Sociedade

Jornalista comemora 100 dias
de assassinato não consumado

DANIEL LIMA - 11/05/2021

Havia hoje à disposição na coletânea de ideias à manchetíssima (o título aí em cima) um imenso manancial de enunciados na primeira pessoa do singular, porque assino o texto de uma desafiadora experiência pessoal. Optei pela neutralidade como forma provocativa à despersonalização do que se segue. Mas não dá para continuar essa farsa. Talvez fosse bem melhor algo como “Veja como estou depois de 100 dias de assassinato não consumado”.  

Posto isto, vamos ao que interessa. Por conta de intercorrências físicas inconciliáveis com a impetuosidade sensorial e cognitiva, decidi reduzir substancialmente o que chamaria de balanço de 100 dias de um milagre.  

Sou resultado sim de um milagre da literatura médica e policial. Um tiro no rosto de Taurus 38 a 50 centímetros de distância é cova certa, dizem os especialistas da ciência. Pois estou aqui vivíssimo, embora com condicionantes.  

Os danos físicos e emocionais seguem em intensidades, proporções, dores e limitações suportáveis. Afinal, 100 dias não são um piscar de olhos na cronologia de risco da vida. São um período a recomposições e reacertos. Ainda mais que a mente foi preservada. Brinco com a própria desgraça: como tenho o projétil metálico incrustrado na região da clavícula e do pescoço, pareço blindado. Um amigo é que faz tamanha metáfora como incentivo, sei disso.  Qualquer mentirinha inventiva para quem estava como eu estava é um bálsamo.  

Bullying de amigo  

Queria escrever muito mais do que escrevo sobre os 100 dias, mas necessitaria de dose complementar de medicamentos que atenuam as dores na região do trapézio, formada por tórax, ombros, braços e pescoço. Aí está o centro de gravidade do corpo. Uma batalha diária para suportar a guerra.  

Ganhei de um amigo sarcástico o apelido de monobloco. Minhas limitações físicas para girar o pescoço me tornam um quase robô da cintura para cima. Mal sabe ele, e não lhe dou esse combustível de bullying, que é uma tormenta atravessar as ruas quando saio com minhas cachorras. Dirigir é impossível. Exceto que desafie as leis do trânsito e da vida. Mas já me banho sem precisar de uma cadeira.  

Anotei 10 eixos estruturantes que saltaram após o ataque homicida. Pretendia escrever uma síntese que não seria tão síntese assim. Decidi mudar de ideia porque o texto seria longo demais. Quem sabe num futuro possa retomar o assunto e preparar algo muito mais substancioso que o imaginado?  

Afinal, trata-se de espécie de porta-bandeira de resistência e de sobrevivência a quem passar por algo semelhante. Um tiro na cara não é para qualquer um. Muito menos safar-se do tiro na cara. Muitos menos ainda não sofrer nenhum tipo de sequela neurológica e física.  

O designer internacional Gianni Versace passou por algo semelhante por motivos outros que não estavam num pet shop, mas nas alcovas, e se deu mal. O tiro o acertou na face esquerda. O tiro que me atingiu avançou lado direito da boca adentro. Um pouquinho para cima e, repetindo Versace, babau. Nem as mãos pude utilizar para me defender. Segurava minhas cachorras pelas guias. O ataque criminoso foi rápido, insidioso. 

Vou repassar a lista dos 10 pontos cruciais dos desdobramentos do ataque. Anotei-os num caderno em tarde de meditação. Transponho-os em forma de utilidade pública. Amanhã, quem sabe, o leitor, também por razões outras, necessite de orientação, ou melhor dizendo, de um preparo para o enfrentamento que se dará. Não acredito que estará vivo se o motivo for exatamente igual ao meu. O Todo Poderoso deve ter esgotado o estoque de milagres após banho e tosa de cães.  

Do jeito que a coisa anda, com todo mundo se virando nos 30, quem sabe me torne consultor de sobrevivência emocional pós-covardia armada. Poucos têm o diploma de autossobrevivência com elevado grau de periculosidade. Nem a Rainha Elizabeth, de tantas histórias em mais de 100 anos de vida. Veja os blocos que poderiam me servir e servir a terceiros como manual a ser aplicado:  

 Melancolia ao entardecer. 

 Distúrbios do sono. 

 Impotência física. 

 Enclausuramento pandêmico. 

 Letargia sensorial e cognitiva.

 Gestão das dores. 

 Resiliência espiritual. 

 Fluxo de solidariedade. 

 Lucidez hospitalar. 

 Banalização da violência.  

É claro que esses 10 quesitos, da forma com que foram expostos, não significarão muita coisa ao aprendizado geral. É preciso detalhar pelo menos alguns pontos para que o sentido deste texto tenha mesmo utilidade pública. 

