Sociedade

Sem medo de
viver e ser feliz

VERA GUAZZELLI - 05/11/2005

Se o dia tivesse 36 horas seria perfeito para acomodar a hiperatividade de Atea Ada Andreoli Cecon. Essa andreense de nome pouco comum, no entanto, prefere não reclamar das 24 horas que o calendário ajustado pelo Papa Gregório XIII lá pelos idos de 1.582 colocou à disposição dos mortais. 

Exemplo de vitalidade e alto-astral, criou maneira peculiar de perpetuar a juventude e provar que quase sempre é possível fazer agora muito do que se cogita deixar para depois. Aos 72 anos, dá aulas de culinária, cozinha para fora, estuda inglês e computação, vai à academia, confecciona roupas para crianças carentes e ainda se dá ao luxo de relutar contra a própria consciência quando não encontra o que fazer naquele período do domingo religiosamente dedicado ao ócio. 

Atea Cecon não tem medo de viver e muito menos de ser feliz. Para ela, só existem dois dias nos quais é impossível fazer alguma coisa. Um é o ontem, irrecuperável. O outro, o amanhã, porque o futuro a Deus pertence. Mesmo assim, nada a impede de planejar a próxima jornada com prazer quase semelhante ao da criança que planeja futuro promissor. 

Tempo como aliado 

Como a capacidade de manter vivo o sonho permite quase tudo, até mesmo aliviar o inevitável peso dos anos, por que não testar aquela receita nova, ler um bom livro ou rever a lição de inglês? Afinal, mais que senhor da razão, tempo ganha significado de dádiva divina para quem aprendeu o valor de cada segundo no desafiador MBA da vida.

"Quem fica parado, encolhe" -- simplifica essa simpática senhora enquanto prepara a cozinha da casa para receber as alunas de culinária.

As aulas e a cozinha lhe consomem a maior parte do tempo. Por isso, nem mesmo durante a entrevista ela sossega. Faz questão de responder às perguntas durante as três horas em que ensina os segredos da rosca doce de nozes ou daquelas bolachinhas que derretem na boca. 

O período de convívio é curto para avaliação aprofundada, mas suficiente para captar a essência da mulher que, entre tantos ensinamentos, faz questão de se mostrar transparente. "Pode perguntar o que quiser. Não tenho nada a esconder" -- brinca.

Atea tem gosto em multiplicar tudo o que sabe e o que ainda pretende aprender. Por isso, fez das aulas de culinária uma paixão. Transforma os momentos de ensinamento em espécie de catarse dessa filosofia de vida. Nenhuma pergunta fica sem resposta.

Fermento e açúcar 

Nenhuma resposta é evasiva. De presente, o interlocutor sempre ganha o sorriso de aprovação, mesmo que os questionamentos permaneçam estacionados na linha da obviedade. "Fermento e açúcar se derretem um pelo outro" -- explica didaticamente à moça que teve dificuldade em captar o fundamento básico de uma das receitas. "Falta farinha" -- relembra pela quarta vez à outra aluna que se atrapalha para deixar a massa no ponto correto. 

A desenvoltura na cozinha é resultado de pelo menos quatro décadas de convivência diária com forno e fogão. A atividade é uma fonte de renda complementar. Ela já capitaneou lanchonete, ajudou a irmã em serviços de bufê e ainda prepara alguns dos quitutes que o filho comercializa no restaurante instalado ao lado de sua residência, na rua das Monções, em Santo André. 

Por conta do dom e do negócio, fica atenta a todos os lançamentos, tira o máximo de proveito da guerra de ofertas patrocinada pelo varejo e a cada 15 dias, em média, vai ao Mercado Municipal de São Paulo repor ingredientes como nozes descascadas e frutas cristalizadas, que faz questão de adquirir num dos mais tradicionais fornecedores de iguarias finas.

