioná-los, sempre que possível, com os espaços que nos rodeiam.
A influência do Rodoanel Oeste, que contemplou a chamada Grande Osasco, nos abalou fortemente como espaço socioeconômico, conforme mostramos em matéria baseada em dados estatísticos do Instituto de Estudos Metropolitanos. Não podemos ficar desatentos a isso.
DADOS ENGANOSOS
As autoridades públicas, privadas e sociais precisam reagir ao quadro. Não devemos cair na tentação de nos lambuzarmos com estatísticas domésticas, puramente regionais, quando o mundo que nos envolve proximamente ou não, reage de forma mais incisiva.
Um exemplo do que parece melhorar, mas que não passa de ilusão estatística, está no ranking de criminalidade do Instituto de Estudos Metropolitanos.
Apresentamos queda nos registros de homicídios dolosos e também em roubos e furtos de veículos, mas aumentamos os casos de roubos e furtos diversos. Na classificação final, que abarca os três quesitos, perdemos posições e seguimos entre os piores municípios economicamente mais importantes do Estado. Até mesmo São Caetano caiu pelas tabelas.
BAIXAR CRIMINALIDADE
Como se explica isso? Simples: os investimentos e as ações de combate à criminalidade no Grande ABC não fluíram à altura da maioria dos demais municípios. Ou seja: em termos comparativos, estamos piores do que antes, mesmo que os números absolutos de um ou outro indicador apresentem avanços.
Quem sabe e explora a importância da qualidade de vida para atrair e manter investimentos entende o significado dessa equação.
Confrontam-se centenas de municípios nos mais diversos quesitos. O capital, como se sabe, não tem fronteiras. E a flacidez do tecido social do Grande ABC converteu-se em adversário à atração de empresas.
CAINDO NA REAL
Portanto, regionalidade não pode ser confundida com encarceramento territorial. Devemos estar ligadíssimos aos eventos que nos rodeiam, à medida que se operam em áreas mais próximas ou não.
Como se explica que Guarulhos está anunciando 13 novas indústrias que no ano passado se beneficiaram de um regime fiscal que abate os custos do IPTU e mesmo do ISS de construção, enquanto nós, depois de quatro anos da instauração de guerra fiscal semelhante no Grande ABC, só enlaçamos uma única indústria, em Ribeirão Pires?
São muitas as explicações, justificativas e desculpas. Tratamos desse assunto na revista, mas quando abordamos num jornal, cuja capacidade de mobilização é a marca registrada dos veículos diários, a probabilidade de mudanças e reações será maior.
REVISTA E JORNAL
A tabelinha entre sensibilização de revista e mobilidade de jornal adquire contorno especialíssimo de otimismo sustentado. Atirar sob o tapete o debate em torno de questões como essa — a competitividade regional — é acreditar em Papai Noel.
Somos cidadãos metropolitanos em intensidade quase semelhante à de cidadãos do Grande ABC. As fronteiras locais são mais tênues que as demarcações metropolitanas.
A migração diária de trabalhadores que se deslocam internamente entre os sete municípios é mais intensa que a observada em relação a movimentações em direção a outros territórios da metrópole, mas tem-se acentuado o universo de translados menos convencionais.
ATENÇÃO SOCIAL
Isso eleva a responsabilidade editorial de transmitir informações mais elásticas sem perder as raízes regionais. É preciso situar o morador do Grande ABC no contexto metropolitano. Explicar-lhe, por exemplo, a vantagem de uma megaobra viária anunciada por São Bernardo. Ou a construção da Avenida Jacu-Pêssego. O que tanto uma quanto outra vão representar de alternativas de locomoção e também de geração de riquezas.
Há quase duas décadas atravessa parte de nossas fronteiras municipais uma escandalosa serpentina metropolitana, na forma do extenso trecho do sistema de trólebus, que começa na zona leste da Capital, cruza Santo André, São Bernardo e Diadema e desemboca na Capital. Um arco de integração, cujos reflexos sociais e econômicos jamais foram estudados.
INFORMAÇÕES SISTEMICAS
Quanto das demandas por educação e saúde públicas dos municípios atendidos pelo sistema de trólebus não teria sido adicionado pelas facilidades de transporte?
O que se pretende dizer é que o conceito de regionalidade é tão amplo, contundente e compulsório quanto escamoteador. Exige cuidados especiais para que não seja subvertido.
O entendimento será proporcionalmente maior na medida em que se sufocar o simplismo decorrente da falta de informações sistêmicas.
FOCO REGIONAL
Um veículo de comunicação que pretende se posicionar em defesa do território em que atua — e se entenda posicionar em defesa como expressão que não comporta deformações interpretativas voltadas unilateralmente ao cor-de-rosa desavergonhado — deve saber distinguir o momento certo em que uma manchete ou uma foto de primeira página de um treinamento ou de um jogo do Santo André é mais importante que, em situação semelhante, o seria o noticiário envolvendo um dos grandes clubes da Capital.
Ou mesmo que uma decisão de um campeonato varzeano com alguns milhares de expectadores tem maior peso que uma decisão da Copa Europeia.
VASCULHAR TERRITÓRIO
O conceito de regionalidade não pode perder de vista uma lógica operacional muitas vezes esquecida e que precisa ser reiterada para que determine o fim de ilusões e desperdícios: temos de extrair de nossos profissionais de comunicação o máximo de informação do território sobre o qual se debruçam cotidianamente.
Pretender competir com os grandes jornais da Capital no noticiário nacional e internacional sem contar com a equivalência de recursos humanos e materiais disponíveis é dar um tiro no pé. Afinal, deixamos de explorar as peculiaridades de nosso território, onde vivem nossos leitores e assinantes ávidos por informações regionais qualificadas, e nos perdemos no tiroteio de uma competição desigual.
BATALHA PERDIDA
O investimento de uma pequena ou média metalúrgica de Diadema é muito mais importante que a notícia de novas tragédias na Palestina. A notícia internacional será publicada, evidentemente, mas não pode ganhar em importância para os fatos mais relevantes de nossa geografia.
Sempre perderemos a batalha do noticiário nacional e internacional, porque as agências contratadas nos sonegam o filé mignon. Sempre ganharemos a batalha do noticiário regional, porque teremos nossos profissionais cuidando do que interessa de fato ao nosso dia-a-dia.
Não podemos mais ver nossos patrimônios pessoais morrerem — como têm morrido porque ainda não inventaram a fórmula da eternidade física — e simplesmente os ignorarmos por falta de conhecimento regional.
VALORIZAR ATIVOS
Em contrapartida, ativos pessoais nacionais e internacionais acabam por ocupar o derramamento de nossos espaços editoriais. Entregamo-nos a uma globalização de mão única — onde o que vale é a globalização excludente do regionalismo contemporâneo.
Os personagens que ajudam a construir de fato a história econômica, social, cultural e política do Grande ABC precisam ser valorizados em suas variadas dimensões. Reconhecer-lhes os méritos tem o significado de erguer espelhos que poderão se multiplicar em defesa da regionalidade.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)