Enquanto os amigos jogavam bola e se divertiam com as brincadeiras típicas dos seis anos, o pequeno Luiz Antonio Doné preferia ensaiar com o coral nos fundos da Paróquia Imaculada Conceição, a tradicional igreja matriz de Mauá. Foi ali, num modesto salão onde também funcionava antigo depósito de mantimentos, que os primeiros acordes de a promissora carreira de cantor lírico começaram a ser entoados. Ao lado do pai José Doné, tocador de harmônica e um dos fundadores do Coral Imaculada Conceição, o menino já sonhava em um dia ser tão grandioso quanto o famoso tenor italiano Beniamino Gigli, uma das vozes de ouro da época.
Ainda está distante da fama do ídolo da infância, mas os sonhos começam a ganhar proporções sob outros holofotes. Há seis anos, o cantor lírico de Mauá é um dos integrantes de um dos elencos de maior prestígio da América Latina, o Coral Lírico do Teatro Municipal de São Paulo. Antes disso, Doné teve de mostrar que possuía muito mais que uma bela e poderosa voz. Erudição, técnica e talento foram incorporados a ingrediente fundamental para compor a fórmula do sucesso que cresce na mesma escala da projeção profissional: dedicação.
Antes de subir ao disputadíssimo palco do Coral Lírico, o cantor teve de iniciar verdadeira maratona em 1996, como suplente em seleção que envolveu mais de 300 candidatos, todos com potencial e vindos de peneiras rigorosas de outras audições.
Em 2002, a oportunidade bateu à porta com o convite para substituir um cantor na ópera O Guarani, de Antônio Carlos Gomes. Não parou mais. Já participou de recital como solista e coleciona espetáculos como Jenufa, de Janácek; Rusalka, de Dvorák; Chapéu de Palha de Florença, de Nino Rota; Romeu e Julieta, de Tchaikovsky; Contos de Hoffman, de Amadeus Hoffman; e Faustaff e Don Carlo, de Verdi. Além dos puxados ensaios de segunda a sexta-feira das 9h às 12h30, à tarde o artista assume a função de professor assistente na Escola Municipal de Música de São Paulo.
Tempo multiplo
Ajuda a orientar perto de 30 alunos e ainda encontra tempo para se aperfeiçoar ao piano. “Quando estamos em cartaz, a carga horária de ensaios dobra” — revela, com animado sorriso.
Aos 40 anos, Luiz Antonio Doné diz estar em sua melhor forma e em uma das fases mais produtivas da vida. “Costumo dizer aos meus alunos que um tenor é uma voz construída, um processo mecânico, porque o ser humano não nasceu para cantar, apenas os pássaros têm esse dom, mas podemos aprender a imitá-los. Para isso, precisamos contar com verdadeira academia da voz e aprender a usar alguns instrumentos naturais”, ilustra o cantor lírico que costuma ter sempre à mão algumas armas utilizadas para exercitar as cordas vocais: espelho, lanterna e gravador. O teclado reforça o kit.
A boa forma também exige dedicação que vai além da ginástica vocal. A musculação entrou em sua vida em 1998, quando repentinamente começou a perder a voz, ameaçada por dificuldades para alcançar os tons graves e agudos — além de sofrer com repentina queda de cabelo, inchaço e infinito cansaço. Era a tireóide que, tratada, permitiu eliminar 10 quilos do peso — 102 para 92 — e reacender a paixão pela música e o equilíbrio que precisava para tomar a decisão mais importante de sua vida: deixou emprego estável na indústria mecânica para viver exclusivamente do canto lírico.
Aluno, sempre
O apoio da família foi imprescindível. O músico passou a procurar ajuda de mestres no assunto. Tornou-se obcecado pela parte teórica da música, pesquisador e grande conhecedor de fisiologia, morfologia, estrutura e musculação da voz. “Defino-me como um eterno aluno” — diz.
Episódio semelhante havia ocorrido na juventude, quando, aos 15 anos, a voz do jovem Doné sumiu. Inconformado, o filho de família humilde de agricultores de Espírito Santo dos Pinhais, interior de São Paulo, viu o futuro na música erudita emudecer.
Mas, como o canto lírico corria quente nas veias, Luiz Doné descobriu quase que por acaso o diagnóstico da doença misteriosa que lhe afetou a voz durante cinco anos: o menino cresceu, virou rapaz e a mudança nas cordas vocais da infância para a juventude o impedia de alcançar as notas necessárias para o canto lírico. Foi um alívio, confessa, em paz com a carreira.
Da indústria à ópera
De ferramenteiro forjado pelo Senai na década de 70 aos palcos do disputadíssimo Coral Lírico do Teatro Municipal, Luiz Doné percorreu via crucis que consumiu longos anos de preparo, desafios, decepções e aprendizados. Apesar de ver a oportunidade de cantar profissionalmente escapar por entre os dedos inúmeras vezes, sempre dava um jeito de conciliar a paixão pela música erudita com a necessidade de sobreviver financeiramente.
Casado aos 19 anos com a educadora Maria, com quem vive até hoje, aos 22 já tinha uma filha e de quebra verdadeiro caminhão de responsabilidades. Para dar conta do recado de sustentar a família e ao mesmo tempo prosseguir com a carreira, cantava nos finais de semana em casamentos e festas para amigos e conhecidos. “Mas, apesar da voz grande e das notas agudas, faltava a técnica e isso me acarretou problemas de saúde nas cordas vocais”, reconhece.
Sucesso popular
Na época, Doné enchia corredores das igrejas católicas do Grande ABC com vozerio retumbante e repertório de canções românticas nacionais e internacionais de Milton Nascimento e Jessé a Beatles e Frank Sinatra, além de temas como Perhaps Love, Memory, Only You e Unchained Melody, cujos arranjo e interpretação líricos bem característicos rendiam performances que ajudavam a arrancar lágrimas das famílias e convidados dos noivos.
As apresentações em casamentos continuam, mas agora apenas para atender a pedidos especiais de amigos mais próximos, já que em alguns finais de semana também é comum atender a alguma solicitação extra do Coral Lírico ou da Escola de Música de São Paulo. O tenor não reclama e se considera privilegiado por integrar posto pra lá de cobiçado.
Além do salário de R$ 4.554, superior ao coro da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), o coral oferece aos cantores a perspectiva de se desenvolverem como solistas. Foi ali que estrelas do naipe de Paulo Szot, Rosana Lamosa, Céline Imbert e Claudia Riccitelli iniciaram carreira, sob a batuta do maestro Mario Valério Zaccaro.
Mas, para fazer parte de time tão seleto é preciso atender a série de exigências. Há período de experiência e até provas-surpresa. Pensa que terminou? Na hora da audição, o candidato é obrigado a interpretar trecho composto pela banca sem nunca ter ouvido semelhante letra e é comum ser interrompido pelos avaliadores no meio de uma apresentação.
Talento, preparo, disciplina, controle emocional, determinação e sorte são algumas das fórmulas para vencer no showbiz, sublinha Luiz Antonio Doné, que garante não haver nenhuma mágica. Ele mesmo sentiu na pele o preço de sonhar alto. Antes de conquistar a posição atual, trabalhou em bufês e foi regente de corais de igrejas. Doné também recorda com carinho das aulas de canto no Colégio Barão de Mauá em 1993, a convite da amiga Cida Zacarelli, quando nostálgicos saraus ajudavam a animar a tépida vida cultural da cidade.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!