Sociedade

Da Cata Preta
ao Leste Europeu

FERNANDO STELLA - 27/10/2004

Histórias de jogadores de futebol que se tornaram bem sucedidos na carreira são semelhantes na maioria dos casos: nascem na periferia, iniciam os primeiros dribles em campos de terra, são descobertos por algum empresário ou olheiro e, como num passe de mágica, passam a fazer parte do seleto grupo de estrelas do mundo esportivo. Quem não se lembra de Cafu, que deixou a favela do Jardim Irene, na Capital, para levantar a taça do pentacampeonato mundial pelo Brasil, ou de Denílson, que saiu das ruas de Diadema e brilha no futebol espanhol?


Adauto Evandro da Silva ainda não tem conta bancária recheada de euros como a maioria desses craques, mas trilha o mesmo caminho de perseverança, dificuldades e alegrias. O resultado da persistência? Com apenas 24 anos, esse rapaz criado na favela da Cata Preta, em Santo André, superou adversários dentro e fora das quatro linhas e se transformou há dois anos em ídolo na fria República Tcheca. 


A saída precoce do jovem atacante do Brasil ampliou as estatísticas de atletas que migram para países com pouca tradição no futebol. Na bagagem, o sonho de oferecer dias melhores à família. Antes de balançar as redes tchecas e conseguir fama longe do Brasil, Adauto perambulou por outros gramados. 


Carreira rápida


O entra-e-sai de clubes não foi por falta de qualidade, mas pela pouca maturidade profissional e pessoal. Com apenas 18 anos, o atleta, que três anos antes assistiu à separação dos pais e foi morar no alojamento da Escolinha de Futebol do Esporte Clube Santo André, assinou pré-contrato com os alemães do Bayer Leverkusen. Isso graças a oito gols marcados na Copa São Paulo de Futebol Juniores de 2000, que o fizeram artilheiro da competição e despertaram o mundo empresarial. “Sequer vesti a camisa profissional do Ramalhão” — lembra Adauto, que teve o passe comprado à época pelo empresário Juan Figger por US$ 1 milhão. 


Mas o atacante também não usou a camisa do time alemão e foi emprestado para o Atlético-PR. A primeira passagem pelo Sul do País durou apenas seis meses, em 2000. Nesse pouco tempo, Adauto marcou 12 gols e foi artilheiro do Campeonato Paranaense, além de campeão estadual — o suficiente para deixar saudades nos torcedores e o mandar à Espanha, onde defendeu o Sporting Gijón por um ano e fez apenas cinco gols. De volta ao clube paranaense, o jovem atacante foi alçado à vitrine do futebol brasileiro com o título de Campeão Brasileiro de 2001 e vice-campeão da Copa Sul-Minas de 2002. “Foram 28 gols com a camisa do clube paranaense nas duas oportunidades” — recorda. 


Como todo profissional bem sucedido, a competência vem acompanhada de certa dose de sorte. Empresários do Slavia Praga, da República Tcheca, estavam nas numeradas do estádio Arena da Baixada para assistir ao jogo do Atlético-PR contra o Grêmio no primeiro semestre de 2002. Naquele dia, Adauto Evandro da Silva marcou três gols e impulsionou definitivamente a carreira de jogador de futebol tão sonhada quando ainda menino dividia o tempo entre os treinos nas escolinhas do Santo André e o trabalho de feirante aos domingos. 


Problema racial


A nova oportunidade no cenário internacional chegou acompanhada de obstáculos muito além dos troncudos zagueiros tchecos: frio, cultura muito diferente e preconceito por ser negro.


Mal pisou em solo tcheco e Adauto sabia que a responsabilidade seria maior do que a imaginada. Além de ser o primeiro brasileiro a defender um clube daquele país, foi contratado no embalo do pentacampeonato mundial conquistado pelo Brasil. Sozinho, Adauto ficou seis meses no banco de reservas. “Sem contar as temperaturas de até 18 graus negativos e o total desconhecimento do idioma” — relata. 