Colocados da forma que se seguiu, os 10 mandamentos de sobrevivência de um assassinado em potencial terão pouca valia prática. Então, rapidamente, trato individualmente desses vetores, que, entretanto, devem ser sempre observados como vasos comunicantes à recuperação. Isolá-los é como apanhar uma caixa de fósforo e descartar palito por palito. Entrelaçá-los é como utilizar a mesma caixa de fósforo e botar fogo. O efeito é quase explosivo.  

 Melancolia ao entardecer 

Sentia espécie de depressão com hora marcada pós-hospitalização, já em casa, quando o sol ia embora e a noite chegava. Alguma coisa fazia meu corpo estremecer. Parecia ingressar num túnel escuro e sinuoso. Essa sensação durou por pelo menos três semanas. Foi embora sem que me desse conta. Quando me dei conta estava menos suscetível a maus pensamentos. Pensando bem, esses efeitos se deram com vagar, no dia a dia de dissipação do mal-estar geral.  

 Distúrbios do sono 

Duraram muitas noites os pesadelos do tiro no rosto desferido por aquele jovem de pele clara que descia a escada com o Taurus 38 à mão direita. Tudo se repetia noite afora. Inclusive uma pergunta que fiz ao assassino ante a aproximação resoluta: “você vai me matar?”. E ele atirou para me matar. Em seguida, as imagens se completavam e estariam disponíveis nos melhores cinemas do País se o assassino não surrupiasse a gravação e a levasse na fuga sem atropelos, como se matar fosse sua especialidade. Sumir com a gravação foi uma besteira na tentativa de negar o crime e criar um enredo absurdamente mentiroso. A Polícia Técnica não demorou a chegar e constatou a confissão tácita de quem pretendera e, mais que isso, efetivou um enredo miseravelmente fantasioso para se safar de condenação judicial.  

 Impotência física 

Foram muitas semanas de impotência de um corpo entregue durante 10 dias a experimentos hospitalares. Entreguei-me às enfermeiras e aos médicos sem qualquer reação que não fosse ampla concessão a que me retirassem tudo que supostamente de privado me pertencia. Não era dono do meu corpo. Meu corpo tinha vários donas e donas, tudo de acordo com os plantonistas. O paciente era sempre o mesmo, mas as manipulações, mesmo as mais íntimas, viraram rotina. 

 Enclausuramento pandêmico 

Como se não bastasse o caminhão de complicações pós-hospitalar, sobrevivia em mim a possibilidade de voltar a ser internado. Aliás, uma semana depois dos 10 dias que passei no hospital voltei mesmo ao pronto-socorro do Hospital São Bernardo. Sofrera, em casa, após cometer o excesso de alimentar minhas cachorras, uma queda de pressão e uma turbulência assustadora. A cabeça girou e tudo escureceu. Levaram-me ao hospital. Imaginem a preocupação com a demanda pelo atendimento à Covid, que resolvera atacar para valer já a partir de meados de fevereiro. Sempre há o risco de queda de qualidade do atendimento. Na sequência, exames clínicos e laboratoriais a fazer, imperava o ambiente pandêmico como imperativo ao risco. Não há como sustentar um emocional ajustado quando se está entre a cruz de um cronograma de exames e a espada do vírus chinês insidioso na praça.  

 Letargia sensorial 

Duraram cinco semanas penei com a certeza e a tristeza de me ver nocauteado no que parecia impossível ocorrer: perdi o interesse por tudo. De ler jornais e de ver televisão. De ver uma partida de futebol. De ler um livro. De acompanhar diálogos de familiares. Estava em estado de completa inação. A vida parecia não ter razão de ser, embora no fundo da alma algo me empurrasse à sobrevivência. Quando comecei a brincar com minhas cachorras, a ler os jornais, a acompanhar a televisão, e quando voltei à bicicleta ergométrica para pedalar mesmo com o tronco em frangalhos, quando isso aconteceu, acordei da paralisia provocada por dores e medicamentos.  

 Gestão de dores 

Aprendi a importância de saber gerir as dores em várias partes do corpo. Defini estratégia que levava em conta o fator prioridade. Quanto mais fechava o foco para reagir fisicamente, mais caminhava ao desdobramento seguinte, de mudança de prioridade. Por que me preocupar com a boca arrombada pelo tiro se a boca arrombada pelo tiro não me incomodava tanto como os desarranjos orgânicos causados pelo inchaço da prostata? Eram tantas as cidadelas corporais atingidas que não havia outra coisa a fazer senão reforçar contenção nas mais vulneráveis.  

 Resiliência espiritual  

Graças ao amigo e doutor Valter Hamache superei onda de desânimo com um arsenal de espiritualidade de origem oriental. Desde minha internação na UTI e no quarto de hospital o doutor Valter dispensou sessões providenciais da luz divina. Fez uma tremenda diferença. Nas últimas semanas, por conta da pandemia, me afastei das sessões de um centro espiritual em São Bernardo. Vou retomar a caminhada fortalecedora.  

