Sociedade

Trabalhadores-escravos do
Super Grill em novo endereço

DANIEL LIMA - 14/11/2016

Finalmente depois de cinco anos de tormento, e da descoberta de que era vizinho de um alojamento com todas as características de escravidão urbana, eu, minha família e outros moradores da Rua Mediterrâneo, em São Bernardo, estamos livres dos rapazes predominantemente do Norte e Nordeste que trabalham numa das unidades da rede de restaurantes Super Grill. Ou seja: eram trabalhadores regularmente formais mas, fora do expediente, escondidamente escravos.

O Ministério Público do Trabalho entrou em campo – e deve começar a jogar para valer o jogo do esclarecimento e de eventuais desdobramentos do caso – depois de chamado a intervir. O alojamento que chegava a amontoar 25 jovens agora está completamente vazio. A última jornada se deu no final de semana. Um caminhão de mudança completou o serviço iniciado desde a denúncia. 

Ficar livre da barulheira infernal sem hora marcada e a toda hora é um alívio para quem, como eu, por conta desse contínuo ataque às normas civilizatórias, desenvolveu tormentosa labirintite. Pergunte a qualquer especialista o que uma crise de labirintite provoca. Principalmente quando se tem uma vizinhança que se assemelha a uma arquibancada de futebol em dia de jogos. Com a diferença de que torcidas de futebol vão para casa descansar. 

Qual o destino?

Ainda não sei se vou ter coragem de voltar ao quarto do qual me afastei nos últimos anos. A qualquer momento os nervos estariam sendo testados pelas lembranças de 25 jovens que, por serem jovens e serem tantos, pareciam um exército.

Sei lá se terei meu quarto de volta ou se já me acostumei ao minúsculo cômodo que também é meu escritório domiciliar. Ali, uma cama de solteiro aliviou em parte o massacre de cada dia e de cada noite. A barulheira sem hora marcada para começar e para terminar deixou traumas.

Resta saber o que vai fazer o Ministério Público do Trabalho, que recepcionou a mim e também a integrantes de minha família. O procurador Gustavo Tenório Accioly ouviu em audiência exploratória relatos sobre a desventura de trabalhadores-escravos num acampamento de quinta categoria em formato de imóvel de classe média – e os reflexos dessa iniquidade no entorno mais próximo. No caso, principalmente, minha família.

Não sou cínico. Comemorei com um sorriso triunfante a queda da bastilha de abusos e desprezo do Restaurante Super Grill e seu grupo de trabalhadores- escravos. Mas é uma vitória que ainda não me satisfaz. Nem a mim nem a quem dividiu o infortúnio da algazarra que vazava dia e noite daquele alojamento que também poderia ser chamado de acampamento.

A pergunta que o Ministério Público do Trabalho pode e deve responder é simples: para onde foram transferidos aqueles trabalhadores-escravos? E quais são as condições que encontraram com a mudança de endereço?

Alegria e rejeição

Antes que os jovens trabalhadores e escravos se voltassem contra quem se rebelou com a situação em que viviam, espécie de chiqueiro de cômodos sem ventilação e desprovidos de qualquer infraestrutura que pudesse ser chamada de apetrechos residenciais, antes disso, eles se emocionaram com a denúncia que fiz nesta revista digital, encaminhada em seguido ao MP do Trabalho. Alguém precisava lhes dizer que aquilo não era uma residência de trabalhadores. Era um pardieiro.

Depois, pressionados e ameaçados de demissão, conforme alguns me contaram, trataram de salvar a própria pele. Deverão ser rigorosamente ouvidos pelo MP a fim de que não se passem por vítimas dos vizinhos, especialmente deste jornalista, por terem sido desalojados daquele imóvel antigo e muito mal cuidado da Rua Mediterrâneo.

É claro que durante toda a odisseia que vivi, e depois de recorrer diplomaticamente a representantes da rede Super Grill, não dei a outra face.  Pendores bíblicos muitas vezes são pregações de quem não sente na própria pele a agressão de terceiros. No caso, de terceiros que eram 25 jovens.

Microcosmo de abusos?

O alojamento da Rua Mediterrâneo passou por processo de maquiagem nas últimas semanas. Executivos da rede Super Grill comandaram pessoalmente trabalhos de limpeza, pintura e higienização. Carrancudos, os homens deslocados àquele imóvel sugeriam descaso ao vizinho mais incomodado, porque mais próximo do estado de horror e de reverberação do barulho do alojamento.  

Sabe-se – e essa informação é valiosa ao MP no sentido de que faça varredura no entorno trabalhista do emprego de jovens retirantes atraídos por uma vaga, casa e comida -- que seriam pelo menos 19 residências espalhadas pela região, ou no entorno da Capital, onde o Super Grill conta com quase duas dezenas de unidades.  Seria o imóvel da Rua Mediterrâneo um microcosmo de algo muito mais amplo? Um dos jovens que ouvi durante o que se transformou em inspeção involuntária garantiu que sim. Ele já estivera em outro alojamento.

