Um escritor brasileiro que viu seu primeiro livro publicado em italiano quando vivia numa cela no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Um assistente de direção que trabalhou no efervescente Teatro Oficina com o anárquico e irreverente José Celso Martinez Corrêa. Um jornalista que trabalhou na lendária redação da revista Realidade. Um frade dominicano que acorda cedo todos os dias para assistir missa logo pela manhã. Um militante estudantil que conheceu figuras de proa da atual política brasileira. Todos os personagens estão reunidos na pessoa do mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, 58 anos, mais conhecido como Frei Betto, um dos expoentes da Teologia da Libertação e ao mesmo tempo bom cozinheiro. Sua história mostra muito do que aconteceu na história recente do Brasil.
Poucos brasileiros tiveram a oportunidade de viver tão intensamente o Brasil no último meio século como Frei Betto. Esse frade dominicano intercala a rotina do convento, das missas matutinas, rezas e meditações com o trabalho de escritor com 48 livros publicados e da militância engajada em movimentos de base da Igreja Católica. Numa época em que o neoliberalismo domina as relações políticas e econômicas em todo o mundo, Frei Betto é do contra e assume a opção pelos pobres, marginalizados e oprimidos. Quem lê jornais e revistas sabe quem é esse mineiro de Belo Horizonte que faz política, jornalismo, literatura e tem na religião uma forma peculiar de se situar no mundo dos homens. Se a chamada Igreja progressista tem uma cara no Brasil, as feições são muito próximas às de Frei Betto, um irmão operador da Ordem dos Dominicanos que não é padre, mas assume o dia-a-dia de quem se comprometeu com o trabalho pastoral. "Sou como uma freira: tudo que as freiras podem, eu posso; e tudo que elas não podem, eu não faço também" -- resume sua condição enquanto religioso.
Desde os 13 anos, Frei Betto assumiu a tarefa de unir militância política com trabalho evangélico. Nessa época começou a atuar na Juventude Estudantil Católica, uma confraria de rapazes e moças idealistas e que caminhavam pela trilha da esquerda brasileira. Ainda em Belo Horizonte, no começo dos anos 60, aos 15 anos, foi eleito vice-presidente da Umes (União Municipal dos Estudantes Secundaristas). Quando os generais derrubaram o governo de João Goulart, em 1964, o jovem Carlos Alberto Libânio Christo já era dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica e tinha percorrido todo o Brasil em reuniões, assembléias e tramas militantes em busca de um País justo e igual. Com esse currículo, ganhou dos militares uma estadia de 15 dias na prisão. No ano seguinte, entrou para a Ordem dos Dominicanos, uma organização com 800 anos de história. Dominicano foi Tomás de Torquemada, o comandante da Inquisição na Espanha, mas também Giordano Bruno, filósofo que anteviu os avanços da ciência, e frei Bartolomeu de Las Casas, que em pleno século XVI denunciou o massacre dos povos indígenas. Frei Betto entrava para uma ordem religiosa marcada pela fé extremada e a busca da justiça.
Foi com a coragem de Giordano Bruno e de Bartolomeu Las Casas que Frei Betto se aproximou da ALN (Ação Libertadora Nacional), grupo de esquerda armada que lutava contra a ditadura, comandado pelo líder comunista Carlos Marighella. Em 4 de novembro de 1969, Marighella foi morto a tiros por agentes do Dops na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Dias depois, Betto, que estava no Rio Grande do Sul, foi preso mais uma vez pelos militares. Foi levado a São Paulo, onde por quatro anos ficou nas mãos da chamada repressão. "Foi na cadeia, mais precisamente no Presídio Tiradentes, que recebi em 1971 um exemplar de meu primeiro livro, Cartas da Prisão, publicado originalmente na Itália" -- lembra. A edição brasileira o frade dominicano teve nas mãos já fora da cela, em 1974, em uma produção da editora Civilização Brasileira.
