A arte como instrumento de reflexão sobre o que levou à criminalidade sentenciários do Centro de Detenção Provisória de Santo André é o eixo principal do projeto Mudando de Foco, de Rosalice Lopes, professora de psicologia jurídica e coordenadora do curso de Psicologia da Uni-A (Centro Universitário de Santo André). Concebida no ano passado, a proposta é pautada por uma ação social e científica da Uni-A em parceria com o Poder Público municipal. Por meio de oficinas de artes plásticas e de arte dramática coordenadas por estudantes de Psicologia, a pesquisadora acredita que a produção artística proporciona mudanças favoráveis na população encarcerada, pois resgata a auto-estima e possibilita inserção mais ajustada no meio social.
Mas a idéia não saiu do papel. A comoção nacional causada pelo assassinato do prefeito Celso Daniel, em janeiro passado, que reacendeu o debate acalorado sobre leis mais severas, inclusive a pena de morte, é um dos motivos que levaram a professora a adiar os planos. O máximo de visibilidade que alcançou foi figurar na lista dos 86 trabalhos selecionados entre os 187 inscritos para a 1ª Mostra Universitária de Santo André. A exposição foi promovida no final do ano passado pelo projeto Cidade Futuro, da Prefeitura, que reuniu monografias, dissertações e teses de estudantes e professores de instituições de Ensino Superior do Grande ABC e outras cidades.
Além desse projeto, apenas outros quatro se dedicam, direta ou indiretamente, à discussão da violência e segurança pública no Grande ABC, tema que instala a região entre as piores estatísticas do País e que só na atual gestão motivou os prefeitos a montar secretarias ou coordenadorias específicas. Alguns dos últimos levantamentos indicam um cenário regional aterrador: seis das sete cidades do Grande ABC compõem o ranking do crime elaborado no final de 2001 pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Entre 65 municípios do Estado de São Paulo com mais de 100 mil habitantes analisados, Diadema está em 4º lugar, São Bernardo em 13º e Mauá em 16º, para citar os 20 primeiros postos (em Diadema foram 267 homicídios só em 2000). Santo André é campeã no Estado em roubo de carro, superando no ano 2000 a então líder São Caetano. Foram 209,3 furtos ou roubos de carro a cada 10 mil habitantes em Santo André, para 170,3 em São Caetano. Conforme dados do Instituto Fernand Braudel, um carro foi roubado ou furtado a cada 17 minutos no Grande ABC em 2000. Isso sem falar nos sequestros relâmpagos, que são a sensação dos bandidos desde 2001, mas não dispõem de estatísticas oficiais.
Rosalice Lopes, professora da Uni-A e cuja tese de doutorado que prepara para defender na USP (Universidade de São Paulo) versa sobre a vida de mães que cumprem pena na Unidade Feminina do Tatuapé, na Capital, dedicou 18 anos ao trabalho em presídios, seja como funcionária da Justiça ou como pesquisadora acadêmica. Sua dissertação de mestrado, também defendida na USP, é resultado do estudo sobre o discurso e as atitudes dos agentes de segurança penitenciária para disciplinar os presos. "Boa parte dos criminosos é reincidente, mas há muitos que podem ser reinseridos na sociedade. Se conhecermos mais sobre as pessoas encarceradas, é possível que consigamos resultados positivos na recuperação. Entretanto, um dos obstáculos para isso é a falta de interesse acadêmico sobre a questão" -- opina a professora.
Paulo Bessa, assessor de extensão da vice-reitoria acadêmica da Umesp (Universidade Metodista de São Paulo), de São Bernardo, tem a mesma opinião. No seu entender, a instituição universitária no Brasil ainda tem muito o que fazer para se aproximar da comunidade onde está inserida. Falta sensibilidade para entender e atender às demandas e os estudantes pouco se envolvem na pesquisa e extensão. "A maioria circula nos corredores das faculdades exclusivamente em busca do diploma. O processo de produção e socialização do conhecimento fica em segundo plano" -- afirma. Além disso, como a população em geral é conservadora, os pesquisadores trazem, mesmo de forma velada, a concepção de que criminalidade é fruto exclusivo da falta de caráter e não de desajustes sociais, sendo, portanto, caso de polícia. "Sem contar que é mais charmoso pesquisar engenharia genética do que entender os fenômenos que levam à violência e propor medidas preventivas e de combate à situação" -- afirma Paulo Bessa.
Elydio dos Santos Neto, assessor de pesquisa da Umesp, diz que a maioria dos 150 projetos em andamento na pós-graduação se concentra na área de Educação e Letras, Odontologia, Medicina Veterinária, Filosofia e Religião. Algumas iniciativas sobre criminalidade estariam na área de Religião. A situação da violência urbana, de acordo com os assessores, preocupa a direção da Umesp, que já pensa na criação de um núcleo que estude o tema, mas ainda não há nada sistematizado. De concreto, há participação em ações de outros setores. Um é o projeto Olimpíada 2004 em parceria com a Petrobras, que visa a formar equipes de handebol -- terceiro esporte mais praticado em escolas no Brasil. São beneficiados 1,5 mil crianças e adolescentes da periferia de Mauá, Santo André e outros municípios da região. "Nosso objetivo é que o jovem canalize seu tempo e energia para algo socialmente aceito, como é o esporte" -- afirma Paulo Bessa.
