Pudesse a futura geração ter o privilégio de conversar com Rita Angela Zincaglia, o conhecimento da história dos que construíram São Bernardo chegaria de maneira contundente e divertida. Fatos que coordenaram a trajetória política da cidade brotam como contos de fada apimentados pelo humor inteligente da matriarca e constituem legado de valor inestimável. Em cada placa de rua dorme um nome conhecido, uma saga, uma relação cultivada por anos de convivência.
Rita Zincaglia nasceu em Chicago, Ilinois, nos Estados Unidos e chegou em São Bernardo aos 10 anos na companhia da mãe Lúcia e da irmã mais velha Tereza. O irmão Bruno veio logo depois com o pai Vicenzo que, de pronto, montou negócio na rua Marechal Deodoro ainda sem calçamento, água encanada e sistema de esgoto. Era no Restaurante Estados Unidos que a vida acontecia uma vez que os ítalo-americanos traziam novas tecnologias e guloseimas desconhecidas dos brasileiros. “Tudo passava por lá porque não existia a Via Anchieta” — diz Rita.
O espírito pioneiro de Vicenzo pulsa evidente nas veias de Rita Zincaglia, para quem não há tempo ruim se o trabalho solicitado incluir ousadia e pragmatismo. “Basta ter uma movimentação e algo para ser solucionado que não consigo ficar parada” — afirma. Ainda na infância viu o pai montar loja de materiais elétricos quando as casas não tinham iluminação. “Foi meu pai que instalou a primeira serpentina de chope da Antarctica” — garante.
Genética da avó
Mas a disposição para os bons relacionamentos com toda a comunidade Rita herdou da avó paterna Teresina Capitanio, que era obstetra e providenciou o parto de muita gente importante como das famílias Zampol e Dell’Antonia. Os instrumentos cirúrgicos, moderníssimos para a época, estão no Museu da Chácara Silvestre.
Desde que ocupou o cargo de Secretária Geral no governo de Lauro Gomes, não há evento na cidade para o qual não seja consultada. Conhece todos os detalhes cerimoniais e de protocolo. As festas saem impecáveis. Em setembro último foi imprescindível na organização da galeria de fotos dos prefeitos de São Bernardo. A tarefa? Localizar as famílias dos homenageados e envolvê-las na cerimônia. “No ano passado fizemos a galeria dos presidentes da Câmara Municipal” — orgulha-se.
Com cinco linhas telefônicas em casa, Rita Zincaglia recebe em média 50 ligações por dia e faz outras tantas. É na missão de encaixar todas as informações num perfeito patchwork que encontra o aconchego da vida. “Adoro essa adrenalina” — admite. A paixão pela condução da coisa pública e pela política brotou antes dos primeiros namoricos.
Separação desafiadora
Observava os passos do pai ainda nos EUA e depois amadureceu com os movimentos que escreveram a história da região desde quando São Bernardo perdeu a condição de sede para Santo André por conta da estação ferroviária. “A revolta tomou conta do espírito dos batateiros e o doutor Fláquer queria eleger o filho deputado federal e posteriormente senador” — lembra.
Como era muito amigo da avó de Rita, pediu-lhe ajuda na campanha. “Minha avó visitava os pacientes nas vésperas do pleito e perguntava sobre a intenção de voto. Se fosse favorável ao Fláquer, tudo bem, mas se fosse contrário, receitava óleo de rícino que tinha efeito por três dias” — conta às gargalhadas.
Em 1944 São Bernardo ganhou emancipação política e Wallace Simonsen foi nomeado prefeito. Visitava a casa de Rita acompanhado de Luiz Zenha Guimarães que inspirou a jovem Zincaglia a ocupar cargo de influência na vida pública. “Eu considerava a posição daquele moço muito importante, e minha mãe contou que ele era secretário do prefeito. Então prometi que quando eu fizesse 18 anos estaria naquela função” — lembra.
E não deu outra. A determinação e firmeza colocaram Rita praticamente no comando da cidade. Em suas mãos estavam as decisões sobre obras e serviços. Lauro Gomes cuidava da política. “Eu era como uma gerente da cidade, substituía o prefeito em quase tudo e quando eu descobri que todo mundo teria de me obedecer...” — relata com sorriso maroto.
