Já entrei no terceiro ciclo da vida e atingi uma façanha humana nesse mundo em desvarios: jamais odiei alguém. Raiva já senti, desprezo às vezes, irritação quase sempre, desencanto nem se fale, mas ódio, ódio de verdade, jamais senti. Nem com o somatório de tudo isso e mais alguma coisa. Bastaria botar tudo isso no liquidificador de decepção e o caldo de ódio estaria pronto.
O que mais temo é chegar ao ponto que tanto evito, ao ponto de odiar alguém por um conjunto de obras jamais detectado em intensidade que levasse a esse sentimento arrasador.
Poucos acreditam que meu agressor, aquele de primeiro de fevereiro de 2020, que alterou completamente minha vida no sentido mais amplo de transformação, o da sobrevivência mergulhada numa constante avaliação da vida, poucos acreditam que não lhe tenho sentimento algum que não seja de perdão. Quem pensa que estou sendo politicamente correto tem um pé no rancor do acelerador, que leva ao ódio incremental.
CONTA ZERADA
Ao ser condenado pela Justiça, a conta de meu agressor foi zerada. Carrego os efeitos daquela covardia com dores físicas e sensoriais, mas nem isso muda meus sentimentos. Se o Judiciário fracassasse, possivelmente teria optado pelo ódio como forma de inconformismo, de estupefação. Não faltou muito para tanto. O Tribunal do Juri é um convite à esculhambação da verdade.
Para odiar alguém e é possível que isso se dê porque a vida é cheia de surpresas, me dou conta de que é indispensável fazer uma espécie de balanço cumulativo dos ingredientes que me levariam a tamanho impacto, porque romperia em mim uma vida inteira de concessões à liberdade da alma.
Odiar alguém é aprisionar-se na própria mente. É escravizar-se. Se um dia chegar a tanto, acho que o estrago não será exclusivamente meu. Seria compartilhado com o odiado.
Acredito que só se chega ao processo que se consolida como ódio quando damos conta de que é mesmo um processo. Sem encadeamento de motivos, tudo não passa de circunstâncias desagradáveis, salpicadas de tolerância.
O QUE É O ÓDIO?
O ódio para ser ódio precisa ser fermentado, requentado, destilado e filtrado. O ódio é um derivativo de muita entrega, de muita solidariedade, de muita cumplicidade, de tudo que só o tempo constrói nas relações humanas. Ninguém tem o direito de odiar, caso odiar ganhasse jurisprudência afetiva, sem o respaldo de fatos que apontem desbalanço em forma de abusos e danos.
Só de imaginar que um dia poderia odiar alguém, e odiar alguém significa odiar para sempre, até os últimos dias, porque, do contrário, não se trata de ódio, mas apenas de desavença, de contrariedade, de decepção, só de imaginar esse dia fico estarrecido e me aborreço, quando não me condeno.
Não tenho espaço ao ódio em meu coração, mas de uns tempos para cá, quem sabe como resultado daquele tiro diariamente metabolizado, imagino-me em incursões reflexivas que o ódio poderá brotar como num piscar de olhos, porque seria esse piscar de olhos o botão a iluminar o que está recôndito nos cantinhos de mente em forma de alerta permanente.
Sim, nossa mente tem lá suas traquinagens e alertas, como se dispusesse de artilharias discretas e prontas a agir para determinar o ódio que recusamos a aceitar como resposta a uma tempestade de desequilíbrios que abalam o que parecia ser apenas e exclusivamente uma montanha de ativos.
NO FUNDO DO CORAÇÃO
Não sei se você me entende ou, mais que isso, se teria muito mais condições de responder o que é o ódio como compactação de uma dinâmica de vida em que é irrefreável fugir da realidade constatada.
Quem sabe você tenha o ódio por alguém no fundo de seu coração ou de sua mente e eu esteja aqui, virginalmente sem ódio, a destilar obviedades especulativas.
Acredito em minha santa ingenuidade ou bondade, quando não liberalidade, que não conto com um acervo compatível com os cromossomos identificadores do ódio. Ninguém reuniria tantas inconformidades comigo a ponto de chamar especialmente a atenção para uma reviravolta radical.
