O cardápio do Super Grill e o preço são suficientemente bem combinados para que a clientela dessa rede de franquias tenha consumidores fieis nas unidades da região. Mas quem for mais a fundo no conjunto da obra da empresa vai ficar estarrecido. O alojamento no Jardim do Mar, em São Bernardo, é uma calamidade à espera de ação do Ministério Público do Trabalho. Ali se amontoam 25 jovens funcionários num espaço residencial no qual mal caberia a metade e onde as condições de higiene e saúde são muito piores que qualquer presídio mequetrefe.
Se alguém tiver a ideia de contrapor às lojas de espaços bem distribuídos e impecavelmente higienizados do Super Grill alguns painéis que revelem os interiores do alojamento malcheiroso e de gravíssima insalubridade no Jardim do Mar, provavelmente a clientela debandaria. O Super Grill do Shopping Metrópole é um torpedo nos direitos trabalhistas. Se outras unidades tiverem o mesmo padrão de relacionamento com os funcionários (e há denúncias nesse sentido), então não há outra saída senão severas penalidades.
É chocante o descompasso entre uma loja de ares modernos e uma comida que vale o preço que se paga e uma quase masmorra medieval em pleno bairro de classe média-média de São Bernardo. Por isso o Ministério Público do Trabalho de São Bernardo precisa agir o mais rapidamente possível. Antes que o Super Grill mascare a realidade ou altere as normas contratuais para fugir da responsabilidade.
Cinco anos de tormentos
Há mais de cinco anos a vizinhança daquela casa no Jardim do Mar reclama do barulho sem hora marcada ou de todas as horas possíveis dos funcionários da rede de fastfood. Sou a vítima mais incomodada com tamanho abuso. Meus problemas de labirintite incentivam a resistência ao barulho. Quem tem um mínimo de ideia sobre os efeitos desse distúrbio auditivo sabe do que estou falando. Há cinco anos durmo no exíguo espaço de meu escritório domiciliar, um espaço que transformei em dormitório para escapar aos decibéis não só do vizinho incômodo, mas também de uma Rua Senador Vergueiro que virou ponto de bandoleiros desde que uma discoteca ali se instalou sem nenhuma preocupação e cuidado com acústica.
Por isso, há cinco anos venho numa luta inglória de tentar eliminar o problema. Primeiro de forma educada, e depois, sem saída, de maneira menos civilizada, segundo os padrões cínicos de uma sociedade em geral sem capacidade de se indignar. Há cinco anos seguidos recebo a mesma resposta: vamos resolver, vamos resolver. Um gerente ou algo assemelhado que responde pelo nome de Ederson, e que chefia a loja do Super Grill do Shopping Metrópole, em São Bernardo, é a ponta de lança dessa rede de franquias. Ederson é um sujeito que coloca o interlocutor numa dúvida cruel: seria dissimulado ou não entende a lógica dos acontecimentos?
O que seria, afinal, Ederson? Não tenho dúvidas de que Ederson é um ator canastrão, um dissimulado. Faz de conta que tudo não é com ele. Mas já deixou marcas de que é mais responsável do que pretende fazer crer. Uma de meus ocasionais interlocutores sobre determinado comportamento da economia da região, Ederson nunca pareceu alguém sem juízo ou senso crítico. Muito pelo contrário. Não seria, portanto, no caso do Super Grill, que fugiria a essa constatação. Por isso, ele se faz de desentendido, fala mansa, quase subserviente.
Trabalhadores-escravos
Os mais de duas dezenas de funcionários do Super Grill que moram no alojamento de quinta categoria do número 980 da Rua Mediterrâneo, no Jardim do Mar, são espécies de trabalhadores- escravos. Eles foram trazidos a São Bernardo por indicação de atuais ou antigos funcionários da rede de franquias. Tudo em sincronia com o comando de cada unidade da rede. O Super Grill tem preços competitivos no mercado de fastfood provavelmente também porque explora a mão de obra que lhe serve de maneira incomum num mundo em que não faltam organizações sociais de olho no padrão de relacionamento entre capital e trabalho.
Uma visita mesmo que rápida ao alojamento da Rua Mediterrâneo é um convite à prostração, ao desânimo, à revolta. Os mais de duas dezenas de funcionários do Super Grill amontoam-se nos beliches. As paredes mofas recomendariam cuidados especiais com a saúde. Falta circulação do ar. Os dois banheiros competem pau a pau com qualquer unidade do gênero em áreas publicas.
O mal-cheiro espalha-se por todo o imóvel. Como se fosse preciso, porque não há sinais de que alguma faxina tenha sido feita nos últimos meses. Faxina de verdade, dessas com material de limpeza que se encontra em qualquer mercadinho, não um simples passar de pano encardido e úmido de água.
Esquema de contratação
Os mais de duas dezenas de funcionários da rede Super Grill que moram no alojamento da Rua Mediterrâneo são todos jovens. Vieram do Norte e do Nordeste. Pagam R$ 65,00 por mês pela moradia. Descontados na fonte, não se sabe se de forma formal ou informal. Nos tempos de calor passam mais tempo no quintal e nas calçadas da Rua Mediterrâneo. A vizinhança que se dane. A cozinha se resume a um fogãozinho. Não há gabinetes. Cortinas, nem pensar.
