Mickey, Batman, Mônica, Homem Aranha, Cebolinha, Recruta Zero, Super-Homem e Pateta são os mais novos nomes da lista de seres ameaçados de extinção. Esses personagens povoam cada vez menos as fantasias das crianças de todo o mundo, hoje seduzidas por formas de entretenimento mais modernas como videogames, TV e computadores. Mickey, Batman e cia. só não saem do imaginário e dos sonhos do professor universitário Roberto Elísio dos Santos, fanático por gibis, como muita gente com mais de 30 anos. Santos tem 40 anos. Aos seis, já um aficcionado, acreditou que seus heróis preferidos iriam deixar de viver com a morte de Walt Disney. "Quando vi que os quadrinhos não acabaram, percebi que os verdadeiros criadores de muitos personagens das revistas da Disney eram os desenhistas das histórias" -- conta Santos, que a partir de então descobriu que Walt Disney ocupava a maior parte do tempo administrando os negócios da gigantesca empresa que fundara.
Hoje, o professor do Imes (Centro Universitário de São Caetano) se prepara para transformar sua paixão em livro que promete desvendar os verdadeiros heróis quase anônimos que materializam a vida das histórias em quadrinhos: Para Reler Os Quadrinhos Disney (Paulinas Editora). A obra mostra a diversidade de culturas por trás das histórias de Mickey e Pato Donald, usados, na verdade, para retratar a bagagem de cada autor dos desenhos. O resultado da paixão pelos quadrinhos está nos mais de 14,7 mil gibis que fazem parte da coleção pessoal de Roberto Elísio dos Santos. Desse total, mais de 7,7 mil são quadrinhos Disney, a maior coleção desse tipo no Brasil. Depois de ler muitos milhares de balões, Santos vê com preocupação o futuro das revistas de HQ: "O que temos mais nas bancas hoje são quadrinhos para adultos. Não temos uma renovação de público" -- alerta o professor.
Nem mesmo na pátria dos quadrinhos, os Estados Unidos, as crianças se divertem com gibis infantis, que simplesmente não são publicados mais. Uma pena. "Fantasia não é alienação. A gente não pode viver o tempo todo em função da realidade. Tem de ter aquele elemento lúdico como nos quadrinhos, onde o pato e o cachorro falam e o homem se transforma em homem aranha" -- comenta.
Quadrinhos não são só fantasia, o que já é muita coisa. Sintetizam também literatura, arte, costumes e política. É essa a mensagem que o professor passa aos alunos do curso de Comunicação Social e de Pós-Graduação do Imes. Roberto dos Santos vê um verdadeiro preconceito contra o que considera uma das formas mais expressivas de cultura de massa. Foram seus pais, sobretudo o pai médico, que o incentivaram a ver gibis quando ele ainda tinha três anos. Antes dos cinco, Roberto Elísio dos Santos já estava alfabetizado graças às aventuras vividas em Patópolis, Metrópolis e nas selvas de Bengala, junto com Tio Patinhas, Super-Homem ou Fantasma. Mesmo assim, os pais procuraram a professora do garoto para se certificarem se realmente a leitura de gibis era indicada para quem tinha também de tirar boas notas na escola Dom Benedito Paulo Alves de Souza, no Bairro Santa Paula, em São Caetano. "A dona Alma, a professora, foi minha salvação ao dizer que não tinha problema e que ela até comprava gibis para os filhos".
A partir daí, Roberto firmou um pacto com os pais de comprar todos os gibis que gostasse durante a semana, mas somente ler aos sábados e domingos, hábito que mantém até hoje. O preconceito contra as histórias em quadrinhos -- de que alienam -- foi tão grande que Roberto Elísio dos Santos não escolheu o tema para sua tese de mestrado. Depois de se formar em Publicidade e Propaganda e Jornalismo, Santos optou por pesquisar a TV Record e a ideologia populista brasileira de 1953 a 1968. Só quando fez doutorado é que desenvolveu estudo sobre a diversidade cultural nos diferentes traços dos quadrinhos da Disney, que se transforma em livro em maio próximo. O trabalho de Santos é uma espécie de resposta ao clássico Para Ler O Pato Donald, da dupla Ariel Dorfman e Armand Mattelart, um verdadeiro manifesto anti-imperialista que vê Tio Patinhas como representante do capitalismo e os bandidos irmãos Metralha como os personagens mais criativos do conservador Disney. "O livro de Dorfman e Mattlert não leva em conta a diversidade de culturas e comportamentos retratados nas HQ pelos inúmeros artistas que faziam as histórias. O próprio Dorfman admitiu recentemente que seu livro não é um estudo científico, mas uma cartilha política" -- explica o professor.
