Sociedade

Malvada pinga,
bendita vida

VERA GUAZZELLI - 05/11/2001

A vida de João Maciel, 64 anos a completar em dezembro, recomeçou há um ano. Depois de morar 14 anos na rua, conseguiu subir degrau pequeno mas primordial na escala da dignidade. Abandonou o alcoolismo e por consequência a indigência com a ajuda da rede oficial de solidariedade para ingressar novamente na vida comum dos cidadãos. Com emprego fixo, carteira assinada, lugar para dormir e um prato quente de comida todos os dias, João acredita ter deixado para trás o mundo onde a felicidade não existe e o sonho geralmente se restringe a apenas mais um gole de cachaça. 

Durante mais de uma década a vida do ex-ferroviário passou em preto e branco. A ausência de tonalidades mais vibrantes impede João de contar sua história sem que os olhos fiquem marejados, mas o choro não tem o propósito de despertar pena. João Maciel faz mea culpa e tem consciência de que chegou ao fundo do poço porque foi nocauteado pelo prazer ilusório e transitório do vício. O álcool, companheiro que sorrateiramente o assediou por volta dos 35 anos de idade, também o empurrou para a indigência tempos mais tarde. E foi escondido em becos ou pseudo-abrigado sob pontes e viadutos de Santo André e outras cidades por onde perambulou que João aprendeu a duras penas a cruel diferença entre o tudo, o nada e o pouco. 

Essas palavras de significado ao mesmo tempo relativo e antagônico sintetizam os três atos contínuos da vida de João Maciel. Ele tinha casa, bom emprego, mulher e filhos. Mas a vida estável de chefe de família e de trabalhador com direitos garantidos por lei esvaneceu-se em intermináveis bebedeiras. A família não suportou a pressão de conviver com um alcoólatra e optou por deixá-lo na companhia da farra. Depois, João acabou demitido por justa causa de emprego praticamente vitalício na Rede Ferroviária Federal porque estava trabalhando embriagado. Era setembro de 1987 e, sem opção, acabou nas ruas. Só foi resgatado em janeiro último por meio de trabalho assistencial realizado pela Prefeitura de Santo André.

"Fui salvo a tempo. Essas pessoas me estenderam a mão após tantos anos sem esperança" -- reconhece, ao se referir à instituição que hoje o acolhe. João Maciel é um dos 16 moradores da Casa Amarela, centro de convivência para adultos indigentes que fornece alimentação e espaço para higiene pessoal diariamente a outros 70 moradores de rua.  O ex-ferroviário integra o projeto de moradia coletiva porque conseguiu trabalho e já pode contribuir, mesmo que simbolicamente, com as despesas. 

A Casa Amarela representa o retorno de um pouco de cor à ainda pálida vida de João Maciel. Como numa bem escrita trama na qual o destino dos personagens coincidentemente se entrelaçam, ele encontrou abrigo na cidade natal. João Maciel é andreense nascido em Paranapiacaba, mas foi em Santos que recebeu o primeiro empurrão para voltar ao mundo. Auxiliado por instituição assistencial do Município litorâneo onde também foi hóspede das ruas, parou de beber. Retornou a Santo André para integrar a Frente de Trabalho municipal na qual ganha salário mensal para conviver de perto com a mesma solidariedade que hoje lhe estende a mão. João Maciel é um dos auxiliares da Casa de Estar Boa Esperança, onde ajuda a cuidar de 14 idosos acamados. 


Família -- O retorno ao convívio social remete a lembranças da vida em família. João fala com emoção contida sobre os filhos Cleide, Cleonice, Sandra, Solange e Wanderley -- com w e y como faz questão de frisar.  Ficou praticamente uma década inteira sem vê-los e teve de resignar-se diante da notícia tardia da morte de Cleonice, aos 36 anos. Quando a filha faleceu, João não foi encontrado pelos parentes. Mal consegue lembrar-se por onde andava e muito menos explicar com precisão a causa da morte. 