Depois desse livro, outros vieram. Eram relatos das experiências vividas na militância política, obras de filosofia, livros sobre religião, histórias infantis e infanto-juvenis, contos e até livros sobre culinária, alguns escritos em parceria com a mãe, Maria Stella Libânio Christo. Frei Betto também é autor de romances e do romance policial Hotel Brasil (Editora Ática), que está sendo roteirizado e deverá ser transformado em filme. Ao todo, os 48 livros foram traduzidos em 19 idiomas em 28 países. Na carreira literária, recebeu prêmios como Jabuti e Juca Pato, mas o jornalista mineiro também passou por redações como da revista Realidade, publicação que revolucionou o modo de fazer jornalismo no Brasil nos anos 60. Numa busca superficial pela Internet, seu nome aparece em sites americanos, ingleses, nicaraguenses, italianos, franceses, uruguaios, australianos, portugueses e alemães, entre outros. Frei Betto também se revelou um agitador cultural ao ser assistente de direção do diretor José Celso Martinez Corrêa na peça O Rei da Vela, que nos mesmos conturbados anos 60 foi encenada no Teatro Oficina, em São Paulo.
Depois de quatro anos na prisão, Frei Betto foi para Vitória, no Espírito Santos, em 1974, onde morou cinco anos numa favela, palco de outro trabalho missionário do homem do contra. O cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Cláudio Hummes, hoje cotado como um dos candidatos a papa no próximo período, foi responsável pela mudança de Betto da favela em Vitória para o industrial Grande ABC, em 1979. "Dom Cláudio era bispo em Santo André e me convidou para reativar a pastoral operária em São Bernardo. Foi quando conheci Lula. Havia aquela movimentação das greves e fomos estreitando os laços" -- cita o frade dominicano, que garante não militar no PT, apesar de ser um eleitor do partido e do amigo Luiz Inácio da Silva.
Em suas andanças pelo Brasil, o frade conheceu outras personalidades de destaque da atual política, a começar por um dos adversários de Lula na eleição deste ano, o ex-ministro José Serra, pré-candidato do PSDB à Presidência da República. "O Zé Serra vivia dormindo na república em que eu morava no Rio" -- inconfidência Frei Betto, ao relembrar o tempo de militância na Juventude Estudantil Católica, quando também conheceu tanto figuras como Herbert de Souza, o Betinho, como o ex-senador Jáder Barbalho. Na época, todos eram jovens, idealistas e militantes da esquerda católica. "Foi toda uma geração de jovens que articularam a fé cristã com o social. Uns ficaram mais à esquerda, outros não" -- afirma Betto, que assumiu perfil de esquerda não por questão ideológica mas, como ele próprio define, por uma questão evangélica. Mais de 40 anos depois, milhares e milhares de quilômetros rodados, andados e voados, Frei Betto pode dar um diagnóstico do Brasil de FHC, comparado aos tempos do Brasil Grande dos militares. "Hoje o País está mais injusto do ponto de vista econômico. Há mais miséria, a febre amarela está voltando, mas do ponto de vista político está melhor. É um paradoxo" -- reconhece.
O dia-a-dia do frade dominicano é uma mistura da rotina quase medieval dos conventos com a correria de um intelectual sintonizado com a luta social brasileira. O frade salta da cama bem cedo e às 7h já assiste ao ofício no convento. Novos ofícios, feitos às 12h e às 18h30, também são assistidos pelo frade nos 120 dias em que permanece escrevendo. "É uma rotina que me impus, senão não escrevo meus livros" -- conta o dominicano que encontra na natação uma forma de praticar exercícios, hábito nem sempre possível para quem passa os outros dois terços do ano em viagens para palestras, cursos e atividades de assessoria a movimentos populares e das comunidades de base da Igreja. Quando não pode dar uns mergulhos, Frei Betto anda pela manhã e vai a pé aos destinos mais próximos. Aprecia futebol, a paixão nacional, e admite que ultimamente está seduzido pelo azarão São Caetano, time com charme de clube pequeno e com performance de vencedor.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!