Era uma vez uma selva regional. Entenda-se por selva regional território unidíssimo apenas na consagração da imagem de suas iniciais mas repleto de intrigas, divisionismos e exclusivismos em cada um de seus compartimentos, que, de fato, rejeitam-se mutuamente. Uma selva pouco comum no mundo dos bichos-homens porque parece integral, quando de fato é fragmentadora.
Por isso, nem de longe pode ser relacionada ao habitat de animais de selvas de verdade, cujos costumes e leis não precisam estar escritos para ser sacramentados. Lá, impera sem sofismas a lei do mais forte. Aqui, na selva regional, os mais fortes não necessariamente são os mais respeitados e temidos, porque viceja atributo que os animais de verdade não dispõem: capacidade cognitiva que pode ser traduzida, quando integrada, à inteligência intelectual.
Mesmo com essa diferenciação entre bichos-bichos e bichos-homens é muito complicado defender a importância da massa cinzenta numa selva regional contaminada pela globalização cultural e ramificações deletérias. Principalmente pela epidemia histórica da selva nacional que já completou 500 anos e não se deu conta de que já passou da hora de aprender com os próprios erros. Os bichos-homens andam dispersos, divididos entre assuntos locais e os que chegam pelos meios de comunicação de diferentes formas e conteúdos da aldeia global.
Multiplicidade de bichos
Mas, apesar de tudo, detectam-se na selva regional bichos de todos os tipos, tamanhos, cores e vocações. Inclusive bichos avestruzes. Melhor dizendo: principalmente bichos avestruzes, que enfiam a cabeça no comodismo da intolerância participativa na expectativa de que, definidas as questões, possam ficar do lado dos vitoriosos. Não interessam as armas que os vitoriosos utilizaram para superar os adversários. Esses avestruzes, como se nota, não são idiotas. Parecem dotados de algum chip de sensibilidade oportunística que, incrustrado na plumagem, capta movimentos e sons dos protagonistas do jogo que lhes interessa. Por isso, são avestruzes de araque.
Quem não se conforma com esse modelo de manipulação social na selva regional são os tigres que, por mais cuidados que pretendam ter no jogo da sobrevivência, acabam sempre se expondo ao dar botes que imaginam certeiros. É certo que tigres já radiografaram espécimes diversos de avestruzes, para diferenciá-los de parentes, como os pavões, mas de vez em quando quebram a cara.
Afinal, pavões jamais se interessaram pelo chip detector de vácuos a serem ocupados. Pavões são pavões e, por isso mesmo, optam ostensivamente pela autoimagem. Quanto mais se julgarem admirados, quaisquer que sejam as razões, mais se sentirão recompensados. Aos pavões importa a mistificação da notoriedade, não o senso crítico da notabilidade. Vale mais o estar, vale menos o ser. Eles só são pavões porque têm apenas a plumagem para sustentá-los. E plumagem não se espalha pela área do cérebro.
Elefantísmo espalhado
A selva regional é fluvial em elefantísmo. Não, nada a ver com oposição a dietas de alimentação que moderam as dimensões do corpo ou resistência a academias de ginástica que moldam o esqueleto de acordo com ditames da moda. Os elefantes regionais são outros. Eles se especializaram em tornar tudo supostamente alterado. Diferentemente dos bichos-preguiça, também em profusão na arena regional, os elefantes sonegam o sentido etimológico de estático, de que estão parados no tempo e no espaço. Os elefantes são mais perniciosos. Transmitem a sensação de que estão provocando alguma mobilidade no que se propuseram a fazer. Em realidade, utilizam-se de ilusão de ótica. Como são corporativos, enquanto um mexe para cá, o outro puxa para lá e o que parece dinâmico não supera mesmo a zona da embromação.
Por isso, prefiro os bichos-preguiça. Pelo menos são mais autênticos. Não se perturbam em parecer absolutamente inertes, em sugerir que o andar da carruagem os incomoda, em afirmar que não estão nem aí com o antigo ditado de que o mundo gira e a Luzitana roda. Os bichos-preguiça são assim mesmo. Não têm lá muito respeito pelos elefantes a quem chamam de manipuladores da ótica e da ética. Da ótica de parecerem em movimento quando de fato estão inescapavelmente impávidos. Da ética porque corrompem o sentido da paralisia por prazer e sem constrangimento.
Se os elefantes prejudicam a selva regional porque promovem destemperança de relacionamento com os bichos-preguiça, defensores intransigentes da improdutividade transparente, imaginem então as hienas que têm por hábito ocupar ambientes mais disputados na política, principalmente. Vivem em torno de torres decisórias. Frequentam corredores do poder com rara habilidade. Blefam descaradamente quando não têm o que oferecer. Contrapartidas são suas especialidades. Quando não as tem, recorrem mesmo e para valer à moeda mais comum desses templos de decisões — as chantagens elegantemente disfarçadas de negócios ou escancaradamente impostas.
Hienas e Macacos
Imaginar que hienas só frequentam pântanos oficiais da política, sejam as torres maiores dos Executivos, sejam as torres menores dos Legislativos, é subestimar suas reservas idiossincráticas. Onde puderem enfiar patas manchadas de pecados enfiarão. Ao incursionarem por ambientes corporativos privados também são um terror. Trocam lucros por prejuízos sem contemplação. Nada que, na sequência, não possam minimizar com novas arremetidas em direção às torres nada gêmeas do mundo político.