O conhecimento fragmentado que João tem do atual estágio da família lhe dá a certeza de que não existe a possibilidade de voltar ao convívio dos filhos. O abismo criado por anos de mágoa e separação dificilmente será transposto apenas com boa vontade. João Maciel acredita que tenha sido pai exemplar durante o período em que não esteve dominado pela bebida. Mas evita julgar mulher e filhos por terem-no abandonado no período mais complicado da vida. "Não tinha problemas de relacionamento familiar e que entrei na bebida porque gostei" -- diz. Por isso, limita-se a agarrar com afinco os poucos momentos de convívio íntimo que lhe são permitidos. 

No último Dias dos Pais foi convidado para o tradicional almoço com os filhos, 11 netos e uma bisneta. "Já nem me lembrava mais de como é gratificante ter todos em volta da mesa" -- fala sem esconder as lágrimas. João Maciel revela que não há momento pior para quem vive na rua do que enfrentar a solidão das datas comemorativas. Natal e Ano Novo são os piores dias para se passar ao relento, na opinião do ex-ferroviário.  

O drama pessoal de João Maciel repete-se à exaustão nos lares brasileiros. Levantamento do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas) mostra que 84,4% dos casos de internações psiquiátricas no Brasil nos últimos dois anos tiveram como causa o álcool. Somente nas 24 cidades paulistas com mais de 200 mil habitantes, entre as quais Santo André, São Bernardo, Diadema e Mauá, existem cerca de um milhão de dependentes de álcool. João Maciel está excluído das estatísticas oficiais porque nunca frequentou clínicas de reabilitação que fornecem insumos para as pesquisas.  Mas a vida entre indigentes lhe permitiu formular sondagem empírica para afirmar categoricamente que 90% dos moradores de rua são alcoólatras. 

Apesar do alcoolismo ser considerado problema de saúde pública por grande parte de especialistas da área médica, o Brasil ainda não foi capaz de formular política efetiva de prevenção à doença. Um dos principais problemas apontados pelos especialistas é o não cumprimento da lei que proíbe a venda de bebida alcoólica para menores de 18 anos. "Eu gostaria de aconselhar esses jovens. Minha história bem que poderia servir de exemplo para eles" -- deseja João Maciel. 

Ao revelar a esperança de que sua trajetória possa transformar-se em referência para outros que vivem na corda bamba do vício, João procura encontrar algo além de tragédia e miséria na derrocada pessoal. A vida nas ruas não tem atrativos e a bebida serve para esquecer tudo, até mesmo que se é gente. A indigência extirpa a auto-estima e atos cotidianos como comer, tomar banho, escovar os dentes ou mesmo assistir a novela das oito tornam-se atitudes de um mundo distante. A indigência é também a vizinha mais próxima da marginalidade e quem consegue viver nas ruas e resistir ao apelo da vida fora da lei, como João, pode considerar-se um sobrevivente de si mesmo.  

A miséria cotidiana, no entanto, não apagou em João Maciel a chama de cidadania cultivada desde a juventude. Ex-delegado do Sindicato dos Ferroviários, foi parar no Dops acusado de subversão no período negro da ditadura militar. Tudo não passou de engano, segundo o ex-ferroviário, que recentemente representou Santo André na Marcha dos Moradores de Rua até Brasília. O movimento reuniu catadores de papel de todo o País que foram à Capital federal reivindicar a regulamentação da profissão e João esteve presente em solidariedade aos companheiros.

Solidariedade é palavra que mais ecoa no vocabulário atual de João Maciel. Por mais paradoxal que possa parecer, ele aprendeu nas ruas que principalmente em situações extremas não é possível viver sem compartilhar. Mesmo que seja para dividir o quase que garante a sobrevivência. João Maciel está convicto de que encerrou a fase mais cinzenta da vida e se diz aberto a doar o que ainda lhe resta de bom em benefício do próximo. Mesmo assim, não deixa de sonhar com coisas materiais como a maioria dos mortais ou de sentir orgulho por ter ocupado lugar de honra na mesa da Câmara Municipal de Santo André no mês passado, quando o ex-arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns recebeu o título de cidadão andreense. "Agora que tenho emprego e um abrigo já posso sonhar de novo. Ainda não tenho o suficiente para me manter sozinho, mas acho que já dá para fazer crediário em alguma loja popular" -- brinca em uma das poucas vezes durante a entrevista que se permitiu um sorriso.


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