Sociedade

O punk que
virou cartunista

WALTER VENTURINI - 05/06/2002

Se você é economista, espírita, roqueiro, bancário, psicólogo, militante sindical, gay, metroviário ou fã de revista pornográfica, então certamente conhece os cartuns, caricaturas e histórias em quadrinhos de Márcio Baraldi, desenhista que faz do ecletismo a forma de retratar o Brasil na prancheta, com caneta, lápis, pincel, tinta e papel. Típico filho do Grande ABC, esse neto de italianos completa 20 anos de produção de humor e um jeito descontraído de criticar.

Quem visse o rapaz de Santo André com corte de cabelo punk tocando numa banda de rock nos anos 80 não poderia imaginar que seria o mesmo que lançaria seis trabalhos na Bienal do Livro de 2002. Baraldi não pára de produzir e é um dos poucos profissionais no Brasil que vive exclusivamente de suas obras. As duas mais recentes foram lançadas na Bienal: Moro Num País Tropicaos (Publicher Brasil), uma coletânea de charges da chamada era FHC, e Todas As Cores do Humor (Edições GLS), livro só com cartuns politicamente corretos sobre GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Somente em 2001, o desenhista ilustrou 10 livros. Como toda criança dos anos 70, Márcio Baraldi curtiu desenhos animados na TV. "Adorava os da dupla Hanna e Barbera, como Flintstones e Jetsons, além do programa de bonecos Muppets Show" -- cita. Entre as revistas em quadrinhos, a fase garoto começou com as histórias de Maurício de Souza (turma da Mônica, Cebolinha e Cascão) até chegar ao gibi preferido, Thor, o deus-guerreiro escandinavo transformado em super-herói pelo traço do americano Jack Kirby. 

Márcio Baraldi reconhece que sua geração talvez tenha sido a última a ter preenchido a infância com leitura de gibis. "Como tantos milhões de crianças, fui alfabetizado por Maurício de Souza. É uma pena que hoje o gibi esteja tão caro, porque o moleque chega à 5ª série do Ensino Fundamental sem saber escrever" -- avalia o cartunista, que ainda guarda com carinho num canto de casa um baú recheado de revistas de histórias em quadrinhos.

Márcio Baraldi se considera um felizardo por ter nascido no lugar e na hora certa, pois o Grande ABC dos anos 70 e 80 gravou em sua mente as barulhentas batalhas sindicais protagonizadas pelos metalúrgicos. Aliás, o próprio desenhista seguiu o típico caminho trilhado por milhares de jovens da região: foi cursar a ETE (Escola Técnica Estadual) Lauro Gomes, em São Bernardo, onde se formou em Desenho Mecânico e Artes Plásticas. Manteve a prancheta mas, ao invés de peças, parafusos e ferramentas, investiu no humor. Foi parar no Sindicato dos Trabalhadores Químicos do ABC, onde aos 16 anos passou a ilustrar o Sindiquim, boletim informativo da categoria. 

"A imprensa sindical é o grande amor da minha vida. Foi a escola que me deu feeling" -- define Márcio Baraldi, um inconformado rigoroso quando tem de fazer crítica em forma de desenho. Mas as charges, caricaturas e histórias de Baraldi não descambam para a baixaria ou o humor barato. "É um trabalho não panfletário, e sim politizado. Procuro não fazer piadas fáceis, de pastelão na cara, de corno ou papagaio" -- define. O exemplo é o personagem Euriko que ilustra as publicações do Sindicato dos Bancários do Estado, um rapaz intelectualizado, alegre e politizado, diferente dos estereótipos carrancudos e raivosos que povoam muitos jornais sindicais.


Punk rock -- A formação técnica e operária não impediu que Márcio Baraldi vivesse uma adolescência repleta de referências culturais, das quais a mais forte é o rock pesado das bandas nas quais tocou. Entre os grupos formados pelo desenhista estão nomes como Ecos Urbano e Libertação Radical, puro punk-rock dos anos 80. "Nunca fui da galera que achava o Grande ABC um tédio e ia para São Paulo. Sempre me diverti com pouca coisa. Uma praça e um violão eram suficientes" -- relembra Baraldi, autor também de 12 capas de Cds.

