Sociedade

Bandidos sociais teriam
amedrontado biógrafo?

DANIEL LIMA - 12/01/2024

Há várias alternativas não necessariamente excludentes que poderiam explicar o fato de o professor universitário interessado em produzir minha biografia ter desaparecido. Já que sumiu e ninguém viu, decidi que, na medida do possível, vou preparar um livro autobiográfico. Garanto que será melhor. Ninguém me conhece mais do que eu mesmo. Até porque sou dois em um. O pessoal e o profissional, em permanente questionamento sobre um alinhamento pouco comum num mundo repleto de Dorias e Alckmins, ou seja, daqueles que flutuam conforme as ondas lhes interessam.  

O que teria levado Edgar Nóbrega a desaparecer, ou mesmo a fugir da raia, ou do pau? Por que ele se escafedeu? Especulações não faltam. E se há especulações é porque faltam informações. 

Edgar Nóbrega não dá a mínima satisfação ao compromisso que firmou comigo, voluntariamente, mesmo antes do encontro que tivemos em maio. Ele apresentou pessoalmente, num restaurante perto de minha residência, o que seria uma sinopse de minha biografia que por ele seria esculpida. Edgar Nóbrega escreve bem, dentro dos padrões acadêmicos. Um pouco mais que acadêmico, porque os acadêmicos seguem o manual de Inteligência Artificial em que a técnica supera a alma.  

MUITAS CONJECTURAS  

Há várias conjecturas que não podem deixar de ser expostas até para que o compromisso que tenho com os leitores, ou seja, de dar sequência ao que publiquei sobre o interesse de meu biógrafo, não se estatele no chão como prova de nocaute provocado por alguma coisa da qual não tenho versão oficial.  

Seria mesmo uma aberração ética que postergasse algo como o que estou fazendo agora, ou seja, não dar resposta a indagações de leitores. Afinal, ao tomarem conhecimento da biografia prometida por Edgar Nóbrega, cobram resposta. 

O professor Edgard Nóbrega simplesmente desapareceu, embora receba todos os dias, no smartfone, mensagens que escrevo no aplicativo de WhatsApp.  

Veja o que poderia ter ocorrido para a desistência do projeto de meu então entusiástico biógrafo.  

Ele desistiu da ideia porque teria outras prioridades e possivelmente não tenha me sentido disposto a gerar receita financeira que desse conta das despesas inerentes. 

Ele foi pressionado por adversários à direita e à esquerda deste jornalista sem rabo preso com quem quer que seja. Não tenho vocação de mimetizar João Doria, por exemplo, que coloca interesse econômico acima de tudo, entregue a uma cadeia de desculpas a adversários políticos que hoje estão nas paradas do poder, por dizer o que deveria reafirmar que disse e redisse quando era governador do Estado. Ou um Geraldo Alckmin entregue ao PT por razões desclassificatórias sob qualquer ponto de vista.

Edgard Nóbrega teria se dado conta de que o estágio de qualidade seria comprometido e comprometeria sua saúde física e mental com a obrigação de produzir material denso tendo estabelecido o limite de dezembro passado como encerramento do produto. Talvez tenha se dado conta de que o tempo era exíguo demais e que o calendário de atleta, que acumula ao de professor, exigiria mais dedicação física em preparação a novas maratonas. 

Talvez ele não me conhecesse o suficiente para entender que sem filiação a qualquer partido e tendo como premissa a defesa da livre-iniciativa com compromisso com a sociedade, ou seja, sem parentesco com os bandidos sociais que se apresentam como representantes do capitalismo, observasse que, sendo ele socialista, como ex-vereador do PT em São Caetano, poderia não se sentir à vontade. 

FLAUTISMA ENTUSIASMADO 

Poderia discorrer sobre outras possibilidades que teriam dissuadido Edgar Nóbrega a me retratar numa obra escrita, mas fico por aqui. Certo mesmo é que quem acompanhou o almoço naquela sexta-feira, véspera da maratona de São Paulo, da qual ele participou, não acreditaria no desenlace de silêncio que dura até agora. E justamente quem me acompanhou naquele almoço foi a mesma testemunha do caso do assassinato não consumado do qual fui vítima num pet shop.  

A minha colaboradora em questão tem memória fotográfica. Até se lembra que Edgard Nobrega me presenteou, e a ela também, com uma breve apresentação como flautista, instrumento que havia muito não ouvia ao vivo e em cores. Nunca imaginei que assistiria um espetáculo solo num restaurante.  

Corrigindo: o silêncio de Edgard Nóbrega se deu a partir do envio da mensagem pós-maratona, na qual expõe a resistência de um atleta de bom nível ao completar a corrida num tempo razoavelmente desafiador.  

BANDIDOS RELALIADORES  

Francamente, diretamente, claramente: tenho a percepção bem definida e sem qualquer resquício paranoico, porque sei bem o que acontece nestas terras de João Ramalho, que Edgard Nobrega, meu ex-biografo, foi sutilmente cooptado a abandonar a proposta, sob pena de retaliação.  

Que tipo de retaliação? Quem conhece os bandidos sociais desta região sabe que existem grupelhos que não suportam jornalismo independente e que por isso mesmo têm-me como alvo a ser devidamente impactado. Não vou me estender sobre isso porque faltaria espaço. O assassinato não consumado não tem nada a ver com os bandidos sociais que me querem morto e enterrado.  

