Responsabilidade social ganhou espaço na vida de Maria Miriam Ferrari muito tempo antes de se tornar ação obrigatória em programas públicos e empresariais. A educadora que revolucionou as relações do Sesi Diadema com a comunidade excluída rompeu as barreiras do tradicionalismo e ultrapassou os limites do território escolar para levar educação até onde o povo está. Após 29 anos de trabalho no Serviço Social da Indústria e 54 de idade, Maria Miriam ainda encara com dedicação total os desafios de uma jornada profissional vitoriosa. Ela já trabalhou tempo suficiente para requerer aposentadoria e sabe que o momento está próximo. Mesmo assim, não planeja abandonar o exercício da atividade que a guiou por quase três décadas.
Formada em Pedagogia pela Senador Fláquer de Santo André, atual Uni-A, e pós-graduada em Educação Popular pela PUC-São Paulo desde 1985, Maria Miriam Ferrari defendeu tese de tema no mínimo apaixonante numa época em que palavras como periferia, exclusão e marginalidade pareciam distantes do cotidiano do cidadão comum. Por isso, não se contentou em apenas rechear o currículo com o título de mestrado e viver da contemplação pura e simples da pesquisa acadêmica. Decidida a colocar a mão na massa e os pés no barro, escolheu trabalhar no Sesi Diadema e não hesitou em convocar lideranças populares das favelas para construir em conjunto as regras de convivência que garantiriam a integridade do CAT (Centro de Atividade do Trabalhador) José Roberto Magalhães Teixeira, verdadeiro oásis de lazer, esportes e educação encravado na assimétrica paisagem de caos urbano que predomina em Diadema.
"Escolhi Diadema porque meu objetivo era vivenciar o lado da exclusão que só conhecia por meio de publicações e pesquisas" -- explica. Ao desembarcar em Município formado às pressas e sem qualquer planejamento por leva de migrantes em busca do sonho dourado do bom emprego, Maria Miriam Ferrari encontrou terreno perfeito para aprender aquilo que os bancos escolares não lhe haviam ensinado. Se a teoria era idealista, a prática revelou ingredientes que apenas a sensibilidade ressaltada pelo choque da vida real é capaz de distinguir.
Foi nessa época que a veia da responsabilidade social pulsou mais forte. O agravamento da miséria humana no Grande ABC e a deterioração da qualidade de vida surrupiada diariamente pela escassez de oportunidades profissionais já era contexto instalado e foi percebido pela educadora muito antes de se tornar visível aos olhos dos governantes e do cidadão comum. Era impossível e até inadmissível trabalhar em escola envolta por favelas localizada num dos bairros mais carentes de toda a Grande São Paulo e fazer de conta que nada acontecia ao redor.
Maria Miriam Ferrari chegou sem a intenção de mudar. Perspicaz o suficiente para identificar a tênue linha que por vezes separa o significado das palavras interferir e interagir, vestiu-se de humildade e pôs-se a aprender com a comunidade, da qual se sentia legítima integrante. "Foi um período rico em descobertas e planejamento de ações. Mas não foi tão simples quanto parece levar os conceitos de responsabilidade social e comprometimento para além dos nossos domínios físicos" -- revela.
A educadora tem consciência da missão cumprida. Sabe que teve papel relevante na transformação do Serviço Social da Indústria em patrimônio comunitário de Diadema. No entanto, prefere estender os louros à equipe de trabalho e aos moradores que compreenderam a importância de estarem integrados ao espaço de convivência. O chão é limpo, não há pichações em portas, paredes ou banheiros, ao contrário da maioria dos espaços públicos sediados na periferia. A ordem predomina em clara sinalização de que as regras que todos ajudaram a construir são aceitas.
Mas nem sempre foi assim. Dos tempos em que Maria Miriam Ferrari chegou a Diadema para lecionar no Bairro Campanário até o estágio alcançado após cinco anos no comando do CAT José Roberto Magalhães Teixeira, há uma lista de histórias de aprendizado de como evitar o derramamento do caldo formado pela cultura da marginalidade. "Confiança, respeito e carinho são capazes de quebrar a agressividade natural de quem vive em condições extremas de pobreza. Quando você se compromete e cumpre com sua parte, as pessoas passam a acreditar em você" -- fala com extrema naturalidade.