Outra iniciativa do meio acadêmico da Metodista foi o Projeto Semear, suspenso por problemas administrativos da Jeda (Juventude Esperança do Amanhã), ONG de Santo André coordenada por religiosos católicos. A Umesp era parceira ao lado do Instituto General Motors. O projeto rendeu ao IGM o Prêmio Desempenho de 1999 de LivreMercado e o Top Social 2000 da ADVB (Associação Brasileira dos Dirigentes de Vendas e Marketing). Atendia crianças e adolescentes da favela Tamarutaca, em Santo André. Além de complementação alimentar, jovens carentes tinham acesso a oficinas de teatro, música e jornais. A programação era fora do horário normal de aulas, representando uma agradável opção para quem não tem alternativas senão vagar pelas ruas. De acordo com Paulo Bessa, a Umesp busca novos parceiros para retomar o trabalho. Além disso, a instituição participa da implementação de um programa de capacitação de professores de algumas de suas faculdades para lidarem com a questão das drogas lícitas e ilícitas em sala de aula. A idéia foi introduzida há nove anos no Colégio Metodista. Agora a ampliação é discutida pelo Conselho Municipal de Entorpecentes de São Bernardo.
Formação inadequada -- Embora faltem estatísticas sobre o estudo científico da violência, especialistas são unânimes em afirmar que as pesquisas ainda não atingiram nível satisfatório, apesar de crescerem nos últimos anos. O criminólogo Túlio Kahn, coordenador do Ilanud (Instituto Latino-americano das Nações Unidas para Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente), acrescenta que a universidade peca também pela formação inadequada dos recursos humanos que atuarão diretamente no controle da criminalidade. "No Brasil, para ser delegado de polícia há a obrigatoriedade do curso de Direito. Os ocupantes do Ministério da Justiça e secretarias de Segurança Pública normalmente são promotores ou desembargadores. Entretanto, o currículo das faculdades contempla o estudo da criminologia de forma superficial e não oferece disciplinas que coloquem o estudante em contato com a realidade social. Eles se limitam ao cumprimento e proposição de leis, mas não sabem como lidar com a violência" -- analisa Túlio Kahn, autor de diversos livros sobre o assunto.
Para o coronel da reserva José Vicente da Silva Filho, consultor do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, as universidades, em especial as públicas, deveriam estimular iniciativas e canalizar recursos para áreas sociais em detrimento de outras voltadas para setores de interesse discutível, como estudo de línguas mortas, por exemplo. Outro problema, segundo o pesquisador, é a falta de verbas para os escassos programas que surgem na área. Há dois anos, em parceria com o Ilanud, José Vicente da Silva coordenou pesquisa de opinião pública sobre o policiamento comunitário em diversos municípios onde o programa da Secretaria Estadual de Segurança Pública foi implementado. Dos R$ 30 mil prometidos pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), entidade de fomento à pesquisa ligada ao governo estadual, apenas R$ 5 mil foram repassados. Para dar continuidade ao projeto, foi preciso recorrer à Fundação Ford. "Enquanto a verba não vinha, os pesquisadores colocaram dinheiro do próprio bolso para despesas mais urgentes" -- recorda, mencionando os R$ 700 que desembolsou para pagamento de cópias tipo xerox.
Outro trabalho do pesquisador do Instituto Fernand Braudel, concluído em dezembro passado e cujo relatório está em fase de finalização, estudou as causas da violência em Diadema. O Município do Grande ABC já foi o mais violento do País e vem reduzindo em mais de 40% os índices de criminalidade nos últimos dois anos, segundo o Instituto. O estudo foi articulado com vários segmentos da sociedade, inclusive os jovens que, conforme o coronel José Vicente, são negligenciados pela universidade. "Seus pesquisadores não buscam descobrir quando, como e por quê eles optam pelo mundo do crime" -- acusa. O projeto foi financiado pelo Banco Mundial, que normalmente custeia iniciativas de governos. Para ter direito aos US$ 135 mil orçados para o custo total do projeto, o coronel José Vicente concorreu com coordenadores de outras três mil pesquisas oriundas de vários países, vencendo 200 selecionadas só no Brasil. O critério de seleção do banco sediado em Washington, Capital dos Estados Unidos, envolve sabatina por videoconferência comandada rigorosamente por sua equipe de técnicos.
Falta know-how -- Como o trabalho acadêmico sobre violência ainda não fez escola entre as universidades brasileiras, os pesquisadores esbarram também em dificuldades para estruturar e encaminhar seus trabalhos de acordo com as exigências da Fapesp e de outras fontes financiadoras, como o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e a Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior), vinculada ao Ministério da Educação.