Outro dia, passeando com minhas cachorras, antes de passear comigo mesmo nas minhas corridas diárias, pensei inadvertidamente sobre o ódio, origens e complicações. Fiz série de incursões para tentar encontrar um nome sequer que pudesse me levar a decifrar os meandros do ódio. Seria, por assim dizer, um perfil de ódio que decifraria as interrogações que crescem em mim.
AUTO-SABATINA
Confesso que um ou outro nome apareceu na tela de minha mente, e sobre os quais me debrucei em pensamentos. Fiz conjecturas puramente exploratórias, frutos de desconfiança provavelmente decorrente de uma ou outra observação quem sabe enviesada.
Fiz uma espécie de auto-sabatina para tentar passar pelo obstáculo que me impus, ou seja, de ter certeza absoluta de que ódio não faz parte de meu léxico sentimental.
Não pensem que estou caminhando para alguma enfermidade indomável a corroer minha mente, porque não é disso que se trata. Aquelas reflexões, que repito durante esses dias em determinadas situações, como se fosse uma corrida rumo ao mapa da mina de uma descoberta auto-massacrante, não são o embrião ditado por uma paranoia.
A melhor explicação talvez seja entender meus sentimentos pós-tiro. Prometi vasculhar um cotidiano alterado pelo código da sobrevivência física e de abalos emocionais. É o que tenho feito constantemente.
Jamais fiz de mim mesmo até então em toda a vida algo que fosse tão constante como rastrear minhas entranhas. Sou um espião de mim mesmo. Um voyeur de minhas ações, reações e tensões. O sadomasoquismo psicanalítico me atormenta como fonte de esclarecimentos, de compreensão, de auto-entendimento.
Por isso que o ódio entrou no meu radar e me leva sim a conjecturas. Sinto-me feliz por não odiar ninguém, mas temo que esteja em gestão uma obra horrorosa de condenação definitiva em forma de escravagismo retaliatório.
Ou alguém tem dúvida de que o ódio é a exacerbação da civilidade mental a qual os detentores se entregam com prioridade absoluta?
COM E SOB ÓDIO
Viver com ódio talvez seja tão ruinoso como viver sob o ódio de alguém. Não me sinto odiado por ninguém, mas não gostaria de saber da voz de meu suposto algoz a síntese do ódio exalado, uma projeção de tragédias, quem sabe, contra as quais estaremos sempre alertas, mas, provavelmente, inertes.
Tenho medo de odiar alguém um dia porque não costumo fazer tarefas pela metade. Faço-as integralmente ou não as faço. Seria eu um suprassumo do ódio se um dia resolver odiar? Desconfio que sim, e isso também me faria uma vítima de mim mesmo, além de algoz.
A diferença entre a vítima que odeia e a vítima que é odiada é que a vítima odiada e que sabe que é odiada carrega o peso de um jogo não conciliatório entre o pensamento ativo e a expectativa de terror. Ou alguém é capaz de garantir que o odiado que sabe quem o odeia e pelas razões que o levaram a ser odiado permaneceria indiferente?
ODIADO E ODIADO
O odiado que não consegue zerar um jogo a ponto de descartar o ódio impingido é um odiado sob a pena eterna de auto-reprovação indefensável.
Quer pior castigo para um odiado que ter de enxergar quem o odeia como vítima de um assassinato de interações subvertidas por descaminhos arbitrários?
O balanço final que dá sustentação moral ao ódio destilado e ao odiado condenado é o passaporte ao campo de batalha a contendas irreversíveis, de cão e gato que psicanalista algum abrandaria.
Ou alguém tem dúvidas de que o ódio consolidado e levado a ferro e fogo é o pior dos sentimentos, é a negação da racionalidade, é a subversão do perdão, é o incêndio no porão do humanismo? Por essas e outras não faz parte de meu calendário gregoriano e sensorial entrar num ringue de vale-tudo.
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29/11/2024 TRÊS MULHERES CONTRA PAULINHO