Os atentados terroristas contra os Estados Unidos consternaram o mundo inteiro em 2001, mas caíram feito bomba atômica sobre o sheikh Jihad Hammadeh, um dos principais representantes do islamismo no Brasil e que vive em São Bernardo, onde está instalada uma das maiores e mais movimentadas mesquitas do País. Se é verdade que a religião muçulmana sempre foi bicho-de-sete-cabeças para uma nação de maioria esmagadora cristã, também é verdadeiro que a confusão ampliou-se exponencialmente a partir dos ataques que chacoalharam o planeta no fatídico 11 de setembro: com o envolvimento de terroristas islâmicos, a imagem dos muçulmanos passou a ser vinculada mais do que nunca à de fundamentalistas louco-varridos, que a bem da verdade vicejam em praticamente todas as religiões.
Como porta-voz dos muçulmanos, sheikh Jihad tem se desdobrado como pode para tentar desfazer a névoa de desconfiança e preconceito que emergiu dos escombros do World Trade Center e de parte do Pentágono. Para cumprir puxada rotina que inclui palestras, entrevistas à imprensa, consultoria para a novela global O Clone, atribuições religiosas e estudos de aprimoramento dos quais ele não abre mão, Jihad acostumou-se a dormir cinco horas por noite, pular refeições e suprimir atividades paralelas como karatê, hap-ki-dô e tai-kwon-dô, artes marciais que para ele têm efeito tão revitalizante quanto os esportes radicais. A overdose de atribuições -- com o perdão do termo em se tratando de religião que não tolera sequer ingestão de álcool -- resultou na perda de cinco quilos em um corpo que já era longilíneo.
"Minha vida mudou muito com os acontecimentos dos últimos meses. O tempo está muito escasso" -- comenta, com a voz tranquila e pausada que lhe é peculiar. A entrevista à LivreMercado sofreu influência do transbordamento da agenda. O compromisso foi remarcado para o dia seguinte por motivo mais do que compreensível: sheikh Jihad teve de correr à Rede Globo para dar entrevistas no auge dos últimos conflitos entre israelenses e palestinos no Oriente Médio.
Jihad encontra-se submerso num oceano de atribuições religiosas, mas não poderia ser diferente. O islamismo acompanha a trajetória de vida desse filho de pai sírio e mãe libanesa nascido há 36 anos em Damasco, Capital da Síria, e que se mudou para o Brasil com a família ainda menino, como fizeram milhares de imigrantes europeus em busca de melhores condições de vida durante o século passado. Solteiro e sem filhos, Jihad viveu na Arábia Saudita entre 1981 e 1991 para se aprofundar em jurisprudência islâmica e cultura árabe na Islamic University of Medina, plantada na região em que o profeta Mohamed começou a semear o islã no século VII depois de Cristo. A conclusão dos estudos na principal universidade muçulmana do planeta foi pré-condição para tornar-se sheikh -- líder político e religioso cuja responsabilidade abrange celebração de orações, casamentos e enterros, além de atuação em fatos de natureza cível como divórcios e partilha de bens entre herdeiros.
"O islamismo não é uma religião laica, no sentido de que não fica confinada ao templo. Trata-se de um tratado ético que envolve todos os detalhes da vida pessoal e abrange as dimensões social, familiar e política" -- define Jihad, ao comentar que aos muçulmanos é recomendável ler súplicas do Alcorão antes de dormir, além de fazer cinco orações diariamente. "As súplicas são uma espécie de preparação para o que o livro sagrado define como pequena morte" -- explica o sheikh, que faz curso à distância de mestrado em jurisprudência islâmica pela norte-americana Open University, de Washington.
A missão de esclarecer a verdadeira essência do islamismo poderia ser muito mais árdua se o destino não tivesse sobreposto ao horror dos atentados terroristas dos Estados Unidos a veiculação de novela global ambientada no universo muçulmano. As filmagens de O Clone estavam em estágio avançado quando os ataques aéreos chamaram a atenção do Brasil e do mundo para o fundamentalismo islâmico. Nesse contexto delicado, sheikh Jihad foi consultado pelos diretores da novela e recebeu convite de Glória Perez para atuar como consultor especial para assuntos referentes ao islamismo.
