Sociedade

Devoção à arte
cinematográfica

FERNANDO STELLA - 16/06/2005

Pense numa freira. É praticamente certo imaginar que por debaixo da vestimenta tradicional exista mulher reclusa, conservadora, que não desvie um minuto sequer o pensamento da religião e esteja incondicionalmente ligada às causas sociais. A analogia se desfaz com facilidade após alguns minutos com a irmã Iracema Noemia Farina. A católica salesiana é aficcionada pela sétima arte desde criança e, entre orações e estudos bíblicos, encontra energia de sobra para cuidar de inúmeras disciplinas que leciona na Fainc (Faculdades Integradas Coração de Jesus), em Santo André, e principalmente da videoteca particular com mais de 10 mil títulos.


A devoção pela telona é capítulo à parte na vida dessa contemporânea de Federico Fellini, um dos maiores cineastas italianos de todos os tempos. A atração pela arte cinematográfica foi despertada quando tinha apenas cinco anos. Acompanhada do pai, assistiu ao filme O Fantasma da Ópera. Não parou mais. No mínimo duas vezes por semana está num cinema. A única diferença em relação à infância e adolescência foi a mudança de datas. Antes, assistia filmes sempre aos sábados e domingos. 


Hoje substituiu o último dia da semana pela quinta-feira. “Não consigo parar de assistir bons filmes” — explica a filha única de pai contador e de mãe doméstica que não tem um filme em especial preferido, mas carrega paixão pelo diretor russo Andrei Tarkowisky, que dirigiu, entre outros, O Espelho e Nostalgia.


Paixão antiga 


Irmã Iracema participou de curso de cultura cinematográfica quando ainda lecionava na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras, em Lorena, em 1964. O resultado da experiência ficou gravado no DNA da cinéfila religiosa. Não bastasse fundar o Cine Clube no Município do Vale do Paraíba, prestes a completar 30 anos, abriu as portas de espécie de segunda unidade do projeto nas Faculdades Integradas Coração de Jesus, há quase três décadas. 


É nessa cinemateca regional que cultiva mais uma vertente da paixão. Antes de escolher a dedo bons filmes culturais, como faz questão de frisar, Irmã Iracema prepara a platéia de alunos do curso de pós-graduação em Estética e História da Arte com detalhes sobre diretores, atores e inúmeras críticas dos títulos exibidos. Ao final de cada filme, irmã Iracema promove discussão. 


Também os quase 200 estudantes da Faculdade de Terceira Idade da Fainc são frequentemente convidados a integrar o grupo. Os filmes são sempre selecionados entre os quase 10 mil títulos divididos em seis salas da videoteca particular. Quase nunca se repetem. São direcionados de acordo com a assistência. Irmã Iracema define a melhor maneira de abordar o tema, já que o Cine Clube projeta apenas documentários ou títulos relacionados com artes de todo o mundo.


Cinema e televisão 


Tanto conhecimento cinematográfico requer dedicação também à telas menores. Se não bastasse assistir no mínimo dois filmes a cada sete dias nos cinemas da região, a católica vive antenada na programação da TV. Para não perder detalhes, o quarto da cinéfila está equipada como mini-estúdio, com videocassete e DVD e outros aparelhos eletrônicos. “Faço tudo isso com prazer” — afirma a católica, que tem mais afinidades, além da paixão pelas telas, com o cineasta Federico Fellini: o diretor italiano de obras-primas como Os Boas Vidas, de 1953, e La Nave Va, de 1983, também estudou em escola de freiras salesianas na Itália.


Irmã Iracema tem vaidade suficiente para não revelar publicamente a idade. A experiência estampada no rosto, entretanto, denuncia mulher incansável. O dia-a-dia da religiosa se compara ao de executivos envolvidos com agendas atribuladas. Quando não está debruçada em livros para aprofundar o conteúdo que será repassado aos estudantes, a religiosa define estratégias pedagógicas das Faculdades Integradas Coração de Jesus. Isso sem contar o tempo dedicado aos filmes. 


Por volta das 18h, final de expediente na maioria das empresas, é o momento de Irmã Iracema quase finalizar o jantar já vestida com o uniforme da instituição de ensino. Logo mais estará a postos para ensinar inúmeras disciplinas pelas quais é responsável na faculdade cravada na região central de Santo André. Sociologia, Estética, História da Arte e Antropologia, entre outras, estão entre as matérias do vasto currículo profissional da católica. “Paro de lecionar por volta das onze da noite” — orgulha-se a mulher formada em Filosofia, Psicologia Educacional, Ciências Sociais e Teologia.


Explicação simples 


A devota de Nossa Senhora Auxiliadora e São João Bosco tem a resposta na ponta da língua sobre a paixão quase ilimitada pela arte cinematográfica. “Fui estimulada naturalmente desde os primeiros anos de vida” — afirma a também vice-diretora de uma das 20 mil escolas mantidas pelos salesianos ao redor do mundo. 


Além do pai que passava horas intermináveis a discutir filmes como uma Iracema ainda menina, ela teve a influência do avó italiano apaixonado por ópera. A convivência familiar foi a principal responsável pela ampliação do leque de especialidades. Cinema, música e estética ganharam companhia até de cerâmica artística. A religiosa coloca literalmente a mão na massa para comandar o curso livre de cerâmica na Fainc. 


A salesiana também é reconhecida como espécie de amuleto das Faculdades Integradas Coração de Jesus. Não só por morar há três décadas em companhia de outras sete religiosas na casa anexa à instituição de ensino. É comum ex-alunos ligarem à escola com o desejo de novamente ouvir conselhos da antiga professora. A referência é fruto de carreira pedagógica recheada de peculiaridades. Irmã Iracema lecionou para crianças somente no início das atividades, em Lorena. Há muito tempo o público-alvo é formado por universitários, pós-graduandos e terceira idade.


O tempo para a fé, no entanto, não fica reduzido. Jesus Cristo é prioridade, assim como as lições aprendidas desde à época que estudou no Colégio Salesiano Santa Inês, na Capital. Os ensinamentos são repassados nas aulas semanais de Sociologia e Antropologia Cultural, disciplinas do curso de Teologia. Graças à religião, Irmã Iracema conheceu inúmeros países europeus como Itália — onde também fez curso de cultura cinematográfica —, além de Alemanha e França. “Agradeço muito a Deus por tudo o que fiz e o que ainda irei fazer” — enfatiza.  


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