Sociedade

Individualidade a
serviço da igualdade

ANDRE MARCEL DE LIMA - 07/04/2017

Dois dos mais nobres conceitos articulados pela humanidade tiveram seus sentidos originais um tanto desfigurados e mal compreendidos no último quarto de milênio: igualdade e liberdade. Em nome da igualdade, tentou-se impor o nivelamento geral e irrestrito de indivíduos intrinsecamente diferentes em suas habilidades, aptidões e talentos. Sob o rótulo da liberdade, procura-se justificar mazelas inconcebíveis, como se o livre arbítrio prescindisse de sensibilidade em relação a circunstâncias vividas por terceiros. 

Em meio a esse emaranhado conceitual recrudescido em tempos críticos, A Teoria da Justiça, do cientista político norte-americano John Rawls (1921-2002), emerge como facho de luz em meio à escuridão. A obra escrita em 1971 confere a Rawls o status de mais influente pensador da filosofia política do século XXI.

Na obra Rawls endereça – nada mais, nada menos -- que as seguintes questões: como atingir o nível mais elevado de justiça? Quais princípios devem determinar o acesso à riqueza, à renda e ao poder numa sociedade justa?

É difícil conceber com isenção o que é justo ou não quando se observa a questão a partir de um ponto de vista particular, indissociavelmente atrelado ao indivíduo. Por isso, Rawls propõe um exercício de reflexão que se tornou formidável experimento sociopolítico. O autor convida cada indivíduo a se imaginar em uma posição hipotética de consciência antes do próprio nascimento. 

Véu da ignorância

Nessa posição original e igualitária, sem que cada um soubesse se nasceria em uma família rica ou pobre, saudável ou doente, parte de algum tipo de minoria numérica ou não, todos estariam aptos a determinar com clareza e exatidão o tipo de sociedade que gostariam de encontrar.

Por trás do “véu da ignorância” (veil of ignorance), como Rawls brilhantemente conceituou, todos concordariam em viver em uma sociedade em que sobressaíssem o respeito e dignidade, sem opressão e com a garantia de direitos individuais básicos como liberdade de expressão, religiosa e de reunião. Afinal, ninguém gostaria de correr o risco de vir a fazer parte de uma minoria oprimida, desprezada ou desfavorecida, vítima de algum tipo de tirania. Todos optariam, antes, por garantir o que é justo e razoável indistintamente – to be on the safe side – para estar do lado seguro, como se diz em inglês. 

O conceito de igualdade, tão mal compreendido e equivocadamente aplicado ao longo do século XX, adquire sentido nobre em  "A Teoria da Justiça". Longe de significar ponto de chegada, a igualdade exposta por Rawls resgata o sentido original da precária condição humana e estimula a reflexão sobre os tipos de mecanismos e políticas públicas que a sociedade ideal deve conter a fim de proporcionar a todos condição de segurança que independa do chamado acidente do nascimento.

Loteria do nascimento

Acidente do nascimento é a variável incontrolável que determina enormemente o futuro material e as condições de vida de um cidadão. Na loteria do nascimento, vir ao mundo em países como Noruega, Austrália, Suíça, Suécia, Alemanha e Dinamarca significa tirar a sorte grande. Em contrapartida, nascer em países como Serra leoa, Chade, República Sul Africana, Congo e Niger equivaleria ao oposto, tendo como base as extremidades do ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organização das Nações Unidas (ONU). 

Na posição original sob o véu da ignorância, todos concordariam sobre a importância de garantir uma sociedade livre de corrupção; sobre a necessidade de garantir a universalização da educação e da saúde de qualidade; sobre a necessidade de planejamento dos grandes centros urbanos -- à distância de interesses particulares que acabam por comprometer o equilibro das grandes cidades; sobre a imperiosidade de transformar a política em um meio para atingir o bem comum, e não em um fim em si mesmo; sobre a indispensabilidade de consolidação de um sistema de justiça blindado aos interesses dos mais poderosos -- instaurando de forma prática e generalizada o axioma segundo o qual todos são iguais perante a lei; entre outras premissas de contrato social. 