Expansão ou invasão -- Maria Miriam cultiva a simplicidade de quem declina dos holofotes e prefere ser reconhecida simplesmente como dona Miriam, não como a diretora do Sesi Diadema. Quando caminha pelo complexo de lazer e esportes distribui sorrisos, chama os funcionários pelo nome e não se furta ao cumprimento com os poucos frequentadores que tem o privilégio de estar à beira da piscina numa terça-feira pela manhã. Uma calmaria que aos finais de semana é tomada por multidão de dois mil frequentadores assíduos, número capaz de fazer inveja a clubes sociais mais bem estruturados da região. O CAT de Diadema tem 6,2 mil associados. Além das atividades de esporte e lazer, a entidade também promove cursos de melhoria de renda e tem vários projetos como o caminhão-biblioteca que abrange toda a comunidade.
A convivência pacífica que se estabeleceu dentro dos domínios territoriais do Sesi parece até não fazer parte de Diadema, cidade que sempre figura entre as cinco mais violentas do Estado de São Paulo. Mas a integração que praticamente deixou o Sesi imune às barbáries que se banalizam nas ruas em velocidade exponencial foi conquistada com esforço. Uma das histórias que marcaram a trajetória de Maria Miriam Ferrari originou-se justamente num conflito ocasionado pela própria condição de miséria.
Era meados de 1986 e a Prefeitura de Diadema havia se comprometido a doar terreno para o Sesi ampliar as instalações. A oportunidade foi singular para promover aproximação com a comunidade porque moradores da favela vizinha animaram-se com a possibilidade de mais vagas para os filhos. Mas todos foram surpreendidos pela invasão da área destinada à ampliação da escola, tomada por dezenas de sem-teto num único final de semana. Foi quando Maria Miriam se viu no meio do fogo cruzado entre os que reclamavam o direito de morar e os que reclamavam o direito de estudar, mas eram igualmente invasores de área pública. "A comunidade achou que o Sesi tinha de resolver o problema e apaziguar os ânimos foi tarefa espinhosa. Houve até depredação, mas nos propusemos a dialogar e o bom senso venceu" -- lembra a educadora. Tempos depois a Prefeitura cedeu outra área no mesmo bairro para construção do CAT, inaugurado em 1996.
A convivência com moradores da periferia também ensinou Maria Miriam Ferrari a rever conceitos tradicionais que costumam rechear estatísticas repletas de dados politicamente corretos, mas que nem sempre refletem o que se passa nas hordas de pobreza que circundam os grandes centros. O Sesi privilegia e estimula a convivência familiar. A realidade da periferia de Diadema, entretanto, ensinou a educadora que nem sempre a família é formada por pais, mães e filhos. "Cerca de 40% das fichas dos menores frequentadores do centro esportivo são assinadas por responsáveis. Nem todos vivem sob a proteção do pai e da mãe ou de um dos dois" -- revela Maria Miriam Ferrari.
A estatística não é oficial, mas está tão próxima da verdade a ponto de revelar que a desagregação entre as famílias de baixa renda começa na cidade de origem e se agrava nos grandes centros. É uma constatação que faz parte do manancial de aprendizados que transformou Maria Miriam Ferrari numa expert em enxergar além do óbvio e daquilo que está escancarado. Ter aprendido a interpretar com sabedoria cada uma das palavras e das ações da comunidade é a maior lição tirada pela educadora, que se propôs a ser uma agente de cidadania em área dominada pelas regras cruéis e desesperadoras da sobrevivência.
A capacidade de agregação de Maria Miriam Ferrari também é latente fora do trabalho. A dona-de-casa mãe de dois filhos é também cozinheira de mão cheia. Apesar da descendência italiana, nunca erra a mão no preparo de uma bacalhoada e só não reúne a família com a frequência que gostaria para os almoços de domingo porque a filha mora no Interior de São Paulo. "Gosto muito da minha comida" -- relata sem falsa modéstia. A declaração sugere que com a suposta chegada da aposentadoria Maria Miriam possa trocar a escola pela cozinha. Mas, como a própria educadora aprendeu com a comunidade, nem sempre o que parece é. "Quando me aposentar, pretendo viajar e depois retomarei o trabalho em alguma atividade ligada à responsabilidade social" -- garante.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!