Pedro Bíscaro não é pedreiro, não está esperando o trem nem aumento para o mês que vem, mas é metódico, paciente, discreto e calmo como um peão de obra que assenta tijolo com tijolo num desenho lógico. Esse cinquentão de cabelos grisalhos que trocou os ambientes assépticos de hospitais mais renomados pela coordenação do serviço de Neurologia do complicadíssimo e carentíssimo Centro Hospitalar de Santo André é um médico à moda antiga, um homem à moda antiga, um pai à moda antiga, um professor à moda antiga.
Que não se confunda esse perfil aparentemente conservador e discreto com biografias recheadas de modernismos e luminosidades, mas nem sempre socialmente responsáveis. Pedro Bíscaro é à moda antiga no sentido de que mantém valores que nem todos os médicos aceitam mais, nem todos os chefes de famílias preservam mais, nem todos os professores expõem mais, nem todos os homens praticam mais.
Pedro Bíscaro virou médico por influência familiar do pai, um clínico geral que Tietê, no Interior do Estado, reverenciou com paixão durante muitos anos de atendimento a pobres e ricos e que provocou comoção quando há poucos anos um câncer no estômago o levou para outra vida. Pedro Bíscaro escolheu a Neurologia porque gosta de desafios, embora seu jeito de quem não se preocupa com o tempo transmita a falsa impressão de que é um conformista por natureza. Mas é exatamente a característica de manter a tranquilidade quando todos à volta estão em desespero que faz de Pedro Bíscaro um profissional diferente. Seu sangue frio conta decisivamente nos momentos mais difíceis.
A calmaria em cada gesto e palavra do neurologista é uma segurança adicional ao profissional que há 32 anos se debruça sobre uma especialidade que exige precisão de cronômetro, humildade de monge, frieza siberiana. Afinal, mexer com a cabeça de pacientes é tarefa complicada que mentes apressadas e mãos pouco hábeis poderiam botar a perder. Cada gesto de Pedro Bíscaro lembra a acuidade de um ourives.
Ao contrário de profissionais que lidam com a cabeça para enfeitar logotipos familiares que fazem efervescer a alta sociedade e transformam requintados salões de beleza em passarelas disputadíssimas, Pedro Bíscaro mantém distância quilométrica do glamour. A cabeça que o seduz está cientificamente ligada ao corpo humano, obra divina que tem reposição praticamente para tudo depois que inventaram os transplantes. Menos exatamente para a cabeça. Pelo menos, acredita, pelos próximos 50 anos.
Cabeças não faltam para Pedro Bíscaro cuidar. Em seu consultório no Jardim do Mar, em São Bernardo, atende entre oito e 10 pacientes por dia, não mais que isso. Sua clínica é despojada e simples como o dono. Nem de longe se assemelha ao luxo de templos de beleza que despontam em cada bairro a socorrer cabeças vaidosas ou necessitadas pela imposição de etiquetas destes tempos em que tudo é marketing.
De cada 10 pacientes que Pedro Bíscaro recebe, sete são mulheres balzaquianas que se multiplicam entre o trabalho em escritórios, lojas e fábricas e os filhos geralmente adolescentes: "As mulheres sentem mais os efeitos da modernidade porque têm dupla jornada, como mães e profissionais, enquanto os homens, pela própria natureza dos homens, preocupam-se apenas com o trabalho" -- diz o médico com a experiência prática de quem preserva a sábia importância de conversar, conversar e conversar muito com todos os pacientes que entram pela porta queixando-se de dores e que na maioria dos casos sofrem mesmo é de estresse.
Pedro Bíscaro é um ácido crítico do que chama de involução do mundo, materializada na visível perda de qualidade de vida nas grandes metrópoles. Por isso, garante, foge do ritmo ensandecido dos que se lançam em mil empreitadas. A opção pela Neurologia resistiu ao respeito e generosidade do cardiologista Eurípedes de Jesus Zerbini. "Estava, na época, na Beneficência Portuguesa em São Paulo. Ele era um exemplo de humildade" -- define o prestigiadíssimo médico que implantou o primeiro coração no peito de um brasileiro, no final dos anos 60, mas que não conseguiu, nem assim, tirar Pedro Bíscaro da rota das dores de cabeças alheias.
As especificidades da cabeça -- e suas complicações mesmo quando o que se exige é retirar um tumor benigno -- fizeram Pedro Bíscaro cauteloso e meticuloso. O histórico do paciente é sua primeira preocupação. Depois sim, trata de providenciar exames médicos cada vez mais sofisticados e cuja tecnologia de imagens reduz a praticamente nada os riscos de errar no diagnóstico. "A tecnologia evoluiu demais, os homens não" -- lamenta o neurologista, numa incursão sociológica simples mas contundente de quem não perdeu os valores mais simples.
Não é porque conversa à exaustão com os pacientes e porque confia plenamente na tecnologia enriquecida de bites e chips que Pedro Bíscaro dispensa aconselhamentos. Conforme o diagnóstico, procura ouvir companheiros médicos. "Aprendi com meu velho pai que ouvir outros médicos é sempre recomendável, entre outras razões, para dividir responsabilidades e somar conhecimentos" -- explica.