Depois dos 70

Apesar de a afinidade com a cozinha estar no sangue -- Atea descende de italianos e cultua a tradição da mesa farta -- só começou a enxergar a atividade com outros olhos no início da década de 70. Até então, despendia todo o tempo no cuidado da casa, do marido e dos quatros filhos, como a maioria das mulheres da época. Só após ter frequentado curso de culinária da extinta Eletroradiobraz, na unidade da Oliveira Lima, em Santo André, despertou para o empreendedorismo. 

A loja foi uma das precursoras das redes de varejo e propagandeava as aulas como ação inovadora de relacionamento com o consumidor no Grande ABC. "Realmente aquilo era uma novidade. Foi o ponto de partida e desde aquele dia não parei mais" -- relembra. 

No dia em que concedeu a entrevista, Atea também montou um bolo de aniversário em forma de palhaço. A iguaria chamava a atenção pelo formato e detalhamento -- aquele toque final que valoriza o produto e leva à inevitável vontade de comer com os olhos. 

Como praticamente tudo que sai do forno, do fogão e, sobretudo, da criatividade da mulher que nasceu em Ribeirão Pires e fixou residência em Santo André já no segundo ano de vida. Seja pão doce, croissants, trouxinhas de massa folhada ou cookies em formato de estrela ou meia-lua cobertos com chocolate, tudo vem recheado com o diferencial do capricho. "É a cereja que torna o bolo disputado" -- ensina à aluna que ensaia os primeiros passos no negócio doméstico. 

Macetes do sucesso 

Dicas, aliás, não faltam durante as aulas. Diferente de renomados cozinheiros ou gourmets que costumam manter a sete chaves as receitas mais cobiçadas, Atea faz questão de esclarecer os macetes que determinam o sucesso. Parte do princípio de que informação e conhecimento têm de ser compartilhados, sempre. Caso, contrário, de que adiantam apostilas ou instruções corretamente digitadas se a professora deixar de avisar o aluno que o leite quente tira a força do fermento? 

Sem parar um minuto, Atea se revela quase por completo durante as aulas. Além do dom incontestável, a música clássica que embala o ambiente mostra o gosto requintado e a preferência pelos tenores Luciano Pavarotti e Andrea Bocelli. As histórias que gosta de contar são emblemáticas e traduzem a importância que dá à amizade, ao amor e à família, não necessariamente nessa ordem. 

Os olhos brilham quando fala do livro de receitas de 1958, dos tempos que margarina, creme de leite e tantos outros inventos culinários modernosos ainda estavam distantes da imaginação dos profissionais da indústria alimentícia. A relíquia foi herdada da cunhada e ocupa lugar de honra entre a incalculável coleção de receitas. 

Também fala com carinho especial do bolo de casamento que fez para uma de suas primeiras alunas, outra senhora simpática que se tornou avó e frequenta sua casa até hoje. "Adoro casamentos. A marcha nupcial é linda. Cada vez que vou a uma cerimônia penso na vida dos noivos, nos sonhos, nos planos e nos desafios que o casal vai enfrentar para alcançar a felicidade" -- comove-se.

Atea garante que é feliz, apesar de o destino ter lhe reservado percalços dolorosos. Perdeu o marido e dois dos quatro filhos, mas não se rendeu à fatalidade. Aprendeu a lidar com as ausências sem exagerar na resignação ou no exercício do complexo de Poliana. Permite-se sofrer, ter até uma leve depressão, mas jamais perder o controle e superdimensionar os problemas. 

Antes que o desânimo pense em se aproximar, corre para a ginástica, para as aulas de inglês, de computação ou para a máquina de costura e se entrega à produção de roupas para as crianças carentes das creches com retalhos de amigos e vizinhos. É assim que espanta a energia negativa, os males e vitamina o corpo e a alma. O segredo? Ela também não esconde. "Bom astral, nada de vícios, música de qualidade e boa comida, claro" -- sentencia ao oferecer um pedaço de bolo de massa folhada com creme que acaba de ficar pronto. Impossível resistir. 



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