Sociedade

Por uma nova
oportunidade

MALU MARCOCCIA - 05/12/2001

Na teoria católica, padrinho significa o segundo pai. Não são poucas, portanto, as atitudes de apadrinhamento dentro do Brasil, maior nação católica do mundo, sobretudo em festas cristãs como Natal e Páscoa. Famílias patrocinam cestas de presentes ou abrigam em casa por alguns dias crianças e adolescentes carentes. Depois disso, o futuro imediato desse pequeno exército de excluídos volta a ser nebuloso. 

De carona no sentimento cristão do brasileiro e em busca de tornar definitivamente róseo o horizonte de menores órfãos ou abandonados, o juiz Luiz Carlos Ditomasso, da Vara da Infância e Juventude de São Bernardo, não pensou duas vezes: acaba de lançar o projeto Padrinho Legal - Adote Essa Idéia. O propósito é exatamente o que enuncia o slogan, ou seja, tornar o apadrinhamento um ato assegurado por lei, através do qual as famílias podem ter a guarda definitiva da criança ou adolescente sem que isso signifique uma adoção. A diferença é que o afilhado não tem os mesmos direitos de herança do filho biológico, como ocorre com crianças e jovens adotados. 

"A condição de filho, entretanto, é a mesma. O apadrinhado terá os mesmos direitos de amor, atenção e integração, além dos deveres morais e materiais" -- expõe Ditomasso, 43 anos, há três atuando em São Bernardo, onde tem trabalhado uma nova postura da Justiça frente ao dilema da violência juvenil. Foi Ditomasso, por exemplo, quem pôs em marcha medidas socioeducativas para menores infratores do Município, ao sentenciar jovens que cometem delitos leves com prestação de serviços à comunidade ou liberdade assistida. Engana-se quem pensa ser essa uma atitude normal diante de um ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que prevê internações na Febem somente em casos extremos de infrações gravíssimas. A realidade é que a grande maioria dos juízes não acredita na eficácia das medidas de meio aberto e acaba recolhendo adolescentes que praticam pequenos furtos ao mesmo teatro de operações de facínoras e estupradores, como conclui recente pesquisa sobre a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor feita pelo Illanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas).

Pai de um menino de seis anos e crítico de doutrinas pedagógicas modernas que não impõem restrições na educação de crianças, Luiz Carlos Ditomasso também censura a estrutura da Febem.  Pelas letras da lei, a Febem é uma imensa armação ficcional. "A lei prevê atendimento personalizado, em pequenas unidades, ambiente de respeito e dignidade, instalações adequadas de salubridade e segurança, atividades pedagógicas..." -- vai recitando com ironia. E por que a deterioração dos últimos anos? "Não há respeito às leis nem aos menores. Daí as megarrebeliões" -- desqualifica.

Evitando polemizar, esse homem das leis que se diz crente fervoroso no ser humano também não economiza palavras de restrições à estrutura do Estado e às contradições da legislação em torno do menor. Luiz Carlos Ditomasso elogia o ECA por dar garantias de proteção a um crescimento digno da criança, mas entende que o estatuto arqueou sob o peso da emenda constitucional da reforma da Previdência Social que proibiu o trabalho abaixo de 16 anos. "Poderíamos ter milhares de jovens mais excluídos socialmente, com 12, 14 anos, na função de aprendizes, mas uma legislação simplesmente impede essa perspectiva. O pior é que o Estado tirou o trabalho das crianças e não deu contrapartida em termos de lazer e educação. A escola pública está falida, não segura o jovem e não o estimula a estudar" -- dispara Ditomasso, com o respaldo de uma carga de trabalho que envolve pelo menos seis processos por semana de delitos graves -- de roubo para cima. Não é raro cada processo envolver cinco adolescentes de uma vez numa cidade que em 1999 foi campeã de internos na Febem, só perdendo para a Capital. 