As hienas têm paixão especial pelos macacos da selva regional. Os macacos adoram as hienas, também. Eles se merecem imensamente. O que seria das hienas se os macacos, sempre às voltas com a inventividade de lhes oferecer servilidade, não as presenteassem permanentemente com mesuras, delações, com um circo todo especial de oferendas, quando não de amplo e irrestrito entreguismo? Tudo em troca de cascas de banana de emprego garantido, status, qualquer status.
Os macacos adoram imitar seus chefes hienas. De vez em quando até se travestem de chefes, para livrar a cara dos titulares, mas como são desastrados, geralmente trocam os pés pelas mãos. Bem-feito para os mandantes, que usam e abusam do direito das macaquices só supostamente ingênuas. Sim, porque macacos e outros bichos da selva regional são uma caricatura dos macacos e de outros bichos das selvas reais.
Camelos seguram a peteca
A selva regional também tem camelos conformadíssimos. Eles trabalham intensamente. Seguram a peteca. Garantem o brilho de terceiros. Geralmente não reclamam de nada, por mais injustiçados que sejam. Principalmente se estiveram na zona de comando das hienas. Em contraposição aos camelos, pouco ambiciosos, estão os cavalos, sempre fortes, sempre rápidos, sempre astutos. Um espetáculo de competência intermediadora, logo abaixo dos poderosos de plantão. Há poucos cavalos de raça na selva regional, mas são especialmente leais aos chefes. Alguns servem a hienas, outros a raposas.
A diferença entre raposas e hienas é flagrante. As raposas não se deixam cair na tentação do lucro fácil e perigoso. Sabem escolher o melhor caminho para atingir a caça ao tesouro. Ainda mais nestes tempos de telefones grampeados, de sigilos bancários expostos. Raposas detestam mesmo que levemente ser comparadas às hienas. Aliás, se detestam. As raposas odeiam as hienas porque as hienas subverteram o conceito de esperteza, que consiste em trambicagens longe do alcance dos mais atentos. As hienas menosprezam as raposas porque não lhes resta outra saída senão o conformismo de continuarem hienas porque não reúnem atributos de quem tem os nervos no lugar, o ego mais comedido e os bolsos menos atrapalhadamente ávidos.
Em selva regional que se preze não podem faltar espantalhos. Eles se espalham por todos os cantos. Não se circunscrevem, portanto, a ambientes específicos. Por isso, há sempre um espantalho por perto. Espantalho não é outra coisa senão hiena colhida em contradição. Pode ser também ex-elefantes, ou ex-cavalos. Qualquer bicho pode virar espantalho na selva regional. Basta que seja colhido em flagrante delito e que se tenha dado publicidade ao transtorno. Aí a selva regozija. Faz-se de condoída, de solidária, de entristecida, mas no fundo, de cada 10, pelo menos nove bichos comemoram em petit comitê a transmutação inesperada. Não fosse assim, não seria selva.
Gataborralheirismo
O pior mesmo dessa selva regional é que seus habitantes se acham de segunda classe. Sofrem do Complexo de Gata Borralheira. Olham para a vizinha Capital, a Cinderela, e se sentem freudianamente tentados a sofrer. O sonho dos bichos-homens da selva regional é chegar ao território paulistano, ser reconhecidos pelos bichos de lá, como se os bichos de lá fossem diferentes dos de cá. São bichos, de fato, mais que parecidos. São iguais. Com um pouco mais de história, de tradição, de dísticos, mas, na essência, iguais.
Quem cometer a bobagem de chamar a atenção dos bichos regionais para essa realidade de gataborralheismo correrá o risco de perder espaços nos tradicionais encontros em que assemelhados do topo da pirâmide social, não necessariamente da pirâmide econômica, se encontram em eventos religiosamente programados, onde afiam tesouras e línguas para combates cifrados que virão em seguida em respectivos ambientes. Sim, correrá o risco, porque se há algo que os bichos da selva regional não suportam é ser lembrados de que basta um simples descuido para caírem na tentação de segunda classe. Seus olhos brilham quando falam de jantar na Capital, de assistir a uma ópera na Capital, de ver teatro na Capital, de frequentar ambientes colunáveis da Capital, de tudo que cheire a Capital. Um show de cantor famoso na Capital sempre vale mais que um show do mesmo cantor famoso na selva regional. O sentimento de rejeição regional é latente, mas hipocritamente negado e, contraditoriamente, num círculo vicioso, estupidamente lubrificado.
Um dia quem sabe a selva regional terá alguns leões para comandar mudanças. Sem exagero, quem entender que apenas um leão, por mais rei que seja, por mais cirúrgico que se apresente, por mais decidido que se coloque, será capaz de mudar o eixo da história, quem pensar assim perderá tempo e paciência. A selva regional de bichos de distintas genealogias que se entrecruzam, precisa de pelo menos uma dúzia de leões, espalhados estrategicamente por atividades centrais de coordenação do futuro. Sem manipulações, sem falsificações baratas.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!