Sociedade

Nossa Indiana
Jones de saruel

MALU MARCOCCIA - 05/03/2002

Talvez haja poucas combinações tão improváveis quanto um jornalista correspondente de guerra não saber dirigir veículos nem ter senso de direção apurado, pois não consegue distinguir o lado direito do esquerdo. Esse aparente paradoxo, entretanto, nunca deixou a repórter Rosely Forganes em campo minado nas andanças pelo mundo atrás de furos e de matérias instigantes. Tão instigantes quanto a própria Rosely, que confessa: apesar de já ter passado por cerca de 50 países, um mais excêntrico que o outro, não conhece nem faz questão de conhecer Nova York, nunca foi à Eurodisney mesmo morando há 20 anos em Paris e se perde quando vem ao Grande ABC ou vai à Capital. Mas a inquieta e falante Rosely Forganes se lança a verdadeiras aventuras quando se trata de afivelar as malas para cobrir a parte do planeta que mais a seduz, o Sudeste Asiático. Já esteve 25 vezes na Tailândia, oito vezes na Birmânia (um dos países mais fechados do mundo), também aportou na Albânia e no Tibet, cobriu a guerra civil do Cambodja e, mais recentemente, foi a única brasileira a reportar diariamente, ao vivo, a guerra separatista do Timor Leste, em 1999, pela Rádio Eldorado.

"Há algo de muito diferente por lá. São países exóticos, de culturas milenares e com povos geralmente oprimidos, bastante simples, pois são na maioria camponeses" -- conta essa santista que aos seis anos mudou-se com a família para São Bernardo, aos 26 transferiu-se definitivamente para a França e aos 46 consagra-se com uma das mais respeitadas conquistas da carreira, o Prêmio Wladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos, do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, com a série especial Vozes do Timor, que relata tanto a guerra quanto a reconstrução do país. 

Rosely está em São Bernardo desde outubro do ano passado, quando veio ao Brasil para receber o prêmio. Não foi embora ainda da casa dos pais porque trabalha em mais uma etapa cobiçada na vida de todo jornalista: escrever um livro. Está concluindo o relato sobre o que viu e sentiu na sangrenta luta de um povo que só está vivendo em clima de paz após a retirada definitiva do ocupante indonésio e a aventura que tem sido reconstruir um país do zero, onde a destruição chegou a 90%. Também fotógrafa, estão nos seus planos editar um livro de texto com 350 páginas entremeadas por algumas imagens e outro só de fotos.

"Não se trata de contar a história do Timor. Estou empenhada em mostrar a aventura que é uma guerra, como se entra e como se sai, a agonia e o heroísmo dos personagens, as histórias de vida. O Timor tem 462 reis tribais" -- empolga-se a relatar Rosely, que retornou ao cenário da guerra em 2000 e 2001 para buscar mais subsídios à publicação e reencontrar personagens como dona Manuela, uma timonerense refugiada que juntou alguns conhecidos para tentar manter limpo o convento invadido na Capital do Timor, Dili, pelos cerca de 50 jornalistas de todo o mundo que faziam a cobertura do conflito. 

Foram 30 dias à base de comida enlatada, água de poço desinfetada com pastilhas de cloro e gosto de água sanitária, banhos de caneca sob um clima de 38 graus, escuridão total à noite devido ao corte de energia e muitos, muitos cadáveres. Seu meio de locomoção era uma moto semi-quebrada cujo piloto se negava a ser pago. "Eles é que diziam muito obrigado por estarmos ali, pois a Imprensa internacional era a janela daquele povo para o mundo" - conta. Calcula-se que 250 mil timorenses foram massacrados nos 25 anos de ocupação da Indonésia e outros milhares perderam a vida no conflito de 1999, quando militares indonésios não aceitaram o plebiscito que votou pela independência do lado leste (esse território foi colônia portuguesa até 1975, quando declarou independência e foi invadido pela Indonésia). "Não houve como contar os mortos porque atiravam os cadáveres aos crocodilos, no mar" -- relata a jornalista. 

Cheiro de morte e destruição não era algo novo para Rosely Forganes. Colaboradora no Exterior de publicações como Diário do Grande ABC, Folha de São Paulo, IstoÉ, Marie Claire e Terra, Rosely já havia pisado em outra terra tenebrosa, o Camboja, em 1995. Não é a guerra em si que a atrai, mas qualquer episódio que envolva aqueles territórios asiáticos exóticos e singulares, povos que estejam sofrendo e lutando contra a opressão, como frisa a repórter-fotográfica. Tanto que, quando explodiram as duas torres gêmeas do World Trade Center, nos Estados Unidos, Rosely estava no Timor e não se interessou pela cobertura. A própria Rádio Eldorado mantém correspondentes em Tóquio e em Cingapura, mas Rosely se antecipou de Paris rumo ao Timor. Chegou antes mesmo dos militares brasileiros que iriam combater na ilha. Sua determinação era tanta que não pestanejou em vencer a resistência a telefones celulares e adquiriu um pela primeira vez na vida, o mais sofisticado que havia. "Um celular custava um franco, mas paguei 2,4 mil francos no meu. Queria conexão com notebook, link com Internet e fax e precisava estar na mesma frequência do Timor. Liguei para um comandante da Defesa da França que já estava lá para testar meu aparelho antes" -- lembra. "Só que os indonésios cortaram as comunicações e eu fiquei na mão, falando do QG de incêndio dos bombeiros no Timor".

