Sociedade

Cada flash é
um mergulho

VERA GUAZZELLI - 05/06/2002

O clique da máquina fotográfica de Beltran Asêncio ainda não flagrou as emocionantes imagens da Copa do Mundo. A cada quatro anos, quando quase tudo literalmente gira em torno de uma bola de futebol, o fotógrafo de São Bernardo permite-se lembrar do velho sonho adormecido. Aos 75 anos e após cinco décadas de flashes que mergulharam na política e em imagens artísticas reveladas sob o olhar atento de quem aprendeu a captar os detalhes, Beltran Asêncio ainda carrega um pouco do ímpeto adolescente. Diminuiu o ritmo de trabalho, mas continua atento a qualquer lance que possa sugerir uma pose digna de ser clicada. 

Beltran Asêncio fez da fotografia bem mais que um meio de vida. Transformou o talento nato em profissão e tornou-se eterno apaixonado por uma boa e às vezes intrigante imagem. Não conseguiu rodar o mundo atrás dos grandes eventos esportivos, mas possui acervo que já foi visto na Argentina, em Portugal, nos Estados Unidos e na Bélgica. É também espécie de arquivo vivo da história regional entre os anos de 1950 e 1964, quando acompanhou a carreira política de Lauro Gomes, um dos homens públicos mais influentes do Grande ABC à época. As lembranças são permeadas pela mesma riqueza de detalhes. É como se tudo que o cérebro armazenou durante o período fosse corroborado pelo arquivo fotográfico ou vice-versa.

O encontro de Beltran Asêncio com a fotografia foi acidental. Após apelo de um amigo, ele se dispôs a fotografar a procissão de Nossa Senhora da Boa Viagem, em São Bernardo, no dia 7 de setembro de 1949. Sem intimidade com câmeras, lentes, obturadores e diafragmas -- era entalhador em fábrica de móveis --, ouviu com atenção as explicações e pôs mãos à obra. O resultado do trabalho despertou espécie de paixão à primeira vista e o dinheiro extra resultante da experiência teve destino certo e imediato: foi utilizado como parte do pagamento da primeira máquina fotográfica. 

Foi em 1951 que a carreira deslanchou. Sempre atento às oportunidades, Beltran focou o olho clínico no movimento da escadaria do antigo Cine Anchieta. Recém-chegado da Europa, Lauro Gomes era esperado pelos correligionários que lançavam sua candidatura municipal para fazer frente à também lendária Tereza Delta. Beltran observou a cena e postou-se na bilheteria de onde acreditava ter o melhor ângulo. Não só estava certo como foi rapidamente notado por Lauro Gomes, que como todo bom político não se furtou em fazer poses para o fotógrafo. O resultado final dos cliques agradou tanto que Beltran Asêncio passou a ser o fotógrafo oficial do depois prefeito de São Bernardo e de Santo André. "Eram tempos nos quais a gente fotografava de terno e gravata. Parecia que ia casar" -- brinca Beltran, em alusão à cerimônia da profissão.

Os lances de sorte e perspicácia provocaram uma guinada de 180 graus na vida desse sãobernardense da gema. No início, ele ainda tentou dividir o tempo entre o entalhe e as fotos, mas aos poucos rendeu-se ao óbvio. Na rota dos compromissos políticos de Lauro Gomes, Beltran andou no Cadilac de placa 1111 do político, conheceu os ex-presidentes Costa e Silva, Jânio Quadro, João Goulart e Juscelino Kubitschek, ouviu muitas conversas de bastidores e aprendeu a decifrar as artimanhas do mundo político com cliques oportunos e muita discrição. 

Beltran viu e ouviu muita coisa durante os anos de proximidade com a vida pública. Guarda como recordação marcante o dia da morte de Lauro Gomes e narra com extrema precisão os acontecimentos daquele 20 de maio de 1964. A história só é interrompida para fazer uma observação ao fotógrafo que acompanha a reportagem. "Cuidado com os reflexos dos meus óculos na foto" -- recomenda com ares de especialista. Beltran Asêncio conta que Lauro Gomes estava tão nervoso naquele dia que se esqueceu até de tirar o selo do charuto. O político desconfiava que seu nome constava da lista de 68 cassados pela ditadura militar prestes a ser divulgada. O telegrama com o aviso da cassação foi enviado ao gabinete, mas tudo indica que não chegou a ser lido por Lauro Gomes, que saiu para fazer a barba e as unhas no Jóquei Clube de São Paulo. Lá passou mal, foi levado ao hospital e morreu de enfarte. "Desconfio que morreu sem saber oficialmente que havia sido cassado" -- diz Beltran, que naquela mesma noite se lembra de ter ouvido pelo rádio comentário enfático: "Eram 68 nomes na lista. Agora são 67". 

