Gigante pela própria natureza. O mais emblemático verso do Hino Nacional poderia também ser slogan do judoca Antonio Tenório da Silva. Ele mesmo expressa a sensação de grandeza ao relembrar da emoção de ocupar o mais alto lugar do pódio nos Jogos Paraolímpicos de Atlanta/1996, depois de derrotar um espanhol com um ippon — golpe perfeito. E não dá para contrariar a auto-definição do atleta que diariamente usa a mesma garra para travar inúmeros combates fora do tatame, seja com a revolta pessoal pela perda total da visão com apenas 19 anos, com o preconceito explícito ou a má vontade de dirigentes esportivos.
As adversidades, no entanto, foram transformadas em estímulos para a conquista do tricampeonato paraolímpico e, principalmente, para a fundação de uma ONG disposta a garimpar atletas ao paradesporto nacional.
Com apenas 13 anos, o jovem Antonio Tenório da Silva sofreu a primeira queda ao ficar sem a visão do olho esquerdo, após ser alvejado por uma mamona durante brincadeira comum entre crianças da periferia. Seis anos mais tarde, outro golpe: sofreu deslocamento de retina no olho direito, causado por infecção alérgica. Oito cirurgias não evitaram que ficasse cego.
Filhos sem rosto
A sucessão de fatalidades interrompeu o acompanhamento dos primeiros meses de vida do filho recém-nascido. “Nunca vi o rosto dos meus outros dois filhos” — lamenta o judoca de São Bernardo, de 34 anos. Se não bastasse transpor barreiras de preconceito e da falta de estrutura para se locomover, o gigante de 102 quilos bem distribuídos em 1,80 metro se viu obrigado a superar também o desprezo de dirigentes esportivos.
O caso mais contundente ocorreu logo após a conquista dos Jogos Paraolímpicos de Atlanta. O judoca tinha a certeza de que finalmente não precisaria mais desviar o foco dos treinos e competições e poderia se profissionalizar. Mas bastou pisar em solo brasileiro para perder patrocínios e assistir o CPB (Comitê Paraolímpico Brasileiro) colocar ponto final na ajuda de custo.
O desespero foi tanto que Antonio Tenório até pensou em vender a medalha de ouro. “Fui obrigado a dar aulas de judô no Clube da Ford, que também me ajudou com cestas básicas. Passei necessidade” — relembra o tricampeão paraolímpico. Isso tudo, sem contar o calote de dirigentes do Vasco, que o contrataram em 2000. Ele e dezenas de atletas, deficientes ou não, fizeram parte do glamoroso projeto olímpico da equipe carioca. Como quase todos, foi vítima do time presidido pelo então deputado federal Eurico Miranda. Defendeu um ano e oito meses a equipe e recebeu apenas por quatro.
Ajuda importante
Mesmo assim, encontrou apoio da superintendente do IBDD (Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência), Tereza Amaral. Desde a fundação da entidade, no final da década de 90, Tenório conta com ajuda financeira da dirigente para continuar os treinamentos e não se preocupar com assuntos financeiros extra-tatames. Essa tranquilidade foi fundamental para conquistar a segunda medalha de ouro em Jogos Paraolímpicos — Sydney/2000.
As adversidades foram convertidas em determinação e levadas ao tatame. Azar dos rivais. Tenório não perde em competições nacionais desde 1991. O judoca sãopaulino de coração está há 14 anos invicto no País. “Não sei o que é perder no Brasil. Mas estou preparado para ser derrotado um dia” — garante. A capacidade de superar obstáculos é tão gigantesca que foi campeão logo na primeira competição, em 1991, quando retornou aos torneios pelo Camp (Círculo de Amigos do Menor Patrulheiro), de São Bernardo. O inusitado dessa fase é que foram sete vitórias sobre atletas sem nenhuma deficiência.
Eficácia que se estende a torneios internacionais, principalmente em Jogos Paraolímpicos. São 16 vitórias e nenhuma derrota em três edições. A mais recente medalha de ouro foi conquistada no ano passado em Atenas. Além de mudar de meio-médio para meio-pesado na última competição internacional, Tenório lutou também com fortes dores no joelho. Derrotou quatro adversários, entre os quais o então campeão paraolímpico, o norte-americano Kevin Szott.
Os títulos de Antonio Tenório da Silva foram propulsores do crescimento do paradesporto brasileiro. O judô serve de exemplo, pois contava com apenas dois atletas em 1995 e hoje contabiliza 75. Ele sabe, no entanto, que o reconhecimento como profissional bem sucedido não é motivo para cruzar os braços. Cumprimentos e tapinhas nas costas não o iludem. Por isso, fundou há oito anos a ONG Centro Social Desportivo de Deficientes Visuais.
Mais beneficiários
A ONG abriga mais de 50 atletas divididos nas modalidades de natação, xadrez e judô. Além de treinamentos, recebem ajuda de custo. Um dos braços dessa ação social está em São Bernardo, onde quatro deficientes visuais e um auditivo participam de atividades no ginásio do Sesi sob coordenação do treinador William Soares.
A divulgação do paradesporto na região é uma das propostas do homem que assumiu recentemente a diretoria da 8ª delegacia do Grande ABC da Federação Paulista de Judô Paraolímpico. Público não falta para isso. Somente em São Bernardo quase 15% da população é portadora de alguma deficiência. “Infelizmente, muitos pais deixam os filhos em espécie de redoma de vidro. Isso faz com que não despertem para os benefícios do esporte” — lamenta Antonio Tenório.
Competições, títulos e envolvimento com ações sociais não minimizam a saudade da época em que nadava com os amigos na represa Billings, em São Bernardo, ou quando assistiu o judoca brasileiro Aurélio Miguel conquistar o ouro olímpico em Seul/1988. Por isso, o final de semana é dedicado exclusivamente à família na casa construída na Vila Vitória, em São Bernardo. Tenório não é dependente de familiares para se locomover. Está sempre acompanhado de bengala. “O deficiente não pode se entregar. Só assim provará que é capaz” — acredita Antonio Tenório da Silva.
Durante a semana ele mora num apartamento da Capital para facilitar a locomoção até o Ginásio do Ibirapuera, onde treina por quatro horas diárias. A capacidade de superar obstáculos diariamente dentro e fora dos tatames é o oxigênio para sonhar com a quarta medalha olímpica daqui a três anos nos Jogos de Pequim. “Estarei com 37 anos e a idade é um adversário dos mais indigestos. Mas vou lutar para chegar em condições na China” — sonha o atleta do São Paulo.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!