Se o expediente na clínica no Jardim do Mar não é cansativo, as outras duas ocupações profissionais de Pedro Bíscaro são igualmente confortantes -- garante. O dia-a-dia no Centro Hospitalar de Santo André é exercício de cidadania. A muito custo Pedro Bíscaro, funcionário público federal, conta que ele e os companheiros do setor de neurologia fazem vaquinha mensal para comprar materiais com recursos próprios e garantir o atendimento a pacientes que recorrem ao endereço municipal como última tentativa de cura.
Pedro Bíscaro coordena a neurologia do Centro Hospitalar de Santo André por vocação social que, garante, preserva como um dos mandamentos sagrados da Medicina. Os vencimentos salariais estão muito aquém dos proventos em sua clínica e também como professor da Fundação Santo André. Sua incursão pelo mundo acadêmico, confessa, é uma forma de manter-se atualizado, atento às mudanças. "Os alunos nos testam sempre nos conhecimentos" -- diz, para explicar que não se lança em vão diariamente à leitura científica.
Embora ressalte a importância da academia, que provoca permanentes trocas de conhecimento entre alunos e professor, Pedro Bíscaro afirma que é a convivência diária com os desvalidos no Centro Hospitalar que o coloca mais próximo dos prazeres da Medicina, atividade que considera especial porque está intimamente ligada à vida. Médico de cabeça, então, de cabeças que não podem ser substituídas como o fígado, o baço, os rins, o coração, a medula óssea, esse é ainda mais especial.
O deslumbramento comum de quem consegue transformar a vida profissional numa sucessão de bons resultados definitivamente não é o calcanhar-de-Aquiles de Pedro Bíscaro. Ele mantém a simplicidade de homem interiorano. A serenidade que transmite dá a impressão de que nem mesmo um 10º andar de edifício em chamas o colocaria em desespero.
O conflito das mulheres balzaquianas com os filhos crianças ou adolescentes e que desabam em seu consultório na forma de dores de enxaquecas às vezes é didaticamente superado pelo próprio médico. Acalmar com paciência de Jó uma criança hiperativa que entrou no consultório com uma mãe desesperada é simples para Pedro Bíscaro. Não bastasse o equilíbrio emocional de quem parece ter sido gestado numa geladeira, o médico tem um neto de uma das duas filhas e sabe como lidar com a dificuldade de mães que vivem na encruzilhada de casa para o trabalho e do trabalho para casa e que não têm mais jogo de cintura para acalmar crianças que pintam sem brocha e bordam sem crochê.
Professor universitário atento às tendências de saber e de consumo dos jovens estudantes, um quase voluntário de verdadeiros monumentos da exclusão social que desabam a cada instante num centro hospitalar público e último refúgio de quem tem nas dores de cabeça um inferno cotidiano a ser superado, Pedro Bíscaro faz das atividades uma corrente de desafios à infinita capacidade de consolidar sua insuperável tranquilidade.
Se no dia-a-dia intenso para muitos -- mas absolutamente sob controle para ele -- Pedro Bíscaro já é um atestado de que nem tudo é frenesi quando se tem tantas atividades, o que dizer então quando ele está recolhido no aconchego da família? O almoço com a mulher e a filha veterinária é sagrado, sempre às 13h. O jantar não segue esse ritual só comum nas famílias mais antigas, mas sempre que possível é a três mesmo. Sem contar que anda permanentemente pelo bairro onde mora para comprar jornal e revista no jornaleiro, o pão na padaria de esquina, consertar o carro na mecânica ao lado. "Gosto de prestigiar os pequenos do bairro" -- afirma.
A filha dentista e seu neto xodó estão em Tietê. Pedro Bíscaro costuma viajar uma vez por mês para o sítio naquela cidade do Interior. "Vou curtir a natureza, ficar em paz com a vida" -- afirma, como se o dia-a-dia no Grande ABC, e particularmente em São Bernardo, onde mora, fosse diferente. Curte a viagem do começo ao fim. Ouve Elis Regina e Milton Nascimento, preferencialmente. No sítio, fica literalmente de papo para o ar.
Absolutamente imune a assaltos, uma rotina no Grande ABC, não é difícil explicar por que os malandros não o atacaram até hoje. Primeiro porque Pedro Bíscaro não é rico. Segundo, e principalmente, porque nem de longe mostra ser um classe média-média quando dirige um velho Monza Classic, direção hidráulica, ar-refrigerado, fabricado em 1991. Um contraste no estacionamento da Fundação do ABC quando confrontado com os veículos importados dos alunos.
Quem ainda duvida de que esse neurologista seja capaz de conciliar o tempo que distribui sem pressa alguma, uma prova final e irrefutável: está entregue ultimamente à leitura do livro 1001 Noites, uma coleção que ganhou do pai quando menino, prometendo ler da primeira página do primeiro tomo à última frase do 13º tomo. Um exercício a que se entregou somente agora, muitos anos depois, como se em cada sílaba quisesse reencontrar o velho pai que se foi.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!