Há notícias de que casos semelhantes ao do descalabro humano do alojamento da Rua Mediterrâneo já teriam sido desmantelados. Mas nada asseguraria que o Super Grill teria deixado de praticar relacionamento trabalhista conflitante com a legislação.

Não sabem os leitores o quando me condeno por ter esquecido minha porção profissional durante os cinco anos em que, como pessoa física, busquei encontrar um caminho conciliatório com o representante do Super Grill no Shopping Metrópole, em São Bernardo. As tentativas de minimizar os estragos diários que minavam a resistência de quem era assombrado pela barulheira deram com os burros nágua. Cansei das promessas e dos acordos jamais cumpridos. Onde estava o jornalista combativo, me pergunto? Ou me recrimino?

Mais que fachada

E com a mesma honestidade intelectual de quem não esconde que está feliz porque finalmente se viu livre do terrorismo de decibéis garanto aos leitores que o jornalista só aflorou mesmo – e daí para o resultado final foi um passo gigantesco – naquela manhã, quando tive a curiosidade de conhecer os interiores do alojamento. Até então aquele imóvel encardido pelo tempo e pelo desleixo do proprietário com o qual ainda haverei de acertar algumas contas não passava de fachada residencial decadente, típica de um bairro de classe média de São Bernardo que não resistiu à desindustrialização.

Quase sou levado a escrever “casarão” em vez de imóvel. Seria uma bobagem sem tamanho. A casa velha tem apenas três quartos e, somando-se todos os espaços, não comportaria mais que seis pessoas. Chegaram a superlotá-la com quase três dezenas durante muito tempo.

Foi um gesto puramente jornalístico a curiosidade que me levou aos interiores do alojamento e que, em seguida, me fez voltar à minha casa para apanhar o smartphone e registrar flagrantes do holocausto ambiental. Alguma coisa me cutucava para entrar no imóvel. O vizinho irritadiço precisava ceder lugar ao jornalista latente que negligenciara uma grande reportagem. Encontrei caos em todos os cantos.  

Mais que isso: os humanos que ali se multiplicavam perderam a noção da violência de que eram vítimas. Um deles chegou a dizer que não tinha tempo para pensar no que encontraria ao chegar do trabalho. O cansaço era muito maior que o sentido de abominar a estrutura física e material do alojamento. Outros preferiram dizer que o melhor antídoto era beber cachaça, cantar e, depois, desmaiar aonde o corpo quisesse.

De vítima a defensor

Vítima daqueles rapazes me transformei em defensor. Compreendi a opção de ocuparem o quintal sujo e as calçadas do imóvel, em churrascadas improvisadas regadas de cachaça e muita música regional – além de intermináveis telefonemas a parentes distantes. Passar alguns minutos, principalmente em dias calorentos, naquele alojamento era um vestibular ao inferno. Os rapazes escravos não tinham mesmo outra saída senão respirar lufadas de ar fresco. Mesmo à custa da saúde e da tranquilidade da vizinhança.

Vários deles disseram no dia em que fotografei a imundície que os cercava não haver razões para reclamações. Como pode atrapalhar o vizinho do sobrado ao lado alguém que não fazia nada além de, por volta da meia noite, abrir a torneira do tanque no quintal e passar meia hora a lavar roupas? Como um radinho de pilha no último volume poderia ser tão desagradável? Quando se multiplicam ações como essas e tantas outras por 25 vezes ao longo do dia e da noite dá para ter ideia mais precisa dos estragos. Mas eles jamais se desdobraram em 25 partes. A individualidade era o mundo de cada um.

Documentei todos os desdobramentos daquela visita informal. Acompanhei atentamente todas as medidas tomadas pela direção do Restaurante Super Grill. Houve faxina imediata. Mascarou-se com pintura rápida a incompatibilidade do imóvel com os pressupostos de qualidade de vida. Deu-se uma meia sola no alojamento após a denúncia ao MP porque se pretendia enxugar o número de ocupantes. Já vira esse filme antes, em reclamações transmitidas pessoalmente ao representante do Super Grill no Shopping Metrópole. Até que a superocupação voltasse com contratempos de sempre.

Saída gradativa

Fez-se de tudo para dar ao imóvel algo que fosse razoavelmente compatível com a promessa do emprego com carteira assinada e moradia decente. Seguiu-se o esvaziamento gradativo. Levaram os rapazes a outros endereços. Restou um grupo pequeno – e de uma jovem aparentemente gestante – ao qual se destinaram um fogão de quatro bocas e uma geladeira novinhos.

Um dos chefes dos rapazes na unidade da Super Grill do Shopping Metrópole ampliou, dessa forma, o privilégio de morar num cômodo especial do alojamento, originalmente destinado à lavandeira. Ele continuava no imóvel com alguns outros funcionários.  

Entretanto, a audiência do MP do Trabalho mudou os planos do Super Grill. O alojamento agora está vazio. Nada melhor. A ameaça de reocupação gradual e ultrajante do imóvel estaria permanentemente no horizonte. Cinco anos de usos e abusos indicavam que o ritual possivelmente se repetiria. Essa espécie de sanfona de desrespeito continuado permaneceria com potencial intranquilizador.