A experiência com o mundo político, apesar de profissionalmente bem-sucedida, foi suficiente para que o fotógrafo se desencantasse com a vida dos homens públicos. Após a morte de Lauro Gomes, resolveu enterrar a carreira de cobertura fotográfica política e assumiu o setor de microfilmagem e arquivo da Prefeitura de São Bernardo, onde trabalhou até a aposentadoria. Até hoje analisa com ceticismo tudo o que diz respeito ao Poder Público, mas evita o radicalismo. Ao contrário de todas as pesquisas, acha que Lula da Silva mais uma vez não vai chegar lá. Beltran exprime com tranquilidade a opinião, mas avisa: "Não sou fanático por política, nem por religião nem por esporte. Respeito as outras opiniões" -- sentencia o corintiano Beltran. 


Três Virgens -- A vida de Beltran Asêncio fora do cenário político também registra movimentos dignos de serem captados pelos flashes. A mesma paixão fotográfica que o moveu para a cobertura política o transformou num expositor conhecido no mundo. Enquanto caprichava nas ampliações em preto e branco de até dois metros de comprimento realizadas em laboratório próprio, adquiriu know-how suficiente para trabalhar a fotografia como arte e tornar-se expositor internacional. 

Entre exposições na Argentina, Estados Unidos, Portugal e Bélgica, o fotógrafo atingiu o ápice na Bienal de Bruxelas em 1955.  Beltran integrou seleto grupo de 185 fotógrafos mundiais, escolhidos entre os 966 que se inscreveram para o evento com a foto denominada Três Virgens. A imagem formada pelo rastro de luz de três rojões sugere a calda de uma noiva. O mais curioso é que a foto foi obtida com movimento involuntário da máquina, que ameaçou cair do tripé no momento do clique. 

O currículo fotográfico de Beltran Asêncio tem ainda outros lances curiosos que mesclam aventura e até essas coincidências que o destino costuma pregar na vida dos mortais. Em 22 de dezembro de 2000 fotografou as Bodas de Ouro do casal Nilce e Antonio José Segatto, na igreja de Rudge Ramos. Nada de anormal para quem ainda inclui a fotografia na rotina diária. Só que Beltran também foi o fotógrafo do casamento do casal, no mesmo bairro em 22 de dezembro de 1950. "Acho que estou ficando velho" -- satiriza.

Para quem quase chegou a ser atropelado pelo argentino Juan Manuel Fangio numa corrida de Fórmula 1 em Interlagos, a constatação não assusta. Eram tempos em que os espectadores iam fazer piquenique no autódromo e atravessavam a pista em plena corrida. Beltran estava com o pé na lateral de uma curva, pronto para mais uma foto histórica, quando a força do vácuo provocado pela velocidade do carro o atirou para longe. Sem se dar por vencido, literalmente sacudiu a poeira e terminou o serviço. A peripécia não foi suficiente para realizar o sonho de tornar-se um fotógrafo esportivo internacional, mas está entre as lembranças que acalentam a jornada vitoriosa. Recentemente, o fotógrafo cedeu 10 imagens históricas para o livro São Bernardo, Terra de Oportunidades, do empresário Fernando Longo.

Beltran Asêncio não guardou a primeira companheira de trabalho. Lembra-se sempre da máquina com a qual iniciou a carreira e perdeu as contas de quantas fotos tirou durante todos esses anos. Tem encaixotados apenas os equipamentos do laboratório. Agora está modernizado e planeja comprar acessórios que melhorem a performance do equipamento. Também arquivou no computador as 1,5 mil imagens que elegeu para o acervo pessoal. Sabe que a idade e as sequelas de um rompimento de tendão não lhe conferem mais a mobilidade dos tempos que jogava futsal no Primeiro de Maio, em Santo André.

 Assim, o sonho de correr o mundo atrás da Seleção Brasileira e dos grandes eventos esportivos internacionais vai continuar exatamente um sonho. Já a veia fotográfica que o faz clicar os detalhes de paisagens, areia de praia, flores e expressões humanas para expor ou simplesmente deliciar-se com a obra continua pulsando. Haja visto a voracidade com que consome uma biblioteca fotográfica formada por cerca de 60 títulos. "Ainda quero viajar para muitos lugares brasileiros atrás de uma boa imagem" -- avisa o dedicado avô de três netos e pai de um casal de filhos.


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