Macunaíma em HQ -- Zé Carioca, para o aficcionado professor universitário, é uma espécie de Macunaíma das histórias em quadrinhos, pois expressa e resume a alma brasileira, primo direto do Amigo da Onça e sobrinho de Oscarito e Grande Otelo. "Na época em que o Brasil vivia a moratória da dívida externa, por exemplo, Zé Carioca era mostrado como o maior caloteiro do Brasil, com uma legião de cobradores atrás dele e que chegaram a formar até mesmo a Anacozeca, a Associação Nacional dos Cobradores do Zé Carioca" -- conta o professor, para mostrar que nem sempre os quadrinhos Disney defendiam o imperialismo americano. O papagaio folgado era produto da experiência dos artistas brasileiros que desenhavam as histórias, como Jorge Kato, Euclides Miyaura e Waldyr Igayara. "Tenho um capítulo dedicado aos artistas brasileiros dos quadrinhos Disney e um deles, o Waldyr, me disse que ele e os colegas liam jornais e transportavam os temas para as histórias do Zé Carioca" -- revela o professor. Hoje já não existe mais produção nacional de quadrinhos Disney.
Na cruzada para mostrar que história em quadrinhos não é alienante, Roberto Elísio dos Santos descobriu também que o famosíssimo Walt Disney pouco fazia pelos personagens que lhe deram rios de dinheiro. "Ele não era nem um bom desenhista. Limitou-se a criar personagens como Mickey e Donald" -- decepcionou-se Santos. O talento de Walt Disney era mesmo para elaborar projetos de desenhos animados como Branca de Neve, Pinóquio e Fantasia, que causaram verdadeira revolução no cinema de animação e encheu os bolsos do autor do projeto. Quem pensa que personagens como Tio Patinhas, Professor Pardal e Gastão foram obra de Walt Disney está redondamente enganado. "Quem os criou foi Carl Barks, que prestava serviço para uma editora licenciada pela Disney. Ele ficava em casa e entregava o trabalho pelo correio" -- cita o professor Santos, que não descuidou sequer de investigar que foram artistas brasileiros que criaram o primeiro personagem negro dos quadrinhos Disney, o Pedrão Feijoada, um dos vizinhos de Zé Carioca no morro.
Uma verdadeira aula de cultura brasileira pode sair dos gibis, de acordo com o professor Roberto Elídio dos Santos. "Aprendi a ler em histórias em quadrinhos antes dos seis anos de idade. Hoje os professores poderiam fazer os alunos ler histórias do Chico Bento e depois organizar uma encenação ou um debate sobre meio ambiente" -- sugere ele, casado com a professora de Letras Simone dos Santos. Quem duvida da importância dos quadrinhos deve saber que, como conta o professor Santos, Rui Barbosa citava em seus discursos a revista infantil Tico Tico, publicada entre 1905 e 1960. De quebra, pode também se orgulhar que Mirza, a vampira, foi personagem criada por artistas brasileiros no início dos anos 60, antes mesmo de sua colega americana, Vampirella. "E olha que naquela época Mirza já ia à praia de biquíni..." -- ressalta o fanático professor.
Até dia 28 deste mês o Shopping Metrópole, em São Bernardo, promove a Gibilândia, exposição com cerca de mil quadrinhos históricos. Poderão ser vistas raridades como a primeira revista infanto-juvenil brasileira, o Tico Tico, de 1913, e aventuras completas de Zorro, Tarzan, Superman e O Lobinho.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!