Foi a partir de convênio do Ministério Público com a Fundação Criança de São Bernardo que jovens infratores primários, de 12 a 18 anos, com delitos como pichação, furtos, dirigir sem habilitação ou armar brigas na escola passaram a ter acompanhamento da Justiça desde a primeira audiência com o juiz e ajuda de assistentes sociais e psicólogos para se reintegrarem à família e ao meio social. Os resultados têm sido surpreendentes. Dos 115 internos na Febem em 1999, São Bernardo contribuiu com 40 em 2000, segundo dados da Fundação Criança. O Case (Centro de Atendimento às Medidas Socioeducativas) da Fundação, em compensação, viu saltar o atendimento a 70 adolescentes em 1998 para 315 em 1999.

"A maioria não são esses monstros de arma em punho, agressivos e desumanos que generalizamos quando vemos um crime gravíssimo no noticiário" -- assegura Ditomasso, que vê na desestrutura das famílias modernas uma das matrizes dos desvios da adolescência. "Ninguém nasce ruim. Mas pais ausentes, a falta de diálogo e de um referencial de valores éticos tornam essa criança carente afetivamente" -- acredita o juiz da Infância e Juventude de São Bernardo, que não abre mão de sentar e conversar com o filho uma ou duas horas quase todos os dias. A liberdade assistida, assim, não é um luxo. Faz parte de uma solução para o menor que transgrediu mais por desorientação do que por instinto assassino, daí o entusiasmo de Luiz Carlos Ditomasso pela ressocialização com medidas que passem longe da privação da liberdade, sobretudo num período em que os jovens estão formando a personalidade. Dados da Febem indicam que só 44% das 645 cidades paulistas oferecem programas de liberdade assistida para menores infratores, o que impede que dois mil adolescentes -- ou 40% dos internos -- deixem o regime fechado.

Nascido em São Paulo e com família em Santo André e São Bernardo, Ditomasso entrou para o mundo das leis como escrevente do Tribunal de Justiça, na Capital. Considerava o trabalho transitório, pois queria mesmo ser administrador de empresas, daí ter se formado pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas). "Aí me encantei pela Justiça, por esta grande família" -- conta, para justificar o ingresso no curso de Direito logo depois. Foi diretor de cartório, fez magistratura e foi corregedor da cadeia feminina de Roseira, no Vale do Paraíba, onde exercitou muito da visão humanista que desenvolveu para desengessar a rigidez oficial das leis. "Consegui estabelecer visitas mensais às mulheres, ter entrevistas individuais e acompanhar o andamento de cada processo. Essa atenção fez melhorar muito o ambiente e o moral da turma. Conseguimos até um curso de alfabetização para elas" -- conta.

É por causa desse grau de sensibilidade, e para evitar que mais jovens reforcem o exército de mão-de-obra excedente para a criminalidade, que Ditomasso arquitetou o programa Padrinho Legal -- Adote Essa Idéia. Além de quebrar a resistência de famílias que temem pela divisão patrimonial diante da guarda de um menor, a iniciativa busca sobretudo estimular a inserção em lares estruturados de crianças a partir de seis anos até 18 -- uma faixa etária rejeitada pela maioria dos pretendentes à adoção. "Todos querem recém-nascidos até seis meses, o que aborta o futuro de muitas crianças e jovens com grande potencial de ter uma vida normal" -- lamenta o juiz de Direito.

A idéia surgiu de um jovem que, prestes a completar a idade limite de 18 anos, teria de deixar uma das casas-abrigo da Fundação Criança de São Bernardo.  A situação incomodou Ditomasso, porque diariamente se multiplicam casos de jovens abandonados ou em recuperação penal que atingem a maioridade e não têm mais direito à assistência governamental. "Era um rapaz trabalhador, colaborava com o abrigo e tinha até poupança formada. Não era justo cortar esse elo num momento de plena reestruturação da sua vida" -- comenta. Ao fazer 18 anos, o juiz Ditomasso emancipou a capacidade civil do jovem para 21 anos, o que permitiu que comprasse uma casa e ganhasse, inclusive, a guarda da irmã menor. Esses dois irmãos, mais um terceiro adolescente, já estrearam o programa Padrinho Legal. Luiz Carlos Ditomasso pega rapidamente uma caneta e começa a rabiscar: "Tenho cerca de 70 crianças acima de seis anos nos abrigos, sem nenhum vínculo com a família biológica e preparadas para restabelecer a convivência familiar e comunitária. Tudo que preciso é que 0,01% da população de São Bernardo abrace essa causa" -- convida.


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