Sociedade

Tupi or not tupi,
eis a questão

WALTER VENTURINI - 11/01/2005

“Iandré retama oguerekó tekó parab eté amoaé tetama rekó sosé”. Essa é uma frase que poderia estar na boca de qualquer brasileiro. A expressão em tupi, língua dos índios do Litoral quando da chegada dos portugueses, significa “nossa terra tem uma cultura mais diversificada do que de outras terras” e mostra face pouco conhecida da cultura brasileira que tem no professor Eduardo Navarro um dos maiores defensores. Morador de Santo André e titular da inusitada cadeira de Tupi Colonial na USP (Universidade de São Paulo), Navarro é a maior autoridade quando o assunto é o idioma dos primeiros brasileiros. Atua como consultor de filmes e minisséries sobre o Brasil do século XVI, além de ensinar algumas tribos do País a reaprender a língua que até 250 anos atrás era a mais falada por aqui.


O professor Eduardo Navarro fazia palestra na Assembléia Legislativa da Paraíba em 2000 quando, ao pronunciar frases em tupi, percebeu que alguns índios da etnia potiguara choravam. Alguns ainda se lembravam do idioma usado pelos mais velhos, mas toda a comunidade agora era falante exclusiva do português. Emocionados, os nativos convidaram o catedrático para ensinar a língua dos antepassados, tarefa que Navarro aceitou prontamente. Depois dos potiguaras, foi a vez dos tupiniquins que vivem no Espírito Santo. 


Eduardo Navarro morou durante um ano na Paraíba para ajudar a montar curso de formação de professores potiguaras. Foi produzida cartilha e até mesmo criados neologismos para o tupi a partir de conceitos inexistentes três ou quatro séculos atrás. É o caso da palavra guaraguaçú, pássaro grande, para avião, ou imabae moruissara, termo para geladeira e que literalmente quer dizer aquilo que esfria as coisas. Para ajudar a reconstruir o tupi como língua viva e falada, Navarro enfrentou os mesmos desafios do padre José de Anchieta ao sistematizar gramática apenas de uso oral para os índios.


O que faz um homem branco ensinar tupi para os índios é a mesma razão pela qual o Brasil não é País bilíngue como os vizinhos Paraguai e Peru, onde boa parte da população se expressa em espanhol e em línguas nativas. Os paraguaios falam espanhol e guarani, enquanto os peruanos têm duas línguas oficiais: o espanhol e o quíchua. No Brasil, a história poderia ter sido semelhante. Até 1758, a maioria do território do Brasil Colônia falava variação do tupi, a chamada língua geral. Era o idioma dos bandeirantes, das donas-de-casa, das crianças. 


Somente os meninos que cursavam a escola aprendiam a falar português, além dos súditos que vinham diretamente do reino. O tupi foi a língua falada pelos índios na época de Cabral, pelo cacique Tibiriçá e também pelo aventureiro João Ramalho, um dos pioneiros no entendimento dos europeus com os indígenas. Era espécie de língua global do universo intertribal, do Nordeste até São Paulo, adotada pelos colonizadores no contato com várias etnias da costa atlântica.


Empobrecimento


Foi o Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal, que forçou a população local a falar português. E por que aprender ou ensinar tupi no Brasil do século XXI? “Cada língua que deixa de ser falada empobrece a experiência humana. É como a destruição de uma floresta que leva à perda da biodiversidade. Ao deixar de falar tupi, o Brasil perdeu filão de estudos clássicos, que poderia nos colocar em contato com nossas raízes” — explica Eduardo Navarro. O professor aprendeu a língua dos índios lendo os textos dos padres missionários do século XVI, como José de Anchieta.


O passo seguinte foi aprender a pronúncia. Navarro percorreu o Brasil, falou com índios guaranis, cujo idioma está para o tupi assim como o italiano está para o português. Conversou com caboclos e índios da Amazônia que falam o nheengatu, outra variação do tupi preservada em terras distantes das perseguições linguísticas do Marquês de Pombal. Nos confins dos rios amazônicos existem ainda 30 mil pessoas que falam o nheengatu.


Neto de sertanista, criado em São Bernardo, Eduardo Navarro despertou curiosidade sobre o tupi ao tentar decifrar nomes indígenas de localidades. “Depois do português, o tupi é a língua que mais nomeia localidades no Brasil” — conta o professor que mora em Paranapiacaba — lugar de onde se vê o mar, na tradução nativa. 


O curso de tupi na USP tem duração de um ano. É o único de nível superior no Brasil e existe desde 1935. Eduardo Navarro também é professor de literatura e estudioso da cultura brasileira do século XVI. Percorre o País e o Exterior para falar sobre o tupi e a cultura brasileira. “A palestra mais interessante que dei foi em campo de refugiados da Palestina. Tanto lá como em outros países, o que eles sabem do Brasil é Carnaval e futebol” — conta o professor, conhecido por participar de programas como de Jô Soares, na Rede Globo.


Navarro foi consultor do filme Hans Staden, de Luiz Alberto Pereira, que conta a história de europeu prisioneiro de índios brasileiros. Quase todos os diálogos foram em tupi, o que exigiu não só a tradução do professor como orientações a atores como Stênio Garcia. A adaptação dos diálogos em tupi para a minissérie A Muralha, da Rede Globo também consta de seu currículo. Navarro estima que cerca de 10% das palavras do português falado no Brasil são originárias do tupi, língua geral ou nheengatu. 


Por causa disso, todo brasileiro fala tupi, mesmo sem saber. Quando alguém diz ir para a cucuia, fala sobre decadência, soco é a palavra tupi para substituir o vocábulo português murro. Catapora quer dizer marca de fogo e cutucar é a palavra indígena que substitui o português espetar.  


“Gosto da língua tupi não só por causa dos índios, mas pelos valores de nossa cultura que o mundo ocidental em geral perdeu” — afirma Navarro. 


A intimidade com a língua indígena fez também com que o professor traduzisse para o tupi as canções Ação de Graças, Ofertório e Kyriê, no CD 2IHU Kewere: Rezar, da cantora e compositora Marlui Miranda. Este ano, Eduardo Navarro se prepara para lançar o quinto livro, Dicionário de Língua Brasílica — O Tupi Antigo das Nossas Origens. Já escrevi Método Moderno de Tupi Antigo, Teatro de Anchieta, Lírica de Anchieta e Anchieta, Vida e Pensamento.


Para o professor, estudar o Brasil do século XVI permite entender o País. Avalia que a combinação de português e índio com africano, da junção da casa grande, da senzala e do latifúndio, revelam as bases políticas, econômicas e culturais de um Brasil pleno de problemas sociais e rico de relações humanas. 


“Só estudando o período colonial é que entendemos por que os negros são pobres, por que o catolicismo brasileiro não é tão dogmático ou por que nunca se fez por aqui a reforma agrária” — explica Eduardo Navarro, nacionalista convicto e apaixonado pelo resgate da cultura brasileira. “Somos uma das mais importantes civilizações do mundo. Não se pode falar, por exemplo, em civilização canadense ou australiana. Enquanto o Brasil é algo novo em termos culturais, Canadá e Austrália são simplesmente a transplantação da cultura britânica. Esses países não tiveram o colorido e a riqueza do Brasil” — argumenta o acadêmico.


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