Sempre com prefeitos
Dois anos mais tarde testemunhou o governo de Tereza Delta. Na sequência viu Higino Baptista perder para José Fornari e São Bernardo ter duas câmaras de vereadores: uma de fato e outra de direito. “As duas faziam leis era um rolo só” — diverte-se ao lembrar das reuniões no antigo salão de festas de José Pelosini. As atividades também incluíam a Agremiação Cultural Estudantina, então presidida por Nelson Corazza.
Antes de ingressar na administração pública, Rita Zincaglia passou pela escola da livre iniciativa. Começou a vida profissional ao lado da família Etchenique que trouxe para São Bernardo a Companhia Distribuidora Geral Brasmotor, mas aos 14 anos já havia desempenhado a função de tradutora para o engenheiro industrial da Chrysler. Depois dedicou-se à área de importação e exportação da Firestone. Em todas as oportunidades, a língua inglesa serviu como chave mestra, inclusive na Prefeitura.
Quando Lauro Gomes assumiu o governo em 1952 exigia que a Secretaria Geral fosse ocupada por profissional com pré-requisitos pouco convencionais para a época. Rita tinha o perfil ideal, mas não queria trocar a iniciativa privada pelo serviço público. Confessa que tinha medo e também considerava o prefeito recém-eleito um tanto grosseiro. “Ele falava palavrões e fumava charuto e eu não gostava daquilo” — comenta.
Havia ainda outro impedimento: Rita era estrangeira e o jurista Tito Costa questionou a legalidade da nomeação. Salário revisto diversas vezes e documentação legalizada, Rita Zincaglia pôs os pés onde iria fazer história.
Envolvimento total
São Bernardo tinha apenas cinco mil eleitores mas despontava como Detroit brasileira. De terra dos móveis passava a ser também dos automóveis. O desenvolvimento da cidade foi vertiginoso e a jovem americana integrou os mais importantes processos. É fundadora da Associação dos Funcionários Públicos e também dos Funcionários Inativos. Numa noite fria de abril criou ao lado de Pery Ronchetti Carlos o São Bernardo Tênis Clube e também a Escola Técnica Industrial. Acolheu em casa as primeira reuniões para a fundação do Rotary.
Trabalhou ainda no estreitamento das relações entre indústria e comércio a pedido de Manoel Corazza que fundou a Associação Comercial e Industrial de São Bernardo. Foi também solicitada por Aldino Pinotti para integrar a comissão que preparou o processo de criação da Faculdade de Direito. Rita Zincaglia rompeu os limites da cidade e encampou a regionalidade em parceria com os prefeitos de São Caetano, Anacleto Campanella e Oswaldo Massei, e de Santo André, Lauro Gomes e Fioravante Zampol, participando da criação da CICPAA (Comissão Intermunicipal do Controle da Poluição da Água e do Ar) hoje convertida na Cetesb.
A aposentadoria na Prefeitura aconteceu em 1977, 10 anos depois do divórcio do casamento que durou menos de um ano. Em 2000 recebeu título de cidadã honorária. Há quem diga que todo político da cidade pede-lhe a bênção e ouve com atenção os conselhos e estratégias. O apartamento onde mora é o quartel general de preciosas articulações, mas a sala cheia de brinquedos denuncia que nem só de política se vive. O filho Walmir, a nora Luciane e os netos Karina e Júlio carregam o sobrenome Zincaglia e preenchem o lado afetuoso de Rita. E não apenas nas conversas de bastidor há tricô. Rita Zincaglia traz os dotes das meninas de boa família. A arte com agulhas e linhas bem como o violão enriquecem o currículo.
Católica e sem filiação partidária — já pertenceu ao PTB e depois ao PFL —, Rita coleciona CDs de estilos ecléticos, mas a admiração reserva para poucos além do pai, cujas ferramentas de elétrica e hidráulica constam do acervo do Serviço Histórico Municipal de São Bernardo. Declara que tem alta estima pelo prefeito William Dib, a quem conhece desde a infância. Fã de culinária simples e um bom papo, Rita Zincaglia, já não percebe na política a união que fermentava idéias e ideais no passado. “Nada era levado adiante se não houvesse consenso do grupo” — diz.
Nos momentos de recolhimento, faz suas orações e às vezes revê o filme favorito, Casablanca, de Michael Curtiz, com a inesquecível As Time Goes By.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!