Não imputo ao professor universitário que entendeu ser este jornalista digno de algo substantivo em forma de livro (também acho, com toda a modéstia) uma resga de reprovação. Seu único erro, e um erro crasso, foi, mesmo mantendo as razões sob resguardo pessoal, deixar de comunicar-se diretamente comigo e anunciar a desistência do projeto. Nada mais que isso. Uma mensagem escrita ou oral teria esclarecido tudo. Nem precisaria expor a motivação. Ou poderia inventar uma qualquer. Tudo bem.  

UM ENPÍGMA?  

De qualquer forma, há desistências que servem para atiçar o destino. Jamais imaginei uma biografia de minha vida profissional, que conjuga raízes pessoais profundas. Como o professor não dará mais conta do recado, decidi que vou tratar disso.  

Espero ter tempo, saúde, disposição e tudo o mais para acrescentar ao legado disperso de quase seis décadas de jornalismo, algo que possa não só completar minha trajetória como também incluir valores que ajudariam a explicar a dedicação total a uma profissão vilipendiada num País de absurdos.  

O que teria em comum aquela criança do antigo Ensino Primário que atropelava a articulação verbal?  Como botar fé naquela criatura pequena, assustada, cuja oralidade confusa, trôpega, antagonizava a cognição em alta velocidade?. Ou seja: a mecânica da emissão de voz estava sempre em desacordo com a engenharia cerebral impulsionadora da expressão de ideias? 

Como aquela criança se transformou num marmanjo que subiu durante 15 anos seguidos aos palcos do Prêmio Desempenho para expor em editorial oral os pontos de vista da publicação que dirigia e a importância daquele evento diante de um silêncio respeitoso?  

COMO SUPERAR?  

Como aquela criança que não perdia uma participação ativa nos eventos cívicos, reproduzindo versos de hinos decorados à exaustão, mas desordenadamente emitidos diante da plateia, poderia virar um orador de primeira?  

Sentia pequenino uma vergonha interior dilacerante ao me dar conta de que não bastava decorar com determinação as letras dos hinos. Era preciso superar as dificuldades no palco, associando um armistício entre o falar e o raciocinar sempre em conflito.    

Como aquela mesma criança aparentemente insegura e mesmo aquele jovem retraído, introspectivo, poderia virar o que virou quando adulto? As sinapses excessivamente apressadas, ou numa rotação à prova de envelhecimento precoce, não combinavam com a exposição oral que se pretendia concorrencial ao desafio mental?  

Como pode aquela criança, quando adulta, participar de três programas de auditório dos maiores comunicadores da televisão brasileira, e ganhar o prêmio de melhor locutor da noite, quando a premiação era concorridíssima?  

ORADOR DA TURMA  

Ou como pode, em nome dos atiradores do Tiro de Guerra de Santo André, enfrentar o frio e a timidez e falar em nome de todos eles, ao apanhar o discurso que ele mesmo preparou numa folha de papel comum, pouco antes de o então prefeito Newton Brandão homenagear os novos reservistas  

Entenderam por que não será tarefa qualquer botar no papel essas e outras transformações obrigatoriamente expostas para que se compreenda a metáfora de que sofro de algumas enfermidades, como o autismo de um poder de concentração bastante apurado, a esquizofrenia de separar o pessoal do profissional, entre tantas outras questões aparentemente ambíguas?  

Tanto o autismo quanto a esquizofrenia de um mundo paralelo ao da realidade, ou seja, como elementos criados para tentar traduzir de forma mais apropriada o que é a entrega total a determinadas tarefas profissionais e a imperiosidade de separar o profissional do pessoal, são elementos-chaves no meu cotidiano.  

No palco do jornalismo, sou tudo aquilo que poderia ser traduzido como um vazio no campo pessoal. O introvertido ou acanhado, quando não enclausurado, cede espaço ao determinismo no compromisso com tarefas que contribuirão para a compreensão de aspectos que interessam à comunidade.  

Tudo isso e muito mais pretendo explicar ou mesmo dissecar se conseguir mesmo levar avante a autobiografia pretendida agora que o barco da biografia não necessariamente autorizada naufragou em águas éticas desafiadoras. O que jamais passou pela minha cabeça, se dará com algum grau de sofreguidão. Tanto o autismo quanto a esquizofrenia metafóricos vão ser acionados.  

Acredito sinceramente que os obstáculos à operação da biografia que parecia pronta à decolagem após aquela conversa com o professor Edgar Nóbrega estão no ecossistema de corrupção e de banditismo que impera na região. 

Por isso, no fundo, acho que a emenda da autobiografia vai ficar muito melhor que o soneto da biografia frustrada.  

Por mais habilidoso, sensível e dedicado que meu biógrafo pudesse ser, certamente não concorreria em nenhum quesito com uma autobiografia de quem se apresentará ainda mais visceral, profundo e detector de meandros devastadores. Trata-se de uma vida vivida de despojamento com um punhado de irmãos, num regime típico do socialismo convencional, mas que se converteu em liberalismo inconformado quando o velho pai se aventurou em inúmeros empreendimentos para sustentar a família numerosa.  

Essa aparente contradição forjou um profissional de jornalismo intransigente na liberdade mais abrangente possível e, portanto, avesso ao escravagismo intelectual que os poderosos de plantão pretendem impor.



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