 Fluxo de solidariedade 

Foi e continua sendo muito importante tomar conhecimento do exército de leitores, amigos e familiares solidários. Mensagens de diferentes tons de apoio, mas todas com elevada carga de carinho, ajudaram imensamente nos dias subsequentes à alta hospitalar. Recuperei o celular as mensagens. Até hoje o fluxo segue adiante. Agradeço imensamente. Até mesmo um e outro fanático pela desgraça alheia (pouquíssimos, felizmente) foram capturados. Meus familiares omitiram essas mensagens enquanto não recuperasse a vida plenamente.  A um deles mandei um texto de agradecimento por tudo o que fez por mim, como se não soubesse o que ele dissera num grupo de redes sociais. Outro, por não valer um tostão furado, nem me prestei a contemplá-lo com ironia.  

 Lucidez hospitalar 

Talvez o que mais me ajudou a enfrentar a borrasca daquele primeiro de fevereiro e os muitos dias seguintes tenha sido o fato de que não perdi em um instante sequer a capacidade cognitiva no sentido mais limitado do termo. O tiro da Taurus não atingiu nada que comprometesse o discernimento. Ou seja: não atrapalhou mais um atrapalhado por natureza. Os 10 dias hospitalares foram um tormento. Mas me mantiveram atento à própria vida. Assisti a tudo. Vivi momentos tensos e emocionalmente dramáticos. Acompanhar com limitações profundas o que se passava na UTI foi um aprendizado.  

 Banalização da violência 

Acho que produzi uma experiência que valeria a pena ser utilizada em determinadas circunstâncias pelos psicanalistas da vida. Sai traumatizado do assassinato não consumado e parecia que não me livraria de forma alguma do fantasma do pet shop. Dias e noites aquela imagem do tiro no rosto não arredava pé. Até que decidi assistir a uma série na Netflix. Violência pura. De tiro no resto e o escambau. Com história de primeira, fotografia de primeira, suspense de primeira, drama de primeira. Banalizei a violência para me libertar da violência que insistia em não abandonar minha mente. Acho que evolui bastante. Quase não sou mais perseguido pelo assassino. É verdade que outro dia, no dentista, sofri um revés emocional ao ver se instalar um aparelho na região atingida pelo tiro. Foi um momento de fraqueza. Quando achar que estou fraquejando, vou procurar outra série de barbaridades desumanas. 

Para completar, e não esticar a conversa que avançou demais, faço uma lista do que ainda me açoita na luta pela recuperação.  

Prostata segue inchada, mas já foi pior. Nos maus momentos perdi completamente o controle do banheiro. Eram 10 deslocamentos a cada noite. E muitos também durante o dia. Perder o controle do banheiro é perder a qualidade de vida e dificultar o ritmo de recuperação.  

Laringe, faringe e traqueia seguem processo lento e gradual de restabelecimento de tecidos impactados pelo tiro e por dois exames doloridíssimos de endoscopia. Minha deglutição alimentar não é das melhores. Virei fanático por caldos e sopas.  

A língua segue com fibroses que reduzem a sensibilidade do paladar. Tudo tem sabor alcalino. São fluídos tóxicos do projétil que ainda resiste no pescoço. Para quem tem contrariedades com alergias, nada é pior que o chumbo grosso diluir-se no corpo. 

A carótida direita, na área inferior ao maxilar atingido, segue em processo de refluxo nas dimensões antes pronunciadas. Já não tenho o lado do rosto semelhante ao de um tocador de trompete.  

O trapézio, formado por ombros, braços, tórax e pescoço, é meu calvário atual, a prioridade das prioridades. Sem medicamentos não consigo escrever estas linhas. Tampouco passear com minhas cachorras. As avarias no trapézio retiram meu equilíbrio físico e emocional. Torno-me vulnerável. Sempre estou prestes a cair, o que exige cuidados extremos de concentração à mobilidade sadia. Se me soltarem num prédio em construção tendo 50 centímetros de passarela, certamente vou me esborrachar lá embaixo.  

A arcada dentária atingida, avariada e desfalcada, está em fase de diagnóstico que abrirá as portas a implantes restauradores.  

Boa notícia é que recuperei quase todos os quilos perdidos nos primeiros 30 dias e essa reconquista chegou ao limite desejável, porque estou abaixo do peso anterior.  Há exatos 100 dias retirei do cardápio qualquer coisa que lembre refrigerante. Estou praticamente sem a tênue barriguinha de antes. Quando sufocar as dores do trapézio, vou me embrenhar em sessões de levantamento de pesos. Acho que vou ser mais atleta que antes.



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