O que quero saber nestas alturas do campeonato é para onde foram os trabalhadores-escravos do Super Grill. Quantos funcionários dispõe a rede? Quantos imóveis semelhantes ao que atazanou a vida dos vizinhos da Rua Mediterrâneo estariam ativos? E os competidores do Super Grill não estariam igualmente metidos em encrencas trabalhistas nem sempre denunciadas?

Fugindo da raia

Um dos executivos da rede não respondeu a um questionamento quando parecia disposto a manter um diálogo comigo logo após a denúncia nesta revista digital. Sugeri a ele, defronte à minha residência, que um de seus filhos passasse pelo menos uma noite naquele endereço de horrores. Ele fugiu da resposta.

Também durante muito tempo desafiei o gerente da Super Grill no Metrópole a passar apenas uma noite, também, no cômodo apertadíssimo e insuportável onde fui obrigado a tentar descansar todas as noites por conta da batucada verbal, musical e o escambau dos jovens escravos que ocupavam o alojamento vizinho. Ele jamais topou.

Os profissionais que comandam o Super Grill provavelmente não sejam exclusivistas em levar para as lojas da rede um exército de jovens em busca do ganha-pão. Eles devem seguir o modus operandi de empreendimentos similares. Afinal, não há improviso algum na concepção de uma forma de administrar que afronta os Direitos Humanos. Tudo é muito profissional.

Assim como a Odebrecht mantinha um departamento especializado em propinas, o Super Grill especializou-se em abrandar o custo da mão de obra com modelo de pós-jornada de trabalho de amplo conhecimento da direção. Uma parceria nefasta entre capital e trabalho.

Abusando do erro

Não foram poucas as vezes em que o gerente da unidade do Shopping Metrópole engrossou a batucada sem hora marcada com os rapazes, para desespero da vizinhança. Inclusive no dia seguinte à publicação da matéria nesta revista digital dando conta da situação. Ele chamou funcionários de outras unidades e bancou uma festa de arromba com muita bebida alcoólica. Ainda não se havia dado conta de que o enredo seria outro a partir da intervenção do Ministério Público do Trabalho.

Quem entrou naquele alojamento típico de campos de concentração jamais deixaria de reagir. Não fosse o jornalista que vive em mim – e que pena um bocado no combate aos malversadores – aqueles rapazes ainda estariam lá violentados e violentadores, enquanto seus capatazes se divertiam com a desgraça alheia.

A farra acabou no alojamento da Rua Mediterrâneo. Entretanto, somente o MP do Trabalho pode desvendar a mais que provável multiplicação de um crime de lesa dignidade humana por trás de atraentes restaurantes franqueados nos shoppings.

Os trabalhadores-escravos das redes de fast-food muito provavelmente são uma realidade a ser duramente combatida pelo Ministério Público do Trabalho. Eles são vítimas do submundo de exploração de mão de obra. Ganham nesse ponto dos estrangeiros de empresas de confecção, por exemplo, retidos em calabouços longe do público e muito provavelmente dos olhos de fiscais venais.

Glamour e terror

Eles, os rapazes escravos de redes de fast-food, vivem a esquizofrenia do ambiente de glamour dos shoppings durante a jornada de trabalho e das durezas do inferno quando chegam aos alojamentos. É preciso muita cachaça, muita música, muita juventude e muita testosterona para resistir. E a vizinhança que se dane.

Também estou preocupado com o novo destino de ocupação do imóvel. Ali já funcionou um escritório de despachante especializado em caminhoneiros e seus veículos ensurdecedores. Uma escolinha infantil também entra na constelação de irritabilidade porque abria as portas às primeiras horas da manhã.

Pensando bem, tudo isso foi muito menos doloroso do que o alojamento dos rapazes escravizados pós-jornada de trabalho. Ao contrário destes, aquelas ocupações tinham hora certa para o barulho. Pelo menos se dormia bem a noite toda.

Mas no fundo, no fundo, o que mais gostaria mesmo é que meretrizes voltassem ao imóvel da Rua Mediterrâneo. Sim, o agora desalojado alojamento já foi cama, muita cama, mesa e banho, muito banho, de mulheres de vida fácil e seus homens esporádicos.

As moças atendiam depois do horário de almoço até o último freguês. Faziam estripulias que lhes batessem na telha, mas não desrespeitavam um código de honra louvável: o silêncio extra-paredes era total. Até porque a vizinhança mais puritana as descobriu e pediram-lhes as cabeças. Bem diferentes, portanto, dos rapazes barulhentos, também indevidamente jogados num imóvel sem o respaldo técnico-legal de alojamento.

Putas silenciosas e clientes igualmente discretos são bem melhores que escravos barulhentos. Pelo menos para quem não sacraliza o capitalismo e quer dormir em paz.

Só não dou a esse artigo o título de “Quero as putas de volta” porque esta Província não está acostumada à força do politicamente incorreto mas humanamente verdadeiro.



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