Foi o coquetel de Muppets Show, Capitão América, greves e Sex Pistols que ajudou o rapaz suburbano a criar sua visão de mundo, muito politizada por sinal. Márcio Baraldi vê o Grande ABC se desindustrializando mas ao mesmo tempo com mais opções de lazer para os jovens, principalmente em Santo André, onde destaca o trabalho do prefeito morto Celso Daniel. Foi a formação multifacetada que permitiu ao desenhista publicar trabalhos em dezenas de jornais sindicais para categorias tão diferenciadas como bancários, químicos, psicólogos e metroviários, além de revistas tão variadas como Visão Espírita (kardecista), Estação Criança (infantil), OK Magazine (gay), Brazil (erótica), América Economia, Sem Fronteiras (católica progressista), Tatto (tatuagens) e as roqueiras Dynamite, Rock Brigade, Rodie Crew e Metalhead. "Aprendi a me comunicar com todos os departamentos da vida humana" -- define o cartunista, que recebe presentes e cartas de leitores fiéis do Brasil e até do Exterior. 

Solteiro, 36 anos, Márcio Baraldi já ganhou livros e recebeu cantadas de admiradoras que o procuram na pequena sala onde trabalha, no 1º andar do Edifício Martinelli, no Centro de São Paulo. Entre os roqueiros, o reconhecimento é grande. O desenhista sente o gosto da fama sobretudo ao passear pela Galeria do Rock na Rua 24 de Maio, em São Paulo, frequentada por aficcionados do rock, leitores fanáticos de suas histórias nas revistas especializadas.

Em tempos de Internet, os fãs são mais do que admiradores e entram em contato direto com Baraldi por e-mail, por onde fazem inúmeras sugestões e críticas por meio da página na rede mundial de computadores www.marciobaraldi.iak.com.br. Para iniciantes na arte, o desenhista só tem incentivos e indica o fanzine -- publicação alternativa e artesanal -- como forma de começar os primeiros traços. "O fanzine é hoje um mercado agitado e com a estabilidade econômica o xerox está barato. Sem falar no microcomputador, pois com qualquer pecezinho o moleque faz um gibi" -- garante o cartunista, que avalia que hoje exista mais espaço no mercado, seja pela variedade de publicações ou pelo recurso da informática. 

Ao desenhar para os mais diferentes públicos, Márcio Baraldi afirma que sempre tomou o cuidado de não ofender o leitor com preconceitos, embora de vez em quando receba reclamações de quem o considera demasiado crítico em relação ao governo.  Mas, como diz Ziraldo no prefácio de um de seus livros, Baraldi não pega leve e estampa sua indignação todos os dias na Folha Bancária, boletim do Sindicato dos Bancários de São Paulo.


Gays e ninfomaníacas -- Para quem cresceu admirando Thor, Homem Aranha, Mônica e Cebolinha, Márcio Baraldi não deixou por menos e também produziu seus próprios personagens como o Sabujo Vingador, o cão super-herói, ou o Ultravesti, o primeiro herói gay dos quadrinhos. Criou também o roqueiro Rolo-Loko e as ninfomaníacas Super Baby e Mulher Gata, que animam os leitores da revista erótica Brazil. Baraldi também é capaz de fazer personagens de sucesso entre o público infantil como o menino Júnior ou entre a comunidade espírita com os passarinhos Vapt e Vupt, que chegam a conversar sobre situações como a ida a uma festa de Chico Xavier.

Na revista Brazil, Márcio Baraldi é presença tão obrigatória como as poses de modelos e atrizes de filmes pornôs, algumas delas desenhadas pelo garoto do Grande ABC em posições nada ortodoxas. "Brasileiro gosta de uma sacanagem" -- define Baraldi, que já faz planos para um álbum capa dura com histórias em quadrinhos eróticas, uma versão colorida e bem mais humorada do que os gibis de Carlos Zéfiro dos anos 50 e 60. Material não vai faltar, pois Baraldi é o cartunista que por mais tempo faz também histórias eróticas em quadrinho: seis anos. Combinar sacanagem, política e religião faz parte da sua receita para um humor conectado com as mudanças, sem elitismo e baixaria.


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