O que eles pagam é pouco. O suficiente, entretanto, para que na soma dos valores a direção do Super Grill não arque com praticamente nada do aluguel de um alojamento-casa que cai aos pedaços. O esgoto corre a céu aberto em pleno coração da classe média de São Bernardo.
A versatilidade do barulho dos funcionários do Super Grill transformou em rotina a possibilidade de incomodar a vizinhança, principalmente a vizinhança mais próxima. Como a minha residência. Pode ser as três horas da manhã, às cinco da tarde, ao meio dia. Todo horário é democraticamente contemplado. Eles trabalham em três turnos. Cumprem horários rotativos, portanto.
Quando um grupo chega do trabalho, outro está se preparando ou acabou de sair para preparar a comida ou para servir a clientela. E um terceiro grupo já está dormindo faz tempo. Nem zona de meretrício é tão concorrida quanto os frequentadores do alojamento da Rua Mediterrâneo. Ali o dia e a noite não tem limites. Fundem-se em forma de transtornos aos vizinhos que vivem em turnos convencionais de trabalho. Mas poucos ousam reclamar. A sociedade de maneira geral está imobilizada pelo medo de represálias.
Uma visita alucinante
Até a manhã de quarta-feira, quando conheci o alojamento da Rua Mediterrâneo, minha preocupação se limitava à algazarra rotineira, mas sempre impactante, porque de horário incerto. Foi então que decidi fazer uma visita aos jovens que conversavam animadamente numa ponta do quintal repleto de lixo. Foi um lance tardio. Deveria tê-lo feito há pelo menos cinco anos, mas mesmo assim providencialíssimo.
Era por volta das 10h da manhã. Entrei no alojamento e fiquei perplexo com o que vi. Não havia nenhum sinal de civilização nos quartos, na cozinha, nos banheiros, no quintal, onde quer que fosse. Tudo cheirava e transpirava agressão ao direito de viver com um mínimo de conforto e dignidade. Estava diante de instalações precárias, reservadas a escravos.
Não tive dúvida, diante de anfitriões aparentemente incrédulos com a visita e, mais ainda, quando sai rapidamente e voltei com o aparelho de smartphone à mão. Solicitei licença para fotografar os cômodos todos. Documentei um massacre silencioso, mantido sob segredo pelos próprios jovens trabalhadores, a maioria dos quais provavelmente desconhecedora de diretos trabalhistas básicos. São escravos e não sabem disso.
O Ministério Público do Trabalho não pode demorar a tomar providências. Não se trata apenas de aplicar os rigores da lei àquela empresa. E tampouco lacrar aquela imundície em forma de moradia. O MP do Trabalho precisa exigir da Super Grill moradia decente aos trabalhadores. Ederson, o gerente que não vê nada de anormal onde só existe surrealismo, pretende -- pelo que se depreende do diálogo que mantivemos ontem -- atribuir aos jovens explorados a responsabilidade pelas desumanidades no alojamento. O MP do Trabalho não pode perder de vista a possibilidade de que se tentará responsabilizar as vitimas pelos abusos cometidos.
Barulho é de menos
Não tenho mais disposição de cobrar daqueles meninos que abaixem o som das músicas, dos bate-papos em frente à janela da frente ou dos fundos nas madrugadas, a discrição de telefonemas nas calçadas porque só ali mesmo é possível que os aparelhos funcionem.
Nos últimos tempos, fruto de uma relação de boa-vizinhança, até porque os conflitos verbais não resolveram nada, quando não agravaram o relacionamento, passei a contar com os meninos trabalhadores da rede Super Grill como parceiros em busca do silêncio ou de menos ruídos. Eles passaram a me entender e eu passei a lhes dar um voto de confiança. Enquanto isso, Ederson, o gerente da unidade do Shopping Metrópole, vivia a paz dos irresponsáveis que lavam as mãos e fogem da zona de conflito.
Após a visita pessoal que fiz àquele alojamento que avilta a dignidade humana, não tenho coragem de exigir nem mesmo o mais discreto dos barulhos aos jovens trabalhadores. Só lhes prometi lutar para que autoridades constituídas ajam para acabar com esse regime escravocrata que nenhum cliente da Super Grill, nem eu mesmo como vizinho, conhecia até a manhã de terça-feira. Quem tiver a coragem de visitar o alojamento da Rua Mediterrâneo sairá daquele portão muito diferente do que entrou.
Já não quero que os jovens trabalhadores do Super Bill saiam do alojamento da Rua Mediterrâneo. Sair é de menos, até porque compulsório. Não é possível que mais de duas dezenas vegetem onde não mais que uma dezena, bem cuidada, poderia receber tratamento respeitoso. O que quero do Ministério Público do Trabalho é que todos os funcionários da Super Grill sejam rigorosamente protegidos.
Eles estão espalhados por outros alojamentos provavelmente com o mesmo perfil do da Rua Mediterrâneo. São jovens vítimas de um açodado esquema de seleção de pessoal que segue o princípio de que não haveria ninguém mais apropriado a indicar os próximos contratados senão aqueles que vieram de tão longe e hoje lhes servem. Os jovens trabalhadores chamam os amigos e conhecidos dos mais distintos rincões. Todos acreditam que encontrarão na cidade grande um novo mundo. Mal imaginam o que o alojamento da Rua Mediterrâneo lhes reserva.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!