Esse detalhismo Rosely exercita a cada viagem, a maior parte nunca por menos de 15 dias e pautada por ela própria. Casada com o engenheiro eletrônico Fausto Purin, formado pela FEI, e sem filhos, Rosely devora jornais e revistas para buscar pautas nas entrelinhas das reportagens, como diz, ou em programas da madrugada na TV. Seu lema é não estar onde todos os repórteres estão para não cair no lugar-comum. "Antes de embarcar faço estudo detalhado do país, dos costumes, de quem são as lideranças e como tudo está contextualizado" -- ensina. Foi assim que descobriu uma sobrevivente dos campos da morte que reconstruiu o Balé Nacional do Camboja e desvendou redes de prostituição de crianças de até seis anos na Tailândia, 80% delas com Aids. Insistente, Rosely demorou sete anos para entrar na Birmânia e conseguir sua entrevista com a líder de oposição e Prêmio Nobel da Paz de 1991, Aung San Suu Kyi. Foi fichada e fotografada pela polícia saindo da casa dela. Sobre todos os episódios anteriores ao Timor, aliás, ela faz uma coletânea há cinco anos para também editar um livro.


Estrategista -- Medo não é propriamente o que Rosely Forganes sente ao embarcar a cada nova aventura, mesmo para locais onde o circo de guerra já está armado. "Acho que é mais insegurança sobre se vou conseguir cumprir a pauta direitinho" -- desconversa. No auge do frenesi do Timor, mesmo com seis quilos a menos e acometida de gengivite, o único momento em que entrou em pânico foi quando cortaram as telecomunicações. "Não me preocupei porque fui dada como desaparecida, mas sim porque não consegui passar matéria por dois dias" -- ri.

Estar em terras tão diferentes das ocidentais, sobretudo em guerra, não significa que o repórter deva vestir o modelito Indiana Jones. Ser correspondente é ser, antes, o estrategista Dr. Jones, afirma Rosely Forganes, que fala português, francês, espanhol, italiano e inglês de índio, como define. "Em vez de pensar em pular um penhasco e saltar de um avião em chamas, prefiro analisar a conjuntura, as forças em presença, como a situação pode evoluir, conhecer as pessoas para saber em quem confiar e estudar sempre para onde caminha o conflito" -- ensina. Rosely afirma que dispensa inclusive proteção das forças de segurança, para não ser refém de ordens e horários. Até agora escapou à fúria de contendores e de governos ávidos por surrupiar filmes fotográficos de jornalistas bisbilhoteiros. "Quando não é cobertura de guerra, entro nos países declarando ser turista e dona-de-casa" -- despista.

Católica convertida ao budismo Theravada e adepta de roupas de inspiração étnica, sobretudo pelo prático saruel (saia-calça com pregas que permite liberdade de movimentos), Rosely Forganes não se considera mística. "Sou do gênero que atropela gnomos. Sou budista meia-boca, não muito praticante, mas admiro profundamente a filosofia e a ética do budismo, que tento seguir" -- conta. Não esconde, porém, que deve muito do sentimento tonificado pela aventura à sua formação também em História e Sociologia da Informação. Parece ser a união perfeita da veia jornalística com a de historiadora -- uma veia que exercita sobretudo quando põe em campo o lado investigador. Foi esse lado que rendeu uma brasa nas mãos de Celso Pitta por causa da denúncia de que o prefeito viajara à França para assistir à Copa do Mundo de 1998 a convite da Lyonnaise des Eaux, controladora da Sita, que na época havia comprado a Vega Engenharia em São Paulo. A Vega havia ganho a licitação para coleta e tratamento de lixo na Capital. O cruzamento de informações pela correspondente em Paris custou a Pitta uma ameaça de impeachment e um processo judicial que se estende até agora. A jornalista já depôs duas vezes como principal testemunha.

Para quem já desminou campos no Cambodja parece café pequeno. Mas Rosely Forganes não deixa de farejar até informações que parecem diminutas ou sem importância. Foi assim que conseguiu surpreender o então prefeito Jânio Quadros e dona Eloá desembarcando em Genebra com a filha Tutu e o marido a tiracolo. Havia versões de que a excêntrica Tutu estava sendo levada a força. Rosely abordou Jânio com cortesia, chamou-o de presidente e o conquistou. Jânio alegou que Tutu tinha um problema de moléstia (assim mesmo ele se referia a uma doença). Ninguém sabe se é verdade, mas Rosely Forganes conseguiu 15 minutos de entrevista exclusiva com o prefeito quando toda a Imprensa brasileira estava atrás dele. Esqueceu-se inclusive da longa e angustiante viagem de carro durante a noite inteira para chegar a Genebra, pois os controladores de vôo estavam em greve em Paris. E ela ainda acha que não tem nada de Indiana Jones...


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