Foi o que aconteceu com a proposta de pesquisa de políticas públicas na área de segurança e cidadania esboçada pelos professores Vander Ferreira de Andrade e Estela Bonjardim, do Centro de Pós-Graduação do Imes (Centro Universitário de São Caetano). O projeto busca principalmente encontrar propostas alternativas no combate à violência. A Fapesp deu parecer favorável ao financiamento numa primeira instância, o que, para muitos especialistas, é mais de meio caminho andado na obtenção dos recursos. Entretanto, numa segunda avaliação, a concessão das bolsas não foi concedida. "Para liberar os recursos, o órgão exige um conjunto de medidas já em andamento tanto por parte do centro universitário que abriga a pesquisa como dos parceiros, no caso o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos" -- esclarece Luiz Roberto Alves, coordenador do Laboratório de Regionalidade e Gestão, braço do centro de pós-graduação do Imes.
A instituição de São Caetano decidiu bancar por seis meses o projeto para evitar que seja engavetado. Durante esse período, o projeto -- assim como outro do mesmo Ceapog, voltado para a área de educação -- será reestruturado de acordo com as exigências da Fapesp e novamente submetido à sua comissão de avaliação.
De acordo com a Assessoria de Imprensa do órgão estadual de financiamento à pesquisa, há muito critério no trabalho dos consultores técnicos responsáveis pela aprovação dos projetos propostos. Há infinidade de solicitações e a Fapesp não daria conta de atender a todos. Todo ano é repassado 1% da receita tributária do Estado, formada em sua maioria pela arrecadação do ICMS. Em 2001 a entidade recebeu R$ 230 milhões, fora a renda do seu patrimônio estimado em R$ 320 milhões. Investiu os R$ 550 milhões no pagamento de bolsas, na maioria voltadas às áreas de saúde, biologia e engenharia.
O orçamento do CNPq em 2002 é de aproximadamente R$ 620 milhões. No entanto, o governo federal já anunciou cortes e ainda não se sabe o impacto disso no financiamento das pesquisas. Segundo assessores, todas as áreas do conhecimento têm recebido atenção do órgão, seja por meio de demanda espontânea -- procura direta dos pesquisadores e instituições -- ou a partir do lançamento de editais e chamadas de projetos por temas. Mas é sabido no meio acadêmico que têm prioridade os projetos vindos de instituições cujos programas de pós-graduação têm selo de recomendação da Capes.
Violência doméstica -- Na contramão está o trabalho de Maria Helena Palma de Oliveira, orientadora do programa de mestrado em Educação da Uniban (Universidade Bandeirantes de São Paulo). Sua tese de doutorado defendida na USP, que durante três anos estudou a educação de escritores brasileiros de várias épocas e estilos literários, foi totalmente financiada pelo CNPq. A conclusão da pesquisa foi publicada em livro pela Editora da Universidade São Francisco, de São Paulo. Entre as biografias estudadas, constatou que 27 deles relatam episódios que podem ser categorizados hoje como violência doméstica contra crianças e adolescentes. Maria Helena Palma conta que o escritor alagoano Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas e Memórias do Cárcere, entre outras obras, desde os quatro anos de idade foi vítima de violência doméstica. Suas lembranças, impressas em 1945 no livro de memórias Infância, foram marcadas por suplício e tortura, como quando esteve amarrado à cama com os olhos queimando por uma doença, tendo inclusive de suportar as picadas dos mosquitos sem que nada pudesse fazer.
A pesquisadora e orientadora da Uniban faz coro aos que pleiteiam mais ações das universidades em favor da melhoria do quadro de insegurança pública. Segundo Maria Helena Palma há na Uniban algumas medidas nesse sentido, entre as quais a introdução no curso de Psicologia de disciplinas que discutem direitos humanos, questões de raça, etnia e gênero. Entretanto, ela defende que toda a sociedade se engaje. "Precisamos acabar com o complô do silêncio. Afinal, a violência urbana também tem raízes em casa e não só nas ruas. É necessário reverter o senso comum de que todo presidiário é mal, toda criança da Febem é bandida e não temos nada a ver com isso" -- alerta.
Sérgio Adorno, pesquisador do Centro de Violência da USP, também entende que a universidade brasileira tem muito a contribuir com estudos e propostas nesse sentido. Entretanto, ele aponta algumas iniciativas visíveis. Na própria USP há pelo menos cinco grupos que discutem o assunto, inclusive nas áreas de saúde pública e medicina preventiva. Além disso, outros importantes núcleos pesquisam o tema no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, Pernambuco, Brasília, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. De acordo com Sérgio Adorno, a literatura também mostra que o tema está sendo abordado razoavelmente, apesar da qualidade não ser homogênea. Entretanto, o nó da questão pode ser outro. "Pesquisar por pesquisar não resolve. É preciso que os resultados das pesquisas sejam traduzidos em políticas publicas" -- sublinha.
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21/01/2025 PAULINHO, PAULINHO, ESQUEÇA ESSE LIVRO!