Existem dois pilares fundamentais para sustentação de qualquer sociedade reconhecidamente civilizada: Democracia Participativa e Estado Democrático de Direito. Não que sejam construções institucionais prontas, acabadas e perfeitas. Pelo contrário. Como reflexo do gênero humano, falho por natureza, tais mecanismos reproduzem incongruências surpreendentes quando transpostos para a prática da vida real. Entretanto, é inegável que representam divisores de águas na história humana e, como tais, merecem atenção especial na forma de ajustes e aprimoramentos.
Democracia Participativa é o sistema marcado pela definição coletiva de governantes e autoridades dos poderes executivo e legislativo, no qual cada cidadão expressa valor cívico equivalente a um voto, independentemente de poderio econômico, histórico social, sexo, etnia ou qualquer variável do gênero.
Apesar de não faltarem críticas à Democracia Participativa com base na constatação de que os resultados das urnas nem sempre prestam reconhecimento aos candidatos mais conscientes e preparados -- pelo fato de a lógica da maioria frequentemente premiar proponentes de viés populista, sobretudo em localidades de nível educacional mais rarefeito – é forçoso reconhecer que se trata do pior sistema de seleção de representantes políticos desde que se excetuem todos os outros já experimentados desde os primórdios da humanidade.
Erro coletivo
A implicação do raciocínio é simples: melhor errar exercendo poder de escolha do que viver num ambiente em que governantes são empurrados goela abaixo por uma aristocracia que se autoproclama superior ao restante dos cidadãos, como acontece na monarquia e nos regimes autoritários. Até porque nos países em que impera a democracia participativa o povo tem direito de se manifestar e, em tese, tende a aprender ao longo do tempo com o exercício do voto.
É claro que o abuso do poder econômico por parte de grupos articulados com corporações fadadas a assaltar os cofres públicos como forma de capitalizar investimentos realizados durante campanhas eleitorais torna a democracia um faz de conta potencialmente comparável à pior das ditaturas.
Mas apesar de tudo, não há quem em sã consciência seja capaz de negar que se trata do mecanismo mais indicado, mesmo que a escolha se dê por exclusão, isto é, por eliminação das alternativas autoritárias refutadas pela história.
Convivência regulada
O Estado Democrático de Direito é marcado pela existência de instituições construídas com a prerrogativa de regular a convivência civilizada entre os integrantes da sociedade, por meio das leis e do poder judiciário. Como a Democracia Participativa, o Estado Democrático de Direito é de uma arquitetura rica e complexa que não está imune à presença de desafios a serem superados. Mas como forma de aquilatar a importância categórica, convém imaginar o mundo sem sua existência.
E este mundo sem o Estado Democrático de Direito equivale à maior parte da linha do tempo. Sem leis válidas para todos e sem um poder judiciário constituído e imbuído de poder para aplicá-las, batalhas trinais e guerras campais representavam a forma universalmente consagrada para resolver pendengas diversas entre povos. Posse de terras produtivas e questões relacionadas à herança, por exemplo, eram determinadas no fio da espada. O exercito vencedor tinha implícito o direito de saquear e repartir os despojos, além de submeter os sobreviventes à escravidão.
Prevaleceu por milênios, portanto, o que se convencionou chamar de barbárie, antítese do conceito de civilização. Um vale tudo que se desenrolava de forma sucessiva geração pós geração no vácuo de qualquer tipo de contrato social ou de instituição reconhecidamente capacitada para arbitrar direitos, deveres e responsabilidades.
Civilização corrompe
Contra estes fatos, o filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) notabilizou-se pela seguinte ideia: o homem é essencialmente bom, mas é a civilização que o corrompe. É possível dar um enorme desconto à afirmação de Rousseau, concedendo que o avanço tecnológico – parâmetro de civilização -- torna a negatividade inerente ao ser humano mais letal. Afinal, se uma espada mata muita gente, uma metralhadora mata muito mais. Daí afirmar que a civilização altera a natureza humana tal qual um interruptor de luz não procede. A civilização apenas exacerba características existentes.
É neste contexto do bicho-homem necessitado de domesticação que surgiu o Estado Democrático de Direito e todo seu arcabouço de leis e autoridades jurisdicionais. A aparição deste divisor de águas foi movida por uma constatação tácita de caráter universal: a necessidade de constituir agentes independentes capazes de proteger os homens deles mesmos, de acordo com leis formuladas a partir da contribuição de todos, mas desde que à distância de seus interesses particulares imediatos, nos moldes de contrato social.
Feita a contextualização e conferida importância, cabe elencar alguns desafios. Obviamente o poder judiciário é composto por humanos, que como tais são passíveis de falhas na medida em que a sobrecarga de trabalho torna a avaliação de casos complexos uma corrida contra o relógio.
Barbárie ao quadrado
Outro obstáculo a ser superado no âmbito do Estado Democrático de Direito é a crença disseminada entre a população em geral de que a Justiça tende a ser condescendente com ricos e implacável com pobres. Essa crença, fundamentada ou não, obscurece o axioma de ouro segundo o qual todos são iguais perante a lei.
Fato é que, independentemente da raiz, uma injustiça cometida no âmbito do Estado Democrático de Direito coloca o protagonista da ação em uma condição de barbárie elevada ao quadrado. Em sã consciência e com um bocado de contextualização histórica, é possível até compreender a violência perpetrada por selvagens nos tempos da ausência de leis e de autoridades independentes. Mas não depois de todo esforço civilizatório empreendido ao longo de milênios.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!