"Meu papel como consultor é evitar que haja muitos erros" -- afirma Jihad com dose de humor, ao enfatizar a palavra muitos. "A novela às vezes comete deslizes ao misturar cultura local e religião, pois é preciso lembrar que os hábitos dos muçulmanos do Marrocos são diferentes dos costumes dos muçulmanos da Arábia Saudita" -- exemplifica.
"Apesar disso, o saldo é muito positivo. Através da teledramaturgia, o islamismo finalmente fez parte da vida dos brasileiros. Hoje as pessoas não estranham muito ao ver uma muçulmana andando na rua com longos véus. Pelo contrário. Muitos ficam curiosos e se aproximam para conversar e conhecer mais sobre a religião. A novela humanizou os muçulmanos, que antes eram vistos quase como seres de outros planetas" -- observa Jihad, referindo-se à segunda religião do mundo em número de adeptos. Com 1,3 bilhão de seguidores espalhados pelos cinco continentes, e não apenas no Oriente Médio ou na Arábia Saudita como muitos imaginam ao relacionar a religião exclusivamente aos árabes, o islamismo reúne contingente maior que o do judaísmo e só perde para o cristianismo, para citar as três principais religiões monoteístas, isto é, que crêem na existência de um só Deus.
Sheikh Jihad estima que o Brasil reuna cerca de 1,5 milhão de seguidores da religião de Alá, dos quais 500 mil estão concentrados no Estado de São Paulo e parte significativa destes no Grande ABC, especialmente São Bernardo. A mesquita da Vila Euclides é a terceira em tamanho entre as cerca de 100 espalhadas por todo o País e a primeira em fluxo de seguidores. A comunidade muçulmana concentrada em São Bernardo resulta sobretudo de imigração árabe durante a década de 50. "Em estrutura física a mesquita de São Bernardo só fica atrás da de Foz do Iguaçu e outra na Capital paulista" -- explica Jihad, que é vice-presidente no Brasil da World Assembly of Muslin Youth (Assembléia Mundial da Juventude Islâmica), ao lado do presidente sheikh Ali Abdoune, que também mora em São Bernardo. O foco da entidade internacional Juventude Islâmica, sediada em Diadema, é promover aprimoramento e integração de jovens muçulmanos com atividades que vão de palestras a acampamentos.
Além de atividades religiosas, do curso de mestrado, dos compromissos com a imprensa, da consultoria à novela O Clone e das atribuições à frente da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica, também toma tempo de Jihad o livro que começou a escrever com intuito de esclarecer as principais dúvidas relacionadas à cultura e à religião islâmica. "Será um livro de perguntas e respostas que ajudará a elucidar questões polêmicas como o papel das mulheres muçulmanas e as nuances da causa palestina" -- explica. Na contramão de quem enxerga as muçulmanas sob o manto da submissão e da subserviência ao homem, Jihad lembra que as seguidoras do islamismo votam há 14 séculos. "As mulheres do Ocidente conquistaram esse direito há apenas 100 anos" -- compara.
Além de especialista em islamismo, sheikh Jihad é formado em ciências sociais e história, respectivamente pela Uni-A, de Santo André, e Uniban, de São Bernardo. Impulsionado por uma sede de conhecimento que parece não ter fim, pretende fazer mais um mestrado a partir do segundo semestre do ano, desta vez em linguística pela Universidade de São Paulo.
Jihad se empenha em humanizar o islamismo provavelmente sem se dar conta de que sua figura é a maior prova do caráter intrinsecamente humano da religião. Afável, humilde e com sensibilidade aflorada para conversar sobre comportamento e psicologia -- temas tão depreciados nestes tempos de progresso material e vazio existencial --, Jihad certamente não faz idéia que sua postura é mais do que suficiente para desfazer mal-entendidos em relação ao islamismo.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!