Para piorar, teve de enfrentar o racismo no futebol europeu. O fato mais inusitado ocorreu no confronto contra o Sparta Praga, espécie de Corinthians versus Palmeiras do frio. Adauto ouvia ruídos de macacos mimetizados pela torcida toda vez que tocava na bola. “Foi muito triste. Os próprios jogadores rivais ficaram constrangidos com o episódio” — cita. A cena foi tão constrangedora que o juiz eslovaco parou a partida. O caso ganhou repercussão internacional e o Sparta Praga foi multado pela Uefa — entidade que comanda o futebol europeu — em US$ 10 mil.

 

Vitória aos poucos 


Adauto pensou em jogar tudo pelos ares. Apenas pensou. Aos poucos ganhou a confiança de torcedores e comissão técnica não só do Slavia Praga como de todo o país. Foi vice-campeão nacional logo na primeira temporada e coroado com a Rosa de Cristal de Bohemia ao ser considerado o melhor jogador estrangeiro da temporada 2002/2003. “Foi a primeira vez que um não-europeu recebeu o prêmio” — orgulha-se o andreense, que marcou mais de 20 gols com a camisa vermelha e branca do Slavia. A volta por cima dentro e longe das quatro linhas foi o bastante para transformá-lo recentemente em garoto-propaganda de campanha nacional contra o racismo após convite do presidente da Federação Tcheca de Futebol, Han Obst.


O menino da Cata Preta é agora verdadeiro ídolo no pequeno país do Leste Europeu. Foi até considerado um dos 10 homens mais cobiçados pela mulheres em pesquisa feita por revista local direcionada ao público feminino. A adaptação à cultura local também foi além de falar bem o difícil idioma. Hoje Adauto tem como hobby brincar de hóquei sobre gelo, esporte número um dos tchecos. A influência do jogador andreense é tão grande junto aos dirigentes do Slavia que outros três jovens talentos do Grande ABC foram levados este ano para testes na equipe. Apesar de ter contrato até 2006, Adauto pensa em atuar novamente no futebol brasileiro. “Quem sabe não retorno no próximo ano” — projeta.


Ligação com favela


Um ponto é certo: a ligação com a favela da Cata Preta continua e não se resume às férias profissionais. Tanto que está próximo de marcar o gol mais importante da ainda curta carreira: um projeto social, ainda sem nome, para a comunidade local. Pelo menos 120 garotos entre 12 e 21 anos aprendem os passos do esporte mais popular do planeta no mesmo campo do Unidos Futebol Clube onde Adauto deu os primeiros dribles. Os benefícios não param por aí. “Queremos incluir escolas de idiomas e informática até o final deste ano. Vamos transformá-los em cidadãos” — espera Adauto, que sonha em comprar um terreno para construção de um centro de treinamento.


Para o jogador do Slavia Praga, as vitórias dentro de campo são extensão das lições assimiladas fora dos gramados. Isso ele aprendeu muito bem. Teve conselhos dos veteranos Silas e Luís Carlos Goiano, que pertenciam à Igreja Atletas de Cristo, quando defendeu o Atlético-PR pela primeira vez. Silas e Goiano orientaram o jovem talento a não se deslumbrar com a fama e ficar longe de más companhias. “Eles também me davam dicas de como administrar o dinheiro e sempre manter os pés-no-chão. Agradeço muito por isso” — destaca o atleta, que se recorda da época em que, ainda garoto, recebia dinheiro do também veterano atacante Jorginho para ir embora após os treinos no Santo André.


Adauto ainda está longe da fama conquistada pelos Ronaldos ou por Roberto Carlos. Mesmo assim, começa a ficar conhecido. O atacante de 1,77 metro e 70 quilos foi garoto-propaganda recentemente da Academia Golf & Gym durante três meses. A imagem do jogador ficou estampada em 25 outdoors nas regiões dos Jardins, Zona Oeste e Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, na Capital. Também assina coluna semanal — Papo de Boleiro — no caderno de esportes do Diário do Grande ABC. Adauto relata sempre aos domingos as experiências vividas no futebol nacional e internacional.


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