Por contraste, o fato de vivermos num mundo tão bagunçado mostra o quanto estamos imersos num verdadeiro salve-se quem puder, em que poderosos usam recursos financeiros para comprar ou manter privilégios; em que legisladores e executivos públicos utilizam cargos para obtenção de vantagens pessoais; em que grupos corporativistas se entrincheiram a fim de manter privilégios; entre outros contrassensos sob a experiência do véu da ignorância.  

Capitalismo amadurecido

Ainda sob o véu da ignorância, que tipo de sistema econômico seria escolhido para determinar a vida coletiva? Certamente, não seria nada parecido com a aristocracia, no qual o “acidente do nascimento” define o futuro de forma categórica segundo a lógica binária nobre/plebeu. 

Escolheríamos por certo um sistema que permitisse a cada um exercitar e colher os frutos de habilidades aptidões e capacidades individuais. 

Mas é preciso lembrar que, como não saberíamos se nasceríamos ricos ou pobres, saudáveis ou doentes, em uma família ajustada ou não, e até se dotados de talentos valorizados pela sociedade em questão, tenderíamos a optar por um sistema que, na pior das hipóteses, proporcionasse o mínimo possível em termos materiais. É neste ponto que sobressai o chamado princípio da diferença de Hawls. 

O princípio da diferença representa um conceito mais qualificado de igualdade, segundo o qual desigualdades sociais resultantes de disparidades do rendimento do trabalho seriam permitidas e até estimuladas, desde que o incremento dos salários dos mais ricos estivesse atrelado à melhoria das condições de vida dos menos afortunados.

Rendimentos compartilhados

Pelo princípio da diferença de Hawls, não existe nada de mal em astros dos esportes e ou artes, ou mesmo mandachuvas de megacorporações, ganharem milhões enquanto professores, policiais e outros profissionais do gênero embolsam salários muitíssimo mais modestos em relação à notória importância do serviço que prestam. Desde que uma parte do rendimento destes pontos fora da curva em termos socioeconômicos seja revertida em benefício aos menos aquinhoados. Por meio de sistemas de taxação destes ganhos extraordinários.

O conceito é interessante e pode representar solução para muitos casos desde que se respeite a lógica de que a taxação de rendimentos de profissionais supervalorizados não pode ser elevada a ponto de desestimulá-los a exercitar seus ofícios. Pois caso isso ocorra, os mais pobres -- beneficiados pelos impostos por eles pagos – comporiam o público mais prejudicado. 

Seria necessário encontrar um ponto de equilíbrio nesta equação da mesma maneira como, na economia de mercado, o preço cobrado por um produto representa o ponto intermediário entre quanto o empresário gostaria de faturar e quanto os consumidores estão efetivamente dispostos a pagar.

Mais justiça social

Respeitada essa condição de matiz mercadológica, o sistema apregoado por Hawls é uma espécie de capitalismo amadurecido, no qual a liberdade para criar, produzir, negociar e consumir no ambiente de livre mercado estaria subordinado a uma engrenagem socialmente mais justa pela qual o favorecimento do andar de baixo dependeria de condições apropriadas de estímulo aos ocupantes da cobertura.

É o que todos escolheríamos se pudéssemos ter a consciência dos riscos de um mundo desigual e cruel antes de nascer, assegura Hawls. De um lado, igualdade de oportunidades, assegurada por educação de qualidade para todos, independentemente de classe social, de modo a trazer os futuros competidores para o mesmo ponto de partida na corrida pelo mercado de trabalho. 

De outro lado, a preservação de ambiente aberto à competição, a fim de estimular a melhor contribuição profissional dos indivíduos, não apenas para que cada um tenha direito de usufruir da própria fortuna, mas para que haja condição de distribuir o excedente de forma mais equitativa na base. É o tipo de conceito com o qual, até ou principalmente de olhos